sábado, 26 de março de 2011
Tenho o hábito de me sentar para escrever. Nem é tanto o processo de escrever sobre as coisas que me ocorrem, mas sim o sentar, poisar o meu peso numa madeira, ganhar posição nas costas, ajeitar um pouco a posição das pernas da cadeira, depois as minhas, olhar-me num espelhinho que tenho aqui ao lado, se estou bem assim, se estou bem assado, cruzar as mãos fazer estalar os dedos pelos nós, libertar o peso do corpo aos poucos, pousa-lo outra vez, sentir de novo a madeira nos elos da coluna vertical, passar as palmas das mãos pelos braços da cadeira, em simultâneo, como quem espalha creme no rosto, ser delicado ao ponto de sentir os nódulos da madeira, uma pequena farpa, algo triste dessa madeira que fora árvore, olhar o mundo por uma janelinha que tenho aqui ao lado direito, que no seu caso, será o lado esquerdo, mas isso não importa, porque o que importa é a verdade com que me sento para escrever, escolher um dos quatro ou cinco pensamentos que andaram comigo a semana inteira e que é hora de decidir, agir sem presunção,
praticar um duelo a sós, mas que, enquanto não decido,
preparo os olhos da mesma forma que preparasse uma jangada
para entrar no mar alto e, feita uma breve psicanálise sobre o
estudo da minha correcta posição de corpo em cima da cadeira, após averiguada a sentença sobre a primeira palavra a escrever, que tom darei ao discurso, se o texto terá as mesmas vítimas, se darei ao dia o sol devido, enfim, nesse espaço em que me ausento da perspectiva da folha branca, coço o nariz pela parte de fora, que é meu costume e que normalmente funciona como estimulador, algo que me distrai, ou melhor, como se ao friccionar, puxasse o sangue para aquela zona e assim, creio eu, a cabeça ficará mais oxigenada e propensa a ideias,
mas claro que isto é apenas e só um acreditar, mínimo, admito, mas lá no fundo é uma fonte especializada em puxar o sonho lá para cima, embora reconhecendo não ser essa a maneira mais eficaz de começar
um texto com toda a categoria que me foi recomendado por um jornal
que se diz nacional, ou pelo menos, assim o afirmou, mas quem sou eu
para duvidar de certas coisas, onde, aliás, tenho provas dadas que acreditar
é o meu forte, embora haja quem faça troça disso, sobretudo quando me sento aqui nesta cadeira confortável, diga-se, e ponho-me a olhar a
página branca que às vezes me parece negra mas é branca como a noite que me pariu, ou, recorrendo a vocabulários mais concretos, é branca como a neve da serra da estrela cuja melancolia leva-me arduamente a pensar nos enigmas da pedra, que, por razões não óbvias, considero as pedras, em termos simbólicos e matemáticos, uma fórmula resolvente com exponencial infinito, nem que para isso se minta para chegar
a uma verdade com sabor a deus, e disso não duvidemos
nem tão pouco façamos uso de metáforas ilusionistas onde o poeta é capaz de se suicidar e voltar à vida
entre uma frase e outra que é, precisamente, o mote que me fascina
para o começo do texto que pretendo iniciar assim que puxar de um cigarrinho, metê-lo na boca, acendê-lo aproveitando a chama de uma vela, dar duas passas consecutivas, ignorando que estou a fazer
coisas erradas, deitar umas vistas sobre o prédio da frente que continua em construção, se possível mandar um grito sólido, cuspir nas palmas das mãos para que não arrefeçam, estudar cada movimentomilimétrico do meu braço, tanto esticado como flectido, olhar a luz do quarto com profundidade católica, arrastar um pouco, só um pouco a cadeira para a frente, achar o ponto de equilíbrio do meu corpo para que a naturalidade dos gestos se preze, para, de seguida, esquecer o que sou, quem fui, e talvez, quem sabe, evite estragos de qualquer natureza
primária ou subjectiva, e só depois disso, além disso, apontar a caneta
ao papel com uma dose de quanto basta de ferocidade, contrair os músculos do queixo, apertar os dentes até um pouco antes
da dor, pensar que sou um peito aberto aos assombramentos, enlouquecer com qualquer coisa, excepto com andorinhas, não sei porquê, não me pergunte, não estou aqui para responder, eu já lhe disse que estou aqui para escrever um texto e já por isso é que me
sentei e depois disto vou fazer a barba porque tenho compromissos
importantes com gente importante num local importante e dizer coisas
importantes mas que no fundo está claro que tudo tem a importância de cada auto consciência, logo, concentro-me em tudo na vida e se o sino toca já toca tarde, e por falar em tarde, está a ficar noite, o sono aí vem,amanhã é outro dia, e depois outro e a seguir mais outro, uma palavra de cada vez faz conceber uma grande invenção ou até um filho dependendo uso, a mim, por exemplo, custa-me bastante escrever a palavra amor, por isso é que estou sentado, pronto para escrever, e nada me ocorre. Mas amanhã, ah amanhã, farei tudo de novo!
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Sabe bem ler um belíssimo texto escrito na primeira pessoa.
Tal como das árvores, sabemo-las pelas suas folhas.
Gostei, abraço!
Enviar um comentário