O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 10 de março de 2011

Domingo

Lethe limpava o teatro sempre depois da meia-noite. Papeis de rebuçados, catálogos rasgados, o lixo que os pés trouxeram da rua.
Como forma de aliviar o trabalho, entretinha-se a inventar histórias entre as filas pares e ímpares.
‘Se as filas fossem divididas entre vogais e consoantes, onde se sentariam os casais?
Com o tempo a limpeza ficou-se em exclusivo pela limpeza e o lixo passou a ser um universo de coisas diversas. Uma folha colorida, um lenço perdido, o pó teimoso acumulado nas frestas. Cada cadeira era uma descoberta. A vassoura ganhou a solidão. O balde ficou seco. A sala ficou maior, a noite ficou pequena.
No Domingo passado, Lethe saíu de casa sem as chaves do teatro. Ainda ia tempo de encontrar Ernesto na bilheteira a fechar o caixa.
- Sr. Ernesto, esqueci-me das chaves em casa...
- Lethe, onde anda a tua cabeça?
Tímida, pede desculpas.
- Entra aqui pela frente. No meu escritório tenho outras chaves. Quando saíres tranca tudo. Deixa as chaves debaixo do tapete da porta da minha casa.
Pela primeira vez em vinte anos de trabalho, Leta entra pela porta da frente. Para no hall ainda iluminado por um imponente lustre de cristal e dirige-se para a galeria dos números pares.  Seus olhos colam-se à cortina de veludo vermelho.
Com pressa corre em direcção ao palco. Pouco importa se anda de Sul para Norte. Andou sempre ao contrário. Tropeça e cai. No chão liberta a voz sumida:
“Cheira a crisântemos vermelhos...”
- Lethe, o que te aconteceu? Acorda rapariga...
- Sr. Ernesto, o que há depois da cortina?
- Como assim, ficaste maluca?
Envergonhada disfarça a ignorância.
- Ando mesmo cansada. Vou ficar aqui um bocadinho e já saio. Amanhã limpo tudo. Pode ser?
Ernesto ajuda-a a sentar-se. Lethe espera ansiosa que a deixe sozinha.
Quando Ernesto bate a porta, Lethe solta um suspiro profundo. Todas as noites limpou o teatro de costas voltadas para o palco. Nunca se perguntou o que faziam tantas cadeiras alinhadas sempre voltadas para sul.
- O que esconde esta cortina?
Devagar aproxima-se do palco, do lado direito uma pequena escada ajuda a subir.
Por baixo, o fosso da orquestra. No horizonte de Leta, a plateia que limpa, agora vista de outro ângulo. Por trás, uma cortina vermelha à italiana.
Para quem se encantava com a descoberta da diversidade do pequeno lixo, o mundo acabava de ganhar uma dimensão brutal. O que escondia a cortina?
Lethe nunca foi pessoa de grandes questionamentos. De madrugada quando regressava do teatro, deitava-se até a hora do almoço. Por volta das duas almoçava. Na parte da tarde limpava a casa de uma velhota. Às oito jantava e deitava-se até a hora de ir para o teatro. Entre intervalos, distraía-se com a televisão. Viveu sempre sozinha. Nunca ninguém a viu acompanhada.
A descoberta do lixo das pequenas coisas alterou a rotina de Lethe que deixou de se interessar pela televisão. Como sempre foi uma pessoa disciplinada arranjou pequenas caixinhas de papel onde passou a separar o lixo por famílias. Os papeis de rebuçados eram tantos que Lethe teve de subdividir em mais caixinhas. Os papéis verdes de alumínio, os papeis de celofane vermelho, os papeis para a tosse, etc.
Arrumar o mundo dá trabalho. Encontrar uma ordem para que se consiga depois esquecer a mesma. Lethe ainda estava a tentar encontrar a ordem lógica das coisas pequenas, quando esqueceu as chaves do teatro.
Em criança quando sentia medo, sua mãe cantarolava:


O pó faz no chão a sua cama
Uma cortina esconde a vida
Cheira a crisântemos vermelhos



A mesma que escuta agora baixinho do outro lado do palco.



Abre a cortina, Lethe. Deixa-me ver o resto.

4 comentários:

platero disse...

a requintada qualidade de sempre

em Faro o Teatro é LET(h?)ES

beijo

ethel disse...

:-)- és o meu leitor preferido!

rmf disse...

As palavras exalam de si o seu odor e aqui, o mais que se levanta é o aroma a palco, a madeira, a soalho, a pano, a pó, a suor, a saudade.

Grato por isso

Um abraço fraterno

ethel disse...

Obrigada eu, rmf!
abraço