Hoje é o último dia do ano. Nele se enviam, recebem, agradecem e reenviam mensagens de Feliz Ano Novo. Assim o fizeram milhões de seres humanos nos anos passados, assim o continuarão a fazer milhões de seres humanos nos anos futuros. É a rotina habitual, com a melhor das intenções. Entretanto, apesar dos votos que fazemos, todos nós continuamos a ser cúmplices na degradação da vida e do planeta. Por pensamentos, palavras, acções e omissões, movidos pela ilusão, a avidez e o ódio ou estagnados pela indiferença, contribuímos directa ou indirectamente para a ignorância, o sofrimento e a injustiça que alastram sobre o mundo e vitimam os seres vivos, humanos e não humanos, nossos companheiros na aventura da existência. Pelo simples facto de existirmos, interagirmos e nos movermos, pelo vestuário, alimentação, produtos, bens e serviços que consumimos – e mesmo que sejamos vegetarianos ou veganos, não usemos senão roupa de origem vegetal ou sintética, não gostemos de touradas e sejamos activistas a favor dos direitos de todos os seres - , contribuímos directa ou indirectamente para o sofrimento e morte de biliões de insectos, lagartas e outros animais (no cultivo e recolha de plantas, frutos e vegetais), bem como para o sofrimento e a exploração do trabalho de milhões de seres humanos (não só na China, mas por todo o mundo, incluindo em Portugal). Isto para já não falar do CO2 que as nossas viagens inúteis e fúteis lançam para a atmosfera e dessas outras emissões, infinitamente mais venenosas, as dos nossos pensamentos e emoções destrutivos. Sim, pode não ser simpático dizê-lo, mas a realidade não existe para ser simpática: ninguém é inocente. É salutar recordá-lo, para abdicarmos de presunções de pureza, virtude e santidade e deixarmos de julgar e diabolizar os outros. Todos nós somos predadores, que deixamos uma funda pegada ecológica onde quer que estejamos.
Cabe recordar isto, para avaliarmos a infinita dívida que a cada instante contraímos em relação a tudo e todos e pensarmos como a podemos pagar e compensar. Tudo depende do sentido que dermos às nossas vidas, pensamentos, palavras e acções. Tudo depende se fazemos desta nossa brevíssima passagem pelo mundo algo que o deixe um pouco melhor do que antes, semeando e cultivando nele um bem maior do que aquele mal que pelo simples facto de existirmos lhe trazemos.
Vivemos e viveremos cada vez mais grandes dificuldades a nível mundial. O paradigma do progresso enquanto ilimitado crescimento económico e incontrolado usufruto dos recursos naturais e dos seres vivos pela espécie humana, surgido há uns séculos na Europa e hoje globalizado, conhece um espectacular fracasso, pela incapacidade de resolver os grandes problemas e inquietações da humanidade, pelo aumento do fosso entre os que vivem acima e abaixo das suas necessidades, pela destruição crescente da biodiversidade e pela gravíssima crise ecológica. Disto começa a ser consciente um crescente número de pessoas e instituições nos países mais “desenvolvidos”, mas o mesmo não acontece nos países em vias de “desenvolvimento” e nas novas potências emergentes, que desejam seguir o mesmo caminho ilusório e já morderam o isco envenenado do poder e da riqueza aparentes e imediatos.
Perante isto, e perante o silenciamento e indiferença da maioria dos responsáveis políticos e religiosos mundiais, que preferem continuar a adormecer-nos e a adormecer-se com a retórica da esperança de melhores dias, somos todos nós que temos a responsabilidade de cooperarmos na busca de um novo paradigma. Esse paradigma tem de passar pela compreensão e vivência da realidade como uma totalidade orgânica e complexa, onde todos os seres e ecossistemas são interdependentes, não podendo pensar-se o bem de uns em detrimento de outros e da harmonia global. Há que, para bem do próprio homem, superar o antropocentrismo numa visão holística da Vida, em que o ser humano se assuma não como o dono do mundo, com o direito de o explorar e aos seus habitantes a seu bel-prazer, mas como o responsável pelo equilíbrio ecológico do planeta e pelo direito de todos os seres vivos à vida e ao bem-estar.
Não assumindo esta responsabilidade, não respeitando a Terra e a grande comunidade dos viventes, a humanidade não se respeita a si mesma e lesa os próprios interesses. Assim o mostram os efeitos dramáticos da alimentação e da vida antinatural que levamos sobre a nossa saúde psíquica e física, a par do terrível e desnecessário sofrimento causado a milhões de animais, que criamos e engordamos à pressa em gigantescos campos de concentração para alimentarmos o Holocausto do nosso apetite e da ganância insaciável dos produtores. Mas isto não se faz sem consequências. Por mais que as silenciem, elas vem ao de cima e estão aí. A agropecuária intensiva é o sector mais poluente, responsável por 18% das emissões de gases com efeito de estufa que produzem o aquecimento global, sendo igualmente o sector que mais água necessita, estando a esgotar os caudais em todo o mundo (só nos EUA mais de metade da água é usada para produzir ração para o gado; a par disso, a água restante é contaminada pelos resíduos animais); daí estimar-se que, em 2025, 64% da população mundial se veja privada da água necessária e já se anunciem as futuras guerras pela água… (cf. Harald Welzer, Klimakriege, 2008). A agropecuária intensiva é ainda a grande responsável pela desertificação e desflorestação, sendo 70% do solo agrícola mundial usado para alimentar animais. Disso resulta ser também a grande responsável pela perda da biodiversidade. A par de tudo isto, a produção e consumo massivos de carne industrial contribuem directamente para a fome no mundo, pois só a produção agrícola destinada aos animais nos EUA daria para alimentar 800 milhões de pessoas!...
Apocalipse Now não é apenas o nome de um filme. Necessitamos urgentemente de despertar e de um novo rumo. Enquanto podemos, pois já se vai fazendo muito tarde. Melhor é mudar voluntariamente do que ser obrigado à força.
Há que estabelecer uma Nova Aliança com a Terra e os seres vivos. E já.
Pensem nisso, no mínimo, à meia-noite de hoje, de modo a que entrem de outro modo em 2011.
31.12.2010
Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Für Elise
Na falta de uma agógica gravíssima que, quanto a mim, faria aqui todo o sentido, partilho esta versão com quem a quiser sentir:
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
para a SAUDADES - apara de poema
jingle the Bells, jingle the Bells, jingle the Bells
as coisas por aqui
não vão nada
Wells
(beijo, ó miúda, e um Bom 2011, que seja favorável/ a ganhar-se bronze)
Amor fidelíssimo
("Um pouco, e não mais me vereis; outra vez um pouco, e ver-me-eis")
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.
Luís de Camões
FESTA
Entre touros e porcos - sangue
O homem trabalha todos os dias
Num só, mata a sede e a fome
O corpo treme e fode
Aquele morreu de morte matada
Na cela o grito seco, calado
No corpo, a dor não revelada
Um buraco na terra
Dentro dela, a mulher adúltera
No rosto, a vergonha explorada
Na mão do justiceiro, pedras
O homem trabalha todos os dias
Num só, mata a sede e a fome
O corpo treme e fode
Aquele morreu de morte matada
Na cela o grito seco, calado
No corpo, a dor não revelada
Um buraco na terra
Dentro dela, a mulher adúltera
No rosto, a vergonha explorada
Na mão do justiceiro, pedras
Na procissão, um anjo de cera
Nas costas, o peso
Nas costas, o peso
Entre touros e porcos - sangue
Ordena a tradição, submissão
Grita o porco por compaixão
Na mão do homem - faca afiada
De morta matada
Morreu apedrejada
Um é preto, outro pobre
Criança sem nome, com fome
Ordena a tradição, submissão
Grita o porco por compaixão
Na mão do homem - faca afiada
De morta matada
Morreu apedrejada
Um é preto, outro pobre
Criança sem nome, com fome
Na rua, a procissão
Nas costas, um anjo
Pobres de espírito
Pobres, sem nome
Nas costas, um anjo
Pobres de espírito
Pobres, sem nome
Dá-me teu corpo suado, em nome do Homem
Rega meu ventre de vinho, em nome do Homem
Rasga-me por dentro, em nome do Homem
Amanhã parte, em nome da Liberdade
Rega meu ventre de vinho, em nome do Homem
Rasga-me por dentro, em nome do Homem
Amanhã parte, em nome da Liberdade
Ama.
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
JANTAR
Jantei ontem na casa da Aurora. Entre corredores e portas habitam quadros, livros, estantes. Preso ao tecto, no hall de entrada dança uma mandala azul, feita de lixo reciclado.
No caminho para a casa de banho pensei nas voltas que dou à procura de um espaço para respirar. Não fosse o lavagante à minha espera no prato e teria ficado mais um bocado sentada na sanita, ganhando folego.
Existir, nem sempre é fácil. Aqui todas as paredes estão decoradas. Aqui habita a cultura arrumada em prateleiras. Os castiçais são originais. Uns tem mais velas que outros. Perguntam-me se festejei o Hanukkak, no dia 2 de Dezembro. Como o poderia? Nunca sei a data. A última vez que o celebrei foi na escola primária.
- O lavangante reclama tua presença!
Na sala de jantar, no canto direito um pinheiro lembra o Natal. No meu prato, um lavangante morto faz-se acompanhar de uma salada verde. Em seguida, um perú completa a festa dos animais sacrificados. Estamos na quadra onde todos fazem votos de felicidade. Enquanto ela corta a perna do animal, ele levanta o cálice em nome do amor ao próximo.
Na sala partilha-se um passado que me esqueci. Ele reclama, ela exclama. Se eu pudesse regressava à casa de banho. Não consegui contar todos os azulejos. Uns são mais verdes que os outros. Não sei quantos são.
- Vocês fizeram obras na casa?
- Só na casa de banho. Colocámos as máquinas, lá. Assim ficam longe da cozinha.
Lembro do forno. Dentro dele, restos de perú guardados. No lixo, as cascas dos lavagantes.
Peço desculpas, estou cansada e já passa da meia-noite. Despeço-me agradecida.
Entre abraços e beijos, ansiosa pergunto:
- Não se importam que eu volte cá um dia destes? Preciso acabar de contar os azulejos mais verdes.
A noite está fria. Na minha casa respiro entre quatro paredes namoradeiras. Um dia corro o risco da sala se transformar num corredor, tal é a tentação dessas paredes serem só uma.
No caminho para a casa de banho pensei nas voltas que dou à procura de um espaço para respirar. Não fosse o lavagante à minha espera no prato e teria ficado mais um bocado sentada na sanita, ganhando folego.
Existir, nem sempre é fácil. Aqui todas as paredes estão decoradas. Aqui habita a cultura arrumada em prateleiras. Os castiçais são originais. Uns tem mais velas que outros. Perguntam-me se festejei o Hanukkak, no dia 2 de Dezembro. Como o poderia? Nunca sei a data. A última vez que o celebrei foi na escola primária.
- O lavangante reclama tua presença!
Na sala de jantar, no canto direito um pinheiro lembra o Natal. No meu prato, um lavangante morto faz-se acompanhar de uma salada verde. Em seguida, um perú completa a festa dos animais sacrificados. Estamos na quadra onde todos fazem votos de felicidade. Enquanto ela corta a perna do animal, ele levanta o cálice em nome do amor ao próximo.
Na sala partilha-se um passado que me esqueci. Ele reclama, ela exclama. Se eu pudesse regressava à casa de banho. Não consegui contar todos os azulejos. Uns são mais verdes que os outros. Não sei quantos são.
- Vocês fizeram obras na casa?
- Só na casa de banho. Colocámos as máquinas, lá. Assim ficam longe da cozinha.
Lembro do forno. Dentro dele, restos de perú guardados. No lixo, as cascas dos lavagantes.
Peço desculpas, estou cansada e já passa da meia-noite. Despeço-me agradecida.
Entre abraços e beijos, ansiosa pergunto:
- Não se importam que eu volte cá um dia destes? Preciso acabar de contar os azulejos mais verdes.
A noite está fria. Na minha casa respiro entre quatro paredes namoradeiras. Um dia corro o risco da sala se transformar num corredor, tal é a tentação dessas paredes serem só uma.
domingo, 26 de dezembro de 2010
SETEMBRO DOS DESGARRADOS
(VÍDEO SETEMBRO DOS DESGARRADOS)
Assim devagar vou-me calando, saudades da chuva vestindo o mar, febril me tomei por todos os seres, doente inventei o presente. Setembro molhado, cheiro da terra com gosto. Na rua me dispo, lavo com a chuva meu corpo suado. Ah, este Setembro que com ele me fico, sonhos passados nunca vividos. Era assim a memória de tudo que lembro, minha vida por Setembro dos Desgarrados. Se te conto só agora, é porque a hora se fez hora e contigo e ele partilho tudo que lá foi acontecido. Não percas tempo em procurar a verdade, não pares na mentira, pouco importa se o que conto existiu, fecha os olhos e sente.
Bem abençoado quem nasceu, sofreu no parto a primeira dor da existência, no sangue materno a promessa de cor, no primeiro choro a certeza do riso. Cada desgarrado trouxe no rost
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Se nada te pára, nem te comove, sente a chuva que te corre por dentro. Senta devagar, vê a semente por onde ela cresce. Se da tua mão nasce agora uma flor foi porque te deixaste adubar, neste Setembro que agora nos abraça.
(dio Livro 'PALADAR DA LOUCURA')
sábado, 25 de dezembro de 2010
ENGANO (Poema lido por João Lourenço no lançamento do livro 'Paladar da Loucura'
Comprei o Inverno no alfarrabista a um tipo que vendeu terrenos na lua
Devia ter desconfiado quando contou que adorava perseguir carros
À excepção dos coreanos,
A não ser que sejam dourados.
No trânsito ele descansa
Por isso nunca circula na auto-estrada
Lá ele se perde se aparece uma ambulância
Na cidade ele se esvai,
Quando ouve a sirene dos bombeiros
Sem ar apita como se rimasse um poema.
Neste calor insano ele corre como se fosse Inverno
Enganou-me,
Contou-me o conto do vigário
Vendeu-me a preço de saldo o Inverno.
Devia ter desconfiado quando contou que adorava perseguir carros
À excepção dos coreanos,
A não ser que sejam dourados.
No trânsito ele descansa
Por isso nunca circula na auto-estrada
Lá ele se perde se aparece uma ambulância
Na cidade ele se esvai,
Quando ouve a sirene dos bombeiros
Sem ar apita como se rimasse um poema.
Neste calor insano ele corre como se fosse Inverno
Enganou-me,
Contou-me o conto do vigário
Vendeu-me a preço de saldo o Inverno.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Fialho de Almeida, Os Gatos
(...) Ah! como eu tive inveja do saloio que parou o burro à porta de uma mercearia de Bitesga, para comprar as duas dúzias de broas da consoada; do pobre engraxador da esquina, indo à praça, com a mulher, de fato rico, apreçar um quarto de perú; da varina entrando na salsicharia, radiante, a comprar salsichas, ao fim de ter deposto a canastra à porta,, rude presepe onde o filho loiro chuchava o dedo, com o ventre de sapo para o ar! Todas essas índoles do povo, roídas de penúria, vergadas de trabalho, primitivas, mas fecundas e convergentes, por uma fatalidade ancestral, à reedição das alegrias periódicas do ano, se me afiguraram infinitamente superiores à minha friável índole de janota céptico, demolindo no ar sem plano certo, negando pelo simples prazer do paradoxo, incapaz de estabilidade num problema, constantemente à procura de novo, e em cada topo de colina voltando-se, desesperado de só ter achado gosto -- ao que era velho. Ó meu pobre coração amortalhado de tristeza! diz como te dói o isolamento a que uma inteligência estéril te votou. (...)
... dia de Natal, eu que conheço toda a gente, não tive ninguém que me dissesse "anda jantar". Vinguei-me saindo de casa, e engajando os primeiros va-nu-pieds eventuais. Dois pobres do asilo, os uniformes sem nódoas, pouco bêbados. Marchámos para o Augusto, e na sala comum, a uma de cujas mesas nos sentámos, houve reboliço por banda das meretrizes e irregulares que, mais alegres do que eu, ali tinham ido fazer o seu jantar, em partie fine. Não descrevo a comida, registando apenas o trabalho gasto em despersuadir os meus dois comensais de não meterem no bolso os restos de cada prato do festim.
À sobremesa, um deles, bêbado, como eu o fitava com uma piedade cristã de filho pródigo, confiou-me que estivera quatro anos em África, por um roubo, e o Conselheiro X o metera no asilo, havia sete meses. O outro, era um velhinho abaulado, olhos de doido irónico, que fugiam, falando pouco; mas todo o jantar o suspeitei de celerado; tanto os seus monossílabos humildes, e os seus contínuos escrúpulos de consciência, lhe davam um ar de homem de bem. À despedida, o mais velho chamou-me conde, e o mais novo, doutor, sem acertarem e lá foram cambaleando, a rogar pragas a quem lhes fizera o serviço de lhes notar no crânio a apoplexia. Pobres malandros! Deixai o meu egoísmo abusar da vossa fome. Sem vós, eu não poderia dizer, como toda a gente: "Jantei hoje o Natal com dois amigos velhos."
... dia de Natal, eu que conheço toda a gente, não tive ninguém que me dissesse "anda jantar". Vinguei-me saindo de casa, e engajando os primeiros va-nu-pieds eventuais. Dois pobres do asilo, os uniformes sem nódoas, pouco bêbados. Marchámos para o Augusto, e na sala comum, a uma de cujas mesas nos sentámos, houve reboliço por banda das meretrizes e irregulares que, mais alegres do que eu, ali tinham ido fazer o seu jantar, em partie fine. Não descrevo a comida, registando apenas o trabalho gasto em despersuadir os meus dois comensais de não meterem no bolso os restos de cada prato do festim.
À sobremesa, um deles, bêbado, como eu o fitava com uma piedade cristã de filho pródigo, confiou-me que estivera quatro anos em África, por um roubo, e o Conselheiro X o metera no asilo, havia sete meses. O outro, era um velhinho abaulado, olhos de doido irónico, que fugiam, falando pouco; mas todo o jantar o suspeitei de celerado; tanto os seus monossílabos humildes, e os seus contínuos escrúpulos de consciência, lhe davam um ar de homem de bem. À despedida, o mais velho chamou-me conde, e o mais novo, doutor, sem acertarem e lá foram cambaleando, a rogar pragas a quem lhes fizera o serviço de lhes notar no crânio a apoplexia. Pobres malandros! Deixai o meu egoísmo abusar da vossa fome. Sem vós, eu não poderia dizer, como toda a gente: "Jantei hoje o Natal com dois amigos velhos."
LUGAR PRESENTE
A Todos
Cristais surgem
no imprevisível Dia
a névoa veste de igual brancura
ásperas rochas e frágeis construções.
Arrábida traz no ventre
ancestrais murmúrios por decifrar
soam nas cordas do tempo
convento de sonho no beiral do espaço
os pássaros cantam o azul do Sado
a manhã avança
com o brilho da Paz
o Céu acaricia a Serra e o sorriso das Crianças
coroadas dançam no pulsar da Natureza.
Pudesse o momento alcançar a Hora
o Filho consolador
renascer da Pureza
de Natal presente o Amor...
Feliz Natal
Cristais surgem
no imprevisível Dia
a névoa veste de igual brancura
ásperas rochas e frágeis construções.
Arrábida traz no ventre
ancestrais murmúrios por decifrar
soam nas cordas do tempo
convento de sonho no beiral do espaço
os pássaros cantam o azul do Sado
a manhã avança
com o brilho da Paz
o Céu acaricia a Serra e o sorriso das Crianças
coroadas dançam no pulsar da Natureza.
Pudesse o momento alcançar a Hora
o Filho consolador
renascer da Pureza
de Natal presente o Amor...
Feliz Natal
Mensagem de Carnatal de Sua Eminência Todo o Mundo - Ninguém
Há dois Natais. Um que tem uma face pagã e outra cristã. Em termos cristãos, nele se celebra o nascimento de Cristo na terra ou, segundo os místicos, na linha de Eckhart, o nascimento do divino na consciência (como escreveu Angelus Silesius: “Que me importa que Cristo haja nascido ontem em Belém, / Se não nasce hoje na minha alma?”). Em termos pagãos, a celebração que foi cristianizada é a do solstício de Inverno, ou seja, o renascimento simbólico do Sol Invictus após a sua simbólica morte: ou seja, o renascimento do próprio mundo, quando a energia vital que há nos seres e nas coisas, após declinar e se recolher, inicia um novo ciclo de expansão. O Deus cristão foi depois visto como um Deus crucificado, apontando um caminho de ascese e renúncia ao mundo, em prol de uma salvação sobrenatural, acessível apenas aos homens, destinados a uma eternidade separada dos animais que lhes serviram de companhia, alimento, matéria-prima e força de trabalho. Todavia, como se assinala na inspiração franciscana do Presépio, Cristo veio ao mundo numa gruta, figura das profundezas da Natureza, primeiro que tudo aquecido e protegido pelos animais, uma vaca e um burro: poderoso símbolo de uma fraternidade divino-humano-cósmica, ainda por cumprir, como igualmente se expressa no “Jardim das Delícias”, de Bosch, ou nos quadros de Chagall, entre outros.
Este Natal, pagão ou cristão, implica sempre um (re)nascimento iniciático, uma metamorfose da consciência e das energias profundas do ser, um mundo ao arrepio das convenções, rotinas e usos comuns, em que a libertadora experiência do sagrado consiste em rir daquilo a que se está apegado como mais sagrado (o “sagrado de transgressão”, de que fala Roger Caillois). Não é por acaso que, ainda na Idade Média cristã, o Natal coexistia, no período da libertas decembrica, com as Festas dos Loucos, celebradas de meados de Dezembro até à Epifania, em 6 de Janeiro, com comida, bebida e danças dentro das igrejas e em cima dos altares, missas paródicas com burros a zurrar, homens vestidos de mulheres e mulheres vestidas de homens, crianças entronizadas como Imperadores dos Inocentes, a quem os adultos e a hierarquia eclesiástica tinham de obedecer, etc. Progressivamente proibidas nas igrejas, acabaram por originar o Carnaval moderno, tendo sido a forma medieval e cristã do mundo às avessas que é ritualizado em muitas tradições e culturas como forma de recordar e vivenciar o regresso cíclico do cosmos ao Caos primordial ou ao Tempo das Origens onde tudo é puro, sagrado e possível e a liberdade, a metamorfose, o jogo e a festa predominam sobre a rígida delimitação do sagrado e do profano, do divino, do animal e do humano e dos papéis psicológicos, sociais e cósmicos, com a vida orientada para o trabalho e a produção. Correspondendo ao solstício de Inverno, as Festas dos Loucos herdam a memória de mais antigas festividades pagãs, de sentido carnavalesco, como as Saturnais, onde se celebrava o regresso à abundância e inocência da Idade do Ouro, com a troca de presentes e o travestimento de homens e mulheres. Festividades ainda bem presentes no Nordeste transmontano, de cuja inversão da ordem estabelecida se acredita depender a renovação das energias humanas e cósmicas, a fertilidade das mulheres, dos animais e dos campos. Como ainda hoje se diz em certas aldeias de Trás-os-Montes, por ocasião das tropelias e mascaradas praticadas nas Festas dos Rapazes e outras: “É Natal, ninguém leva a mal!”. Um Carnatal, como pude presenciar…
Estas festas, tradicionais e iniciáticas, podemos entendê-las, para além da óbvia catarse das pulsões reprimidas, como convites à transmutação da consciência que assume e liberta a sua iluminada ou divina natureza primordial, anterior a qualquer estado, condição ou limite, anterior a qualquer máscara, ego e personalidade e sua projecção de um mundo ilusoriamente considerado como exterior, real e objectivo. O Louco simboliza bem, como na carta do Tarot, essa natureza primordial da mente, não egocentrada, sem centro nem periferia, tão livre e infinita como o espaço, tal um zero metafísico e pré-existencial que, por não ser nada, pode a cada instante imaginar-se e tornar-se tudo, como assume Bernardo Soares no “Livro do Desassossego”. Aquilo que todos somos: Todo o Mundo-Ninguém.
O Louco ou a Criança. Porque a Festa dos Loucos é a festa da coroação das crianças como detentoras da suprema autoridade, com a inversão das funções e relações habituais entre as classes etárias e sociais. A exemplo do ensinamento de Lao Tsé, Cristo e Agostinho da Silva. Tal como acontecia e acontece na Festa do Espírito Santo, sua directa herdeira no Ocidente, fundada pela rainha Santa Isabel e levada para os Açores, Brasil e América. Preservada ainda hoje no Penedo, perto de Sintra, com a mácula da tourada à corda. A Festa onde Agostinho da Silva viu a simbólica antecipação do futuro que todos desejamos: a libertação de todas as prisões, a igualitária partilha da abundância, a coroação e a sacralização da infância, ou seja, da inocência, da liberdade e da imaginação criadora.
Este é o espírito e o simbolismo profundo do Natal, do Presépio, da Árvore de Natal, imagem do axis mundi que liga Céu e Terra e passa em cada uma das nossas colunas vertebrais. O simbolismo da troca de prendas, da festa da infância e da abundância, da comunhão na alegria, na solidariedade e na despreocupação.
O outro Natal é o que hoje temos à nossa volta, a deturpação deste e do seu espírito num ciclo de civilização em que o crescente vazio interior de mentes sem imaginação, amor e sabedoria se busca ilusoriamente compensar por um produtivismo e consumismo galopantes e ávidos, que alimentam uma economia regida por especuladores e agiotas, financiam guerras, trucidam milhões de seres vivos e devastam, envenenam e enchem de lixo o planeta para uma Consoada e um dia de Natal de embrutecimento e esquecimento da vida triste e opressiva levada em quase todos os restantes dias do ano. No fundo, e ainda, uma grande Festa de Loucos, mas não de Loucos sábios e livres, antes de Loucos patológicos que buscam libertar-se com aquilo que mais os escraviza, ofusca e aliena.
Importa contudo ir além do moralismo estreito e estéril e ver, através dum Natal e duma Festa de Loucos, o outro Natal e a outra Festa de Loucos cuja saudade no fundo move a avidez e a alienação do Holocausto produtivista-consumista do nosso tempo. E, serenamente, transitar de um para o outro, sendo feliz e tornando-se contagioso. Ou seja, transitar das prisões do ego para a Grande Festa do Livre Espírito, na infinita comunidade de todos os seres vivos, da Vida e da Natureza.
FELIZ CARNATAL! LIBERTADORA FESTA DOS LOUCOS!
Neste Natal,
Parto em busca do amanhã. Encontro assistido, presente. Dia em que todos lembram de todos. Quente é o ar que respiro. Abraço o dia. Invento a tua cama, nela me deito - até sempre.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Natal em Lisboa
O ano passado aprendi como a neve cobre e descobre a montanha. Da minha janela pude notar a natureza no seu movimento. Adormecia com a montanha nua, acordava com ela vestida de branco.
Sentada senti a neve por dentro, de olhos fechados ouvi o som de cada caminhante num compasso sereno.
Recolhida não soube do azáfama nas lojas, nem das buzinas impacientes que acompanham esta data nos centros urbanos. Ouvi a poesia em cada recanto. Senti como a vida se espreguiça feliz, quando deixamos a vontade dormir. Descansei meu corpo na árvore centenária.
Não houve ceia, nem mesa farta. Não houve prendas compradas. Um longo e silencioso abraço lembrou o Natal.
Anoitece cedo na montanha. Da minha janela o branco vestiu de novo a paisagem.
Amanhã, à noite, vou-me sentar e abraçar todos . Sem prendas, nem mesas fartas.
Num longo e silencioso abraço.
Sentada senti a neve por dentro, de olhos fechados ouvi o som de cada caminhante num compasso sereno.
Recolhida não soube do azáfama nas lojas, nem das buzinas impacientes que acompanham esta data nos centros urbanos. Ouvi a poesia em cada recanto. Senti como a vida se espreguiça feliz, quando deixamos a vontade dormir. Descansei meu corpo na árvore centenária.
Não houve ceia, nem mesa farta. Não houve prendas compradas. Um longo e silencioso abraço lembrou o Natal.
Anoitece cedo na montanha. Da minha janela o branco vestiu de novo a paisagem.
Amanhã, à noite, vou-me sentar e abraçar todos . Sem prendas, nem mesas fartas.
Num longo e silencioso abraço.
"Todo o 'acto premeditado' ou todo o 'acto leviano' tem a sua guilhotina-própria." (António Maria Lisboa)
Não é impunemente que se escrevem coisas. O homem “pensa” ou “não pensa” – mas diz. […] Daqui nascem todos os enganos. Não o Verdadeiro Poeta que aprende por si o meio de ofender – imprimindo ou não, escrevendo romances, ensaios, panfletos ou não escrevendo nada. Este é um engano da sociedade no seu todo. Para se conseguir a liberdade há que negar os processos equacionais do meio, conquistar uma consciência completa dos seus vícios, taras, preconceitos de lugar. Engano de facto da sociedade que assim deixa fugir o melhor peixe das suas teias.
[…] É fácil ser subversivo – a palavra não custa… é um caso de hábito de audição. […] Subversivo, pois!, mas o que é de real é o engano de que se pode ser algo parecido com subversivo sem levar à consciência o meio onde se é, sem conhecer o que nele acontece e para o qual conhecimento, é necessário estar dentro.
[…] Todo o acto premeditado ou todo o acto leviano tem a sua guilhotina-própria.
António Maria Lisboa,
“Carta Aberta ao Snr Dr. Adolfo Casais Monteiro – Aviso a tempo por causa do tempo", in Poesia de António Maria Lisboa, Assírio e Alvim, Lisboa, 1977, págs 103 e segs.
[É de supor que não haja a isto comentários. É talvez até "melhor" que os nao haja: fica tudo, por si, silenciosamente mais estrondoso. Mas, mesmo que os haja (mesmo o não havê-los é, nesse sentido, havê-los muitos) serão a expressão chapada de quanto aqui, nestas palavras de AML e no resto, não tolera comentário. Porque, como ele mesmo diz noutro lugar: "Conhecem-se apenas estas duas maneiras de solução: ou tirar a dor à vida, ou tirar a vida à dor". É, por isso "aos actos-palavras e não às palavras que supõem actos, que me dirijo" ]
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
só um pouco melhor do que PLATERO
FELIZ NATAL E PRÓSPERO ANO NOVO!
DIA DE NATAL
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziante,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha em pijama.
Ah!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
António Gedeão
DIA DE NATAL
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziante,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha em pijama.
Ah!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
António Gedeão
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Lançamento do livro "Paladar da Loucura"
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Campanha Divertida
Fernando Nobre diz a Cavaco que viu crianças a lutar com galinhas por um pedaço de pão
não estranho que Cavaco tenha pensado, como neoliberal
:
pois, pois
quando conseguem o pão
começam a lutar pelas galinhas
domingo, 19 de dezembro de 2010
Inscrições - Sentir Pensamentos | Pensar Sentidos
solicite ficha de inscrição via e-mail: encontrofilosofiacriatividade@gmail.com
(as inscrições são limitadas)
sábado, 18 de dezembro de 2010
meu cântico de Natal (não aconselhável a católicos sensíveis)
NATAL -
pobre menino Jesus
sobre as palhinhas deitado
não fui eu que lá O pus
se fosse eu tinha cuidado
de O proteger do mau tempo
com luvas e agasalhos
um gorrinho contra o vento
uma manta de retalhos
se fosse eu tinha cuidado
de acender-lhe um lume perto
eu próprio tinha ficado
a vigiá-lO - desperto
bem lhe tinha preparado
leite quente e chocolate
e às colherinhas lhe dado
evitando o disparate
do excesso que faz bolçar
crianças da sua idade
de costas ter que O voltar
bater-lhe com suavidade
até o pobre arrotar
ou bolçar mesmo que pouco
e eu a ficar meio-louco
sem saber como O tratar
uma gemada lhe faria
com dois ovos da vizinha
e uma canja de galinha
que lhe desse a substância
que requer qualquer criança
acabada de nascer
pediria ao S. José
que fosse a Belém a pé
e lhe trouxesse farinha
Nestlé - ou sendo caro,
um pacotinho de Amparo
ou mesmo da 33
que eu tinha visto uma vez
deste produto um preparo
para alimentar um indez
e não era caso raro
entre o povo português
e S. José preparou-se
num instante e foi e trouxe
o que eu lhe tinha pedido
que dinheiro ainda tinha
dos tempos de carpinteiro
sobre as palhinhas deitado
não fui eu que lá O pus
se fosse eu tinha cuidado
de O proteger do mau tempo
com luvas e agasalhos
um gorrinho contra o vento
uma manta de retalhos
se fosse eu tinha cuidado
de acender-lhe um lume perto
eu próprio tinha ficado
a vigiá-lO - desperto
bem lhe tinha preparado
leite quente e chocolate
e às colherinhas lhe dado
evitando o disparate
do excesso que faz bolçar
crianças da sua idade
de costas ter que O voltar
bater-lhe com suavidade
até o pobre arrotar
ou bolçar mesmo que pouco
e eu a ficar meio-louco
sem saber como O tratar
uma gemada lhe faria
com dois ovos da vizinha
e uma canja de galinha
que lhe desse a substância
que requer qualquer criança
acabada de nascer
pediria ao S. José
que fosse a Belém a pé
e lhe trouxesse farinha
Nestlé - ou sendo caro,
um pacotinho de Amparo
ou mesmo da 33
que eu tinha visto uma vez
deste produto um preparo
para alimentar um indez
e não era caso raro
entre o povo português
e S. José preparou-se
num instante e foi e trouxe
o que eu lhe tinha pedido
que dinheiro ainda tinha
dos tempos de carpinteiro
que o fisco - não como cá -
lho não levou por inteiro
assim eu teria feito
ao meu menino Jesus
e já quando homem adulto
lhe daria por conselho
que não aceitasse o insulto
de o pregarem numa cruz
outro foi o seu caminho
e há quem vá à Igreja
admirar suas chagas
chorando lágrimas vagas
pelo seu pobre Jesus
não fui eu que lá O pus
sou contra a história da cruz
só sei dizer: coitadinho
com este frio - coitadinho
Os paraísos artificiais
Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.
Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especializadas para desenraizar as árvores.
O cântico das aves - não há cânticos,
mas só canários de 3.º andar e papagaios de 5.º
E a música do vento é frio nos pardieiros.
Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.
A minha terra não é inefável.
A minha vida na terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.
Jorge de Sena, in Pedra Filosofal
Hortense César. (1974). Antologia Poética - 5. 1ª edição. Porto Editora