Le Prince du desert, Matteo
O rei que em sonho dorme acordou neste Agosto, e sem desgosto de ter perdido o tempo, tem a indelével sensação de que escuta o canto das gaivotas. Caminhando no deserto, esse não lugar, nesse sem tempo, tem a imperfeita impressão que elas esvoaçam brancas e luminosas por cima da sua cabeça e as suas vestes dançam sem vento, em saudade, na bruma que ele trouxera consigo da travessia e da contemplação do mar. O seu canto salpica-lhe a visão da aurora das ondas que, mesmo no mais profundo breu, são a manhã alva do mar. O rei relembra que o mar é a manhã, a aurora interminável do mundo e do seu ante-princípio. Ouve-as, em coro, como que ensinadas por um profeta que sempre ouviu, mas a quem nunca viu, a entoar a música perdida da origem. O rei não permanece imóvel.
Gosta de vê-las na luz compacta da madrugada em cantografia nos ares, no vazio que é o deserto por ser o não lugar. Gosta de descortiná-las nos lençóis de luz que contornam a sua visão, no sem tempo, em coreografia. O rei gosta da escrita invisível do som, o rei gosta da escrita impermanente do corpo e do movimento. O rei gosta do indefinido do sentido no som e do indefinido da cadência no movimento. O rei gosta que as gaivotas tenham atravessado as orlas da costa e passando rente aos pinhais lhe tragam a pena da asa do corvo, a poesia dos trovadores e a poesia do vento, a melodia sem outro fim que a pura melodia, a harmonia musical de uma medida que inebria a alma e o seu silêncio. O preenche e o implode em abrasamento e em paixão. O conduz ao silêncio ardente dos místicos e à visão espiritual do Bem. É em estado de paixão – em estado musical e em vibração – que o rei as acolhe, indiferentemente de ser em situação ou em ilusão. Para o rei, as gaivotas, o seu espectral surgimento nessa casa vazia que é o deserto, nessa catedral inacabada por onde em demanda se encontra com o que é do Alto que na luz se derrama como uma epifania permanente, leva-o a sentir a proximidade de um contacto com um rosto difuso que tanto pode ser o seu como o de Deus. O que é indiferente, visto que no deserto tudo é divino porque nada é e o Nada é sem Nome. O rei sente o inomeável e sente as gaivotas. As gaivotas são as guardiãs de um silêncio que o leva a aspirar ao manuscrito impossível e sem autor.
O rei desfeito, na poeira da luz que é também a poeira do deserto, não pertence à Terra, é uma espécie de vulto. O rei vulto que atravessa o deserto, como figuração solar, como figuração lunar, tece em sonho esse manuscrito como a Senhora de Shalott no seu tear as visões do espelho mágico que é uma consciência dotada de infância e de loucura. Do vulto do rei desprende-se um menino, desprende-se um louco. A identidade desfaz-se nas tempestades nocturnas e o vulto caminha indireccionadamente como o pobre tolo por entre memórias que não se reorganizam em torno de um eu, de um si mesmo. As memórias são visões e a dividi-las, como numa pauta, há um refrão. Um som específico que trouxe do mar e das ondas, do que é fundo e profundo, do que canta em cima de uma matéria móvel e se parece sempre com um pranto. O rei aspira ao manuscrito interrompido pelo canto das gaivotas. O seu corpo que o não é, é um pano de Lázaro que veste a memória dos que o esperam como redentor de um país de poemas por fundar. Um rei dessubjectivado - um morto que é vivo, um vivo que não combate contra a morte – que ao entardecer aparece como um conjunto de sarças bruxuleando no horizonte como numa pintura impressionista. Assim vagueia, assim passeia o rei que, ouvindo as gaivotas, não compõe a sua autobiografia – ele que não é só ser vivo, é um morto que está vivo – mas se oferece aos que por lá passam a sua heterografia. O seu devir outro. O manuscrito do rei que passa e nos seus passos na areia fica inscrito o testemunho de um vulto, de um rei louco e criança. Manuscrito de quem se sente múltiplos, de quem se sente vários. Um manuscrito compossível aos poetas e aos profetas. Só nos textos poéticos e nas vozes proféticas os vários são variações. Oscilações musicais onde os passos são compassos, onde a leitura é substituída pela audição dos gritos e dos cantos, dos espectros sonoros que tremem na luz diurna e espalham terramotos no silêncio que desce das estrelas. (Pascoaes)
O manuscrito do rei é um manuscrito redigido na Língua pura da infância e dos devaneios. Rei que atravessa o deserto, em delírio e fantasia, é como o pobre tolo um asceta, um profeta dos mortos e dos que hão-de vir. Dos que renascem. Ele pode olhar os mortos porque o seu rosto não tem olhos, é cego, da sua boca aberta, como no anjo de Klee, saem vozes indecifráveis, há um coro, múltiplos em simultâneo, em vozearia. O manuscrito do rei é a ópera dos mortos que Orfeu não conseguiu concluir por ter tocado com o olhar o que é intocável: a glória dos que renascem envoltos em panos que são asas. Porque é esse o desejo dos que, permanecendo fora do deserto, sofrem. O seu desejo clama por anjos. O rei vislumbra-os na brancura da penugem das gaivotas, o rei escuta-os, como um eleito, no seu canto. O céu é a imensa janela por onde eles hão-de chegar e cair. Rilke sabia que os anjos não discursavam, nem falavam. Os anjos são uma aparição sem conteúdo. São a forma da salvação e da Língua sem juízo ou julgamento. O manuscrito impossível do rei pode bem ser o poema das gaivotas que profetizam o reino dos anjos por vir. O manuscrito que um certo canto profético anuncia aos homens que o encontram por emprestarem a sua voz a todos os sinais indecifráveis do mundo e do que chega para além dele.
À Iolanda e ao David. Anjos que me libertam de todas as formas de sofrimento e enclausuramento na linguagem. Silenciosas criaturas que trazem inscrito nos gestos o som do deserto e o movimento do vento original. Ao Paulo que me lembra o rei mesmo quando ele vem fora do tempo.