Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
domingo, 31 de janeiro de 2010
Manifesto Refundar Portugal e Movimento Outro Portugal
Estão a surgir solicitações para apresentar noutros lugares do país o Manifesto Refundar Portugal e o Movimento Outro Portugal, inspirados na visão de Agostinho da Silva de um país e de um mundo melhor para todos.
Quem desejar organizar uma sessão de apresentação, pode contactar-me directamente: pauloaeborges@gmail.com
Saudações amigas
umoutroportugal.blogspot.com
O olhar de Andrómeda - O espelho, a alma do rochedo
sábado, 30 de janeiro de 2010
Rompemos os céus brindados pelo cobalto, acima de bem-aventurados.
Ficámos abertos à imensa alegria de aqui termos vindo parar.
Palmas e aplausos! Tínhamo-lo dito, dissemos, por fim…
Nem tudo aqui era o que se expectava, nem tudo era espanto.
Até aqui o tempo passava…
Sentíamos falta, algum desespero… alguns de nós tentaram cometer suicídio… ainda assim, fomos poupados…
Os avós dos nossos avós e dos avós dos avós eram brilhantes, excelentes cientistas, inteligentíssimos…
Mas a viagem tinha sido longa e dura, entediante…
Quando nós aqui chegámos, centenas centenas centelhas de anos depois, os que sobrevieram, simplesmente, viveram, erraram...
Nada a dizer.
Eu cheguei no terceiro grupo.
Todos tínhamos ideias de aqui dedicar conhecimento, de causar grande impressão, portanto, começámos por fundar uma grande capital!
Uma cidade que rivalizasse em tamanho com todas as cidades do mundo!
Chamámos-lhe… o espaço era prodigioso!
Duas grandes vias aqui convergiam…
Bem perto – mesmo aqui – construímos o nosso primeiro edifício, e com a mesma primeira pedra, as outras mil que se seguiram.
O edifício civilização no espaço divinizado era fruto harmónico, e amor – por nós recriado – e vazio, que daí florescia…
Sabíamos o quão distantes estávamos de casa…
Aqui perto, entre estas duas enormes vias, ao longe, ainda mais inacessível… era o nosso memorial,
Andrómeda.
solidariedade haiti
PRIMA VERA
Manifesto Refundar Portugal e Movimento Outro Portugal em Alhos Vedros
Apresentei ontem, com a Sofia Costa Madeira, na Escola Aberta Agostinho da Silva, em Alhos Vedros, o Manifesto Refundar Portugal, do Movimento Outro Portugal, que foi entusiasticamente recebido pela assembleia. Está constituído o núcleo de Alhos Vedros do MOP, que vai organizar sessões para debater aspectos específicos do Manifesto e divulgá-lo na imprensa regional e na rádio. A nossa gratidão ao Edgar Cantante, ao Joaquim Raminhos, ao Manuel João Croca e ao Luís Santos.
Apelo a que outros núcleos se formem em todo o país, sempre com o critério de defender um país e um mundo melhor para todos os seres sencientes, não só para alguns. É necessário instaurar nas nossas vidas um novo paradigma mental, ético e cultural, com as devidas consequências sociais, políticas, económicas e ecológicas. É necessário despertar desta "apagada e vil tristeza" e do deserto de ideias em que andamos.
umoutroportugal.blogspot.com
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
IKEA - A mente mobilada é uma mente consumada?
“IKEA WAY
«A família como empresa, a empresa como família.» O lema é de Ingvar Kamprad, mentor de um conceito de negócio inédito que procurou estender a todos os trabalhadores contagiando-os com o seu alento e as virtudes que considera indispensáveis ao bom funcionamento da empresa.
A pedido dos membros do grupo sintetizou os seus princípios no Testamento de Um Comerciante de Móveis, a "base espiritual" da IKEA, editado pela primeira vez em 1976. Até à data, cerca de 100 mil exemplares já foram distribuídos entre os colaboradores espalhados por todo o mundo. Os mandamentos são nove e consistem em orientações claras: oferecer uma ampla gama de artigos a preços acessíveis à maioria; cultivar o 'espírito IKEA' (baseado no desejo de renovação, na atitude de poupança e na humildade que caracterizam o fundador); utilizar os lucros como recursos; alcançar bons resultados com poucos meios; tomar a simplicidade como uma virtude; apostar sempre numa linha diferente; concentrar forças, reconhecendo que não é possível estar em todo o lado ao mesmo tempo; assumir sempre as responsabilidades. Finalmente, a recomendação quanto ao futuro: uma empresa que pensa ter chegado à meta perde a sua força vital, por isso, diz Kamprad, "ainda está quase tudo por fazer". Motivar os trabalhadores para os valores da 'IKEA Way' acima descritos é uma das grandes preocupações do empresário, daí que periodicamente organize seminários na Suécia com o objectivo de lhes incutir este espírito. Para que os milhares de pessoas que emprega não percam o sentido de comunidade que sempre promoveu no seio do grupo, o fundador surpreende com visitas ou iniciativas inesperadas. Veja-se o 'Big Thank You', o prémio do milénio: o total mundial de vendas do dia 9 de Outubro de 1999 foi repartido por todos, para agradecer o empenho e o esforço em nome da empresa.”
Fonte: DN
______
A mercantilização da ‘espiritualidade’! Não, não se trata, na sua forma mais pura, da venda de livros, workshops de meditação transcendental, velinhas e incensos, terapias com nomes de fazer corar a aura… é algo de mais preocupante: trata-se da transposição do discurso ligado à espiritualidade e à religião para o horizonte da vida mercantilizada, despojada do mais que a tornava grácil e indemne, por mais constrangida que fosse por todos os tipos de coação à servidão.
Há várias organizações meramente mercantis que se apropriaram do discurso religioso, por exemplo a AMWAY (acrónimo de ‘I am the way’), quem já assistiu a uma das suas acções de missionação para o consumo não pôde certamente deixar de reparar nas semelhanças gritantes com o modus operandi de algumas seitas religiosas (e uso aqui ‘seita’ apenas por comodidade discursiva). Em vez de Deus/Cristo, o dinheiro e em vez da Igreja, a organização que, num esquema piramidal de partilha dos lucros das vendas garante um enriquecimento rápido e fácil aos que forem mais fiéis ao esquema. O mesmo se passa com a empresa Rainbow que vende aspiradores que, segundo a propaganda oficial, não são aspiradores, mas verdadeiros agenciadores de milagres para quem os adquirir. As vendas processam-se num clima de venda bíblica, por assim dizer. É melhor do que borrifos da água do Jordão ou bênçãos aos urros e com desmaios e bocas a espumar. É muito mais higiénico. Até para a conta bancária de quem compra.
Numa sociedade mercantilizada só importa o que vale e o valor é atribuído em função da utilidade: ‘o João vale porque serve para produzir e para consumir’, o João desde o momento da sua concepção que é trabalhado por uma urdidura libidinal que lhe dá um suporte identitário a partir do qual se irá apropriar de si e do mundo. Bem poderia trazer um código de barras na moleirinha para melhor se ver catalogado neste gigantesco armazém em que nos confinamos. Falo no plural porque lidamos aqui com processos que escapam ao âmbito daquilo a que tradicionalmente se chama a vontade individual ou colectiva.
Também podemos prescindir da categoria ética da dignidade. Lembrando o cantochão kantiano: a dignidade seria o próprio o que não tem valor ou preço, do que está acima de qualquer valoração possível, algo que estaria acima de qualquer valor, por mais elevado. Mas a própria filosofia kantiana já está impregnada pelo sémen que gerou o actual sistema do mundo: a Razão completamente desprovida de carnalidade, instituidora dum desejo sem motivo e sem indeterminação, uma Razão arrancada ao seu elemento ‘natural’ – o Espírito. Mas não se trata do Espírito amarrado à logomaquia finalista que acabará por dar no hegelianismo, mas o espírito sem mais para além do mais que ultrapassa sempre tudo, o leve excesso que transborda qualquer envasamento mental (e não só).
Entre nós temos o ‘Homem Sonae’, essa espécie de sobre-homem que procura pôr em prática a cartilha do engenheiro Belmiro, a troco dum emprego mal pago numa qualquer grande superfície ao serviço do consumismo geral. E não faltam vozes a defender que essa cartilha possa servir de base principial ao nosso sistema educativo. Nada que não acabará por acontecer, vendo bem o sentido para onde caminham as coisas.
Mas a cartilha do senhor Ingvar Kamprad também poderia servir para esse efeito. Só tem nove ‘mandamentos’. Para não ser repetitivo só me vou referir a três:
Primeiro mandamento: ‘oferecer uma ampla gama de artigos a preços acessíveis à maioria’. A minoria que se lixe, se não puder comprar, a conformidade social é para quem consome, não para quem se consuma. E nada mais importante do que ‘oferecer uma ampla gama de artigos’, o consumismo vive da diversidade do mesmo. Uma mesa é uma mesa e serve para o que serve uma mesa, mas há que dar a volta ao texto, pintalgar aqui ou ali, tirar ou pôr pernas, alimentar a gula adventícia do cliente, servir-lhe o mesmo com um lifting que o torne menos habitual. E a felicidade da maioria está em poder mergulhar nessa orgia industrial em que se lhe oferece um manancial de artigos, na sua forma mais orgástica - o levar tudo numa caixa que se pode abrir em casa e, no caos dos parafusos, das peças por montar, dos folhetos em Sueco e Português desmantelado, participar na febre da produção, montar peça-a-peça o móvel barato que vem investido da mais-valia de servir para mais do que uma função utilitária, já que a sua função principal é a de fundar um modo de vida, legitimar uma forma de apropriação de si e do mundo, daí a adesão da maioria a este tipo de oferta. As pessoas ao montarem um móvel Ikea sentem que se completam, mesmo que façam a batota de contratarem a montagem do móvel. É quase o mesmo que fazer uma lipo-aspiração em vez de ir correr à volta do quarteirão. Evita-se a caca de cão e tem-se menos maçada.
Segundo mandamento: ‘cultivar o 'espírito IKEA'. Qual honrar pai e mãe, esbracejar pela Pátria, amar a Deus, ou reverenciar qualquer coisa que se assemelhe a algo não mercantilizável… Por mais que se mate e destrua por cegueira patrioteira ou fideísta, amar parece-me, no meu modo de ver que a terra há-de comer, muito superior ao cultivar do espírito IKEA, “baseado no desejo de renovação, na atitude de poupança e na humildade que caracterizam o fundador”. E poderíamos ficar com o pai e com a mãe, amá-los, só por si, já ajudaria a que nos tornássemos melhores. Mas reconheçamos que este fundador parece um pouco melhor do que o nosso Belmiro porque ao desejo de renovação e à atitude de poupança alia a humildade. Mas, no fundo, trata-se, em ambos os casos, de fascismo de polichinelo, o único que pode passar pelos interstícios dos inúmeros filtros de que se mune a nossa aceitação deste mundo como o único possível, mas trata-se dum totalitarismo tão brutal quanto o ‘outro’. O lema do ‘fundador’ - «A família como empresa, a empresa como família» - poderia passar por um lema do Terceiro Reich, isto sem abuso hermenêutico. Não me prendo a qualquer conceito de família, mas é importante que o amor vivido através de laços mais fortes que qualquer tragédia ou cataclismo não seja comparado à relação entre membros duma organização empresarial. Uma empresa não é uma igreja ou uma comunidade unida por uma intencionalidade espiritual e ‘empresarializar’ a família é uma forma radical de expropriação da vida, tornada propriedade sem dono, completamente sujeita ao desapossamento ontológico em que consistem os vínculos laborais nesta sociedade anómica. Esta forma de fanatização dos trabalhadores/empregados/funcionários é um sintoma de que se calhar já não prestamos para nada que valha a pena.
Terceiro mandamento: ‘utilizar os lucros como recursos’. Ou seja, o lucro não é um fim em si, mas a manutenção do sistema gerador de lucro, o lucro é a razão de ser de todo o dispositivo empresarial-libidinal, mas só porque permite a perpetuação do estado de coisas resultante da implementação deste eficientíssimo sistema de moral. E o ‘fundador’ é poupadinho, não por uma virtude de carácter, mas porque gastar não faz parte da sua economia libidinal, não é algo que lhe dê prazer ou lhe aumente o gozo existencial. Ora, estamos face a algo que ao qual se recusa o estatuto de mercadoria, a própria disposição que instaura um regime de mundificação do mundo. Já não se trata duma instituição religiosa ou metafísica, mas meramente funcional e económica. Hoje é a economia que é o ópio do povo. Paradoxalmente, só poderemos ser marxistas abandonando o terreno do materialismo. O que significa que o sistema de subjugação ‘ganhou’: ser materialista reforça o sistema instaurador de alienação e de exploração. Uma embrulhada…
E não adianta brandir a ‘Cultura’ contra este estado de coisas, porque mesmo a cultura com ‘C’ grande está perpassada por um largo espectro de dinamicidades de mercantilização. Por maior que seja o ‘C’, não há fuga. Porque a atitude correcta não é a fuga, mas o investimento na presença, o fortalecimento da eudemonia, porque o sentido da criação cultural não é o lucro ou qualquer tipo de mais-valia egolátrica, mas o excesso, a demasia, a diferenciação não reprodutível.
Talvez já só o demo nos possa salvar.
E depois, quem precisa de Salvação?
A Perdição é um salto/salvamento, um não querer mais que bem querer…
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
in "Setembro dos Desgarrados"
O leite era de quem tivesse sede. Com a chegada do tempo medido, a garrafa passou a ter dono. O litro passou a ser dividido como o tempo daquele novo presente.
João sonhava com um sino numa igreja a badalar de hora em hora. Em cada casa um relógio a marcar a hora do regresso a casa.
A criança chorava em horas marcadas. De duas em duas horas pedia o peito da mãe.
Quando cada coisa tem um tempo acordado, nasce a pressa do tempo esgotado. (...)
(...) Pouco a pouco, mais depressa que nunca Setembro se organizava. A ordem tomava conta de cada esquina. Sem demora em cada casa uma nova rotina. Igual aos lugares da partida.
Na cama as mulheres passaram a fazer contas. Depois da menstruação o amor passou a ter dia marcado para a procriação.
Nos outros dias – descansavam. Os intervalos ganharam o enfado.
E se a vizinha achava que estava de esperanças, raivosas as outras rogavam pragas aos maridos incapazes.
Veio o esquecimento do tempo sem pressa. (...)
(...) - Um dia morres miúda!
- Esse dia existe mamã?
- ?
- O dia de morrer… Existe isso mamã? Ouvi dizer que tudo é vida.
- És muito nova para perceber. Mas um dia alguém vai te explicar melhor que eu.
- Esse alguém fez o curso da Morte? Porque ouvi dizer que tudo nasce e morre e volta a nascer. Parece que é o curso da vida… Não percebi nada, mas ouvi.
- Vá Canela. Despacha-te que chegas atrasada a escola…
(...) in Setembro dos Desgarrados
Conferências Democráticas - Ética Global: uma perspectiva intercultural, dia 28, 21 h
Uma Visão Armilar do Mundo
"Uma Visão Armilar do Mundo: a vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva"
Este livro é uma reflexão acerca da vocação universal de Portugal, em diálogo com alguns dos seus maiores poetas, profetas e pensadores: Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.
Este Portugal e esta vocação designam, num sentido, a predisposição para uma convivência planetária, mediadora de um novo ciclo cultural e civilizacional, sob o signo de uma globalização ético-espiritual, contrastante com a económico-tecnológica. Noutro sentido, esta visão de Portugal assume-o como símbolo do próprio homem em busca de se realizar plenamente.
A isto se chama Uma Visão Armilar do Mundo, conforme o símbolo que tremula na nossa bandeira: a perfeição, plenitude e totalidade da esfera e, nas suas armilas, a interconexão de todos os seres e coisas, tradições e culturas, artes e saberes. Muito antes de ser o emblema de D. Manuel I, é essa a maior fecundidade simbólica da Spera Mundi, Esfera e/ou Esperança do Mundo: ao invés do nacionalismo ou patriotismo comuns, a cultura portuguesa e lusófona tenderia a converter muros em pontes, fronteiras em mediações, limites em limiares, numa abertura ao planeta e ao universo, a todos os povos, nações e seres, a todas as línguas, culturas, religiões e irreligiões. Uma visão armilar do mundo é uma visão-experiência integral e holística do mundo, sem cisões, exclusões ou parcialidades.
Numa era celebrada como multicultural, mas ainda tão cega para o entre-ser universal, aqui se invoca a Esfera Armilar como actual paradigma da reinvenção de Portugal como nação de todo o mundo, que vise o melhor para todos, uma cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, que não separe o bem da espécie humana da preservação da natureza e do bem-estar de todas as formas de vida senciente.
umoutroportugal.blogspot.com
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
A DESPEDIDA
- De novo Dona Maria! Por onde anda a sua cabeça?
Os últimos meses de Maria passaram-se numa busca constante aos pedaços de corpo que perdia em cada um dos seus passeios à rua. A perna esquerda brigava com a direita, o braço direito tomava partido num pranto sufocado entre lamurias. Tantas lutas perdidas, mil desculpas exclamadas. Todos pecados em catadupa a comporem a culpa.
Foi um pedaço de mulher. Nas horas vazias gritava por Deus, nas outras fingia. Nas horas fingidas amava.
Com a idade seu corpo foi-se fazendo à tormenta. De madrugada acordava com uma perna encostada à cabeça. Perdida no tempo cegou o futuro.
- João! Agarre a perna que ela se perde. ..
- De novo Dona Maria? E a coleira que o sr. Nuno lhe deu?
- Está na perna direita
Com um sorriso desajeitado levantava a saia mostrando a perna acorrentada.
- Está muito apertada, Dona Maria. Assim estrangula.
- Doutra forma a perco, João.
A memória despediu-se quando Maria deixou de saber coordenar os seus membros. Inventou o passado só para poder sentir saudades do que nunca viveu.
Um dia sossegou. Quieta na cama esperou. Sempre lutou contra todas as despedidas, mas essa era por fim bem vinda.
As pernas deixaram-na estar descansada, os braços abraçaram seu peito delicadamente, a cabeça largou-se sem medo entre os ombros, o ventre sempre tão dilatado deixou de brigar.
Maria sorriu na partida. Sozinha.
Desabrigado
Da janela do meu quarto via o senhor José todos os dias. Umas vezes deitado, enroscado feito criança. Doutras sentado de olhos fechados. Nas pernas o chapéu barrento pedia a esmola. Na boca um obrigado apressado. Não me lembro de o ver comer. Não sei de cor o cheiro daquele homem que acompanhou minha infância. Sinto frio quando me lembro do seu corpo durante o Inverno. No chão, restos de papelão. No corpo, um cobertor velho.
No Verão tirava o casaco e mostrava sem pudor uma camisa sem cor.
Mudei de casa sem me despedir. Certa que um dia voltaria e ele estaria por lá. Afinal a esquina era dele.
Sempre pensei que os homens que dormem na rua, na rua nasceram.
Hoje quando me deito sufoco de medo. Se me tirarem o cobertor não passo deste Inverno.
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
Manifesto Refundar Portugal e Movimento Outro Portugal em Alhos Vedros
Escola Aberta Agostinho da Silva - Alhos Vedros
Correspondendo a um amável convite, apresentarei e debaterei com a assistência o Manifesto "Refundar Portugal" e o Movimento Outro Portugal, que visam reinventar Portugal como uma nação de todo o mundo, que estabeleça pontes, mediações e diálogos entre todos os povos, culturas e civilizações e promova os valores mais universalistas, conforme o símbolo da esfera armilar. Há que visar o melhor possível para todos, uma cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, orientada não só para o bem da espécie humana, mas também para a preservação da natureza e o bem-estar de todas as formas de vida senciente.
Entrada Livre
Compareçam e divulguem!
umoutroportugal.blogspot.com
Petição "Chegou a Hora de Agir - Uma Declaração Budista sobre as Alterações Climáticas"
Uma petição pelo bem do planeta e de todos os seres sencientes, incluindo o homem.
o deus palhaço iv
viva a revolução.
(platero os donos do petróleo não mandam na justiça).
15º Encontro Inter-Religioso de Meditação
Centro de Estudos da Ordem do Carmo – R. St. Isabel, 128 (ao Rato)
É com muita alegria e empenho que a Comunidade Mundial de Meditação Cristã anuncia a realização do próximo Encontro Inter-Religioso de Meditação.
Convidamos todos os membros da nossa Comunidade bem como os membros das outras tradições religiosas, a virem viver de novo a experiência de procurarmos no mais profundo silêncio e quietude e em total comunhão entre todos o encontro com o que para cada um de nós for o mais sagrado e o mais pleno.
“O objectivo pleno da meditação, segundo a visão cristã, é abrir-se simplesmente á presença de Deus nos nossos corações” - John Main
A sessão iniciar-se-á às 18,30h com breves leituras de textos espirituais de cada tradição, intervaladas por 1 min. de silêncio, seguindo-se 25 minutos de meditação. Terminaremos com uma pequena prece colectiva pela paz e pela união entre todos.
A Comunidade Mundial de Meditação Cristã
http://www.meditacaocrista.com
mcristinags@netcabo.pt - tel: 218488259 /Tm: 9194505775
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
desnuda pela chuva,
e de novo coberta, e novamente nua.
Umas vezes em gelo onde mal piso escorrego,
noutras tão fofa que me enterro e gelo.
Encosto-me à árvore.
Quanto mais velha - mais bonita.
E há aquelas que duram quase uma eternidade.
É nela que me abraço e esqueço.
Tiro o casaco,
jogo fora o lenço
faça neve, faça sol
já não me importo.
Uma cereja suculenta salvou
um homem de se matar
Com a cereja escorrendo pela boca,
viu o sol,
abanou a árvore,
deu de comer às crianças na rua.
o deus palhaço iii
á luta
Constituição e antropocentrismo
domingo, 24 de janeiro de 2010
mortos
incrível população!
Somente numa praça.
Estáticas, posadas
mil estátuas marciais.
Nas casas de comércio, de cultura
palácios, templos, hospitais
estátuas, sim, estátuas
sem os rústicos cuidados manuais
destituídas de engenho e arte.
Ruas inteiras congestionadas
metrópoles, países.
Cordilheiras de estátuas pesadíssimas
ora de ouro e prata fabricadas
estátuas de cristal:
proliferam demais
Espantalhos de pedra mantidos
para medrar as flores.
Não se transita mais
senão entre rochedos.
Este Planeta vai rachar
de tanta penedia.
Observem
Conselhos
Ordens, doutos
cátedras, os Júris.
Há estátuas falando, aplaudindo.
Nomeiam-se estátuas.
Atenção para os conceitos de granito:
defendem-se em carne!
A essência dos deuses, carne apenas.
Reúnem-se estátuas todo dia.
Existem comissões formadas só de rochas.
Há estátuas de elite planeando.
Metamorfose tristíssima de ontem:
Um artista virou também.
E as últimas notícias dão-nos conta
que uma senhora queria parir pedras.
Está difícil encontrar um homem.
Não se conversa há tempo sobre ossos.
O grito é som antigo:
Sombria peça de museu da História.
O pranto: uma loucura.
Por não se ver sangrar o coração
sabe-se de memória só
vermelho o sangue.
Quanto ao Âmago do Homem
- Espírito ou Ser –
dizem estátuas
que são coisas mortas..."
Tempo de Estátuas, César de Araújo
Silencioso Rodolfo aparece cabisbaixo – de certeza que fez alguma asneira – lentamente coloca-se a jeito, ao meu jeito em frente à porta.
- Pesa-te a consciência? Vá, não disfarces conta logo o que fizeste.
Luísa levou meu Mrozek. Fazia-me bem ler agora O Homem na Gaiola.
- Vá não te estiques Rodolfo. A mentira tem perna curta. A vida não tem rascunho. Não podes passar a vida a pensar que desenhas um esboço. Gaita quando vais aprender?
Silêncio. No horizonte de Rodolfo somente o chão – sujo ou limpo sempre chão. Seu corpo se contrai. Em cada gesto um apelo ao perdão. Dança ao som da censura como
se o caminho só fosse castigo.
Desesperada resmungo um palavrão.
- Não há paciência! E tu repetes o erro como se fosse esse o acerto … Vá não dizes nada? Ainda por cima fazes censura à fala?!
Abriu um vazio no chão da escada. Redondo, profundo, estreito como se fosse a garganta do Atlas. Sem fim.
Rodolfo se estica cansado.
- Vá Rodolfo anda vamos à rua… Prometo que não te coloco a trela…
AMOR SEM LIMITES
E se Deus for (fosse/vier a ser) Gay?
A propósito da polémica em torno das noivas de Santo António...
Não há nenhum entrave teológico a que Deus possa decidir sair do armário.
Encerrado que está em tantas caixas de preconceito e intolerância, Deus, se existir, terá uma tarefa complicada pela frente sempre que quiser comunicar com aqueles que acreditam nele.
Para alguns só seres que usem saias podem contactar directamente com Ele. Mas esses seres não podem ser mulheres. Têm que ser homens de barba rija que se abstêm de qualquer actividade sexual, mesmo que nela não envolvam terceiros.
O que parece que exclui o Príncipe Carlos que, de vez em quando, usa saias. Se bem que tenha umas orelhas que lhe permitiriam dedicar-se à escuta dos divinos ditames, parece que Deus não quererá nada com ele enquanto a sua matusalénica mãe não se decidir a passar-se de vez para o outro mundo. E isto dando de barato que a Igreja Anglicana é mesmo uma Igreja.
Ora, o que parece ser um sarilho teológico é a Humanidade precisar de procriar e, por isso, ter que chafurdar entre lençóis nas safadezas do sexo. Mais valia os homens não precisarem de se dar com mulheres. Não fosse o Adão chorar baba e ranho nas profundezas do seu inferno terreal, mesmo no centro do Paraíso, e uma das suas costelas não precisava de ser transformada numa tentação com pernas.
E se o Adão não se tivesse rebelado em relação à sua condição de homossexual? Caro leitor, não estou a abusar da sua paciência: o facto de só existir um homem, não tendo ainda sido inventada a mulher, essa criatura improvável, não significa que esse espécime nascido directamente da operosidade divina, pudesse, sequer, pensar em gostar de mulheres? como terá sido criado com todas as pendurezas que hoje ainda são bem evidentes até no mais requintado metrossexual, se tivesse vindo de origem com uma libido funcional, para quem se viraria ele? Se existisse outro ser igual a si, se calhar não se faria rogado. Não havendo, teria três opções: o onanismo, o bestialismo ou a teofilia. Sim, caro leitor, Adão poderia ver no próprio criador um foco de investimento objectal. Talvez a invenção da mulher tivesse sido um estratagema homofóbico. Quem sabe?
O que nos remete para o problema, muito bem colocado por Alberto Costa, das noivas de Santo António, em reacção à imprudência dos serviços camarários. Que um evento com o timbre do Estado Novo tenha voltado em força para povoar o imaginário popular com a propaganda ao casamento dos heterossexuais (embora com a inovação progressista dos casamentos pelo civil) não parece causar quaisquer problemas a um presidente da câmara socialista. Mas como é que se poderia arranjar noivas num casamento entre homens? Talvez os casamentos lésbicos pudessem fazer aumentar exponencialmente o número de noivas, o que deixaria, de certo, muito contentes os patrocinadores, pois teriam muitas mais fadas do lar no evento, com o mesmo dispêndio de verbas. Mas não se pode discriminar entre homens e mulheres no que diz respeito ao casamento. O que é muito justo. Por isso nem todas as noivas poderão participar nas noivas de Santo António.
Mas Santo António recusar-se-ia a partir a bilha às meninas lésbicas que iam à fonte? Não estaria assim a desmentir os evidentes sinais de precoce santidade que exibia quando, ainda pueril marmanjo, se metia tão descaradamente com as raparigas?
Mas voltando à opção sexual do próprio Deus (mais um argumento em favor da aparente monstruosidade teológica: Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, não foi? Se o criou sexuado… Até o Descartes seria incapaz de descogitar esta conclusão…): Deus será, se existir e se tiver tomado uma opção sexual, teossexual, teófilo, por assim dizer. Mas aí talvez fique explicada a criação do homem. Não podendo criar outro Deus para com ele se antecipar ao argumentista do brokeback mountain, não terá sido por isso que das suas mãos saiu esse boneco de barro que hoje olhamos com desdém, 150 anos depois da publicação da Origem das Espécies. Seria uma espécie de boneca insuflável dos tempos antediluvianos? Talvez…
E o Paraíso Terreal poderá ter sido o cenário duma espécie de Peep-show. Pode bem ser que estejamos perante um Criador voyeurista. Nesse caso a mulher deu cabo do espectáculo. Foi uma intrusa no meio dum cenário elaboradíssimo. E a coisa deu para o torto. Ou o espectáculo estava montado para a coisa dar para o torto. Mas não vou entrar por aí para não ter que me ver com o caos da Patrística e as agudezas do problema do livre-arbítrio. Pena que naquela altura ainda não existissem jornalistas da SIC a promover petições a pedir ajudas tecnológicas para a arbitragem. O melhor seria já existirem essas coisas logo nos primeiros instantes da Criação. A coisa talvez teria saído mais escorreita… Imaginem um mundo em que o dióxido de carbono não provocasse o efeito de estufa, ou composto só de duas ou três espécies de bicheza para calar por antecipação os chatos dos ambientalistas sempre a clamar contra o fim da biodiversidade. Mas convenhamos que a criação do Adão sem um par foi um golo na própria baliza. Isso parece-me irrefutável.
Tanto atabalhoamento é como terem deixado entrar um emplastro numa megaprodução do Cecil B. Demille. Imaginem o Cromagnon de direita, defensor acérrimo da posse de armas, a fazer de Moisés, com as tábuas da Lei no ar, pronto a dar vazão à sua birra de quem viu Deus e ninguém quis saber, e lá ao fundo, um fulano português a gritar «Pinto da Costa olé, olé…».
Mas se a História tiver um sentido teodiceico, e ninguém pode negá-lo em absoluto, talvez o Criador possa chegar à conclusão de que o melhor é assumir de vez a sua tendência para sobrestimar o lado masculino das coisas. Mas talvez venha até a ser excomungado pelos seus mais poderosos representantes. «Não há lugar aqui para um Deus teófilo, fim à teofilia!».
sábado, 23 de janeiro de 2010
"Temo-nos tornado cada vez mais semelhantes a eremitas andando pelo mundo, tentando desesperadamente aproximar-mo-nos uns aos outros, mas sendo cada vez menos capazes disso. Um mistério para nós mesmos, divorciada da natureza e isolada dos outros seres humanos, nossa moderna consciência espectadora é tanto uma bênção quanto uma praga."
Schaefer e Voors, Desenvolvimento de Iniciativas Sociais, Instituto Fonte, 2005
FEBRES DE SÃO TOMÉ - Junho 2005
Veio do mar aquele que um dia roubou um pedaço de mim. Parti sem saber meu destino.
- Dona este é o caminho da Boa Morte
- E depois sr Manuel?
- Dona depois é o cemitério de São João
- Me deixe ficar por aqui Manuel, se boa é a morte
- Dona o doutor vai saber que malária é essa que lhe morde a alma
Entre o hospital da cidade de São Tomé e a casa de Daio não sei o que aconteceu. Ouvi o médico cubano segredar que o meu mal só ocupava lugar. Na esquina da dor quase atravessei a morte.
2
Na ilha, na casa de Jesus Nosso Senhor há uma porta de entrada e outra de saída. Tão perto uma da outra – por vezes quem entra esbarra em quem sai. Entrei na casa de Deus - saí em busca de um atalho.
As estradas de São Tomé apodrecem – o alcatrão luta contra os buracos.
- Dona – cuidado! Maria deitou-se com José, veja só o pecado...
Quem me mandou sair do santuário?
- Se aquiete homem, também me deito com Cristo e ninguém me leva ao inferno...
- Dona – cuidado!
As estradas de São Tomé morrem devagar – preguiçosas.
3
Desço a rua do Quilombo, viro à direita passo o Papa-Figo, para trás um horizonte perdido. Na minha frente o mar. Daio está no Passante
- Branca, branca....
Queria que minha a cor fosse como a de Daio – negra.
- Branca, branca...
4
Procurei em Daio meu amor perdido noutra ilha. Vi a malária matar os corpos jovens de São Tomé. Tantos brancos ousaram inventar a sina daqueles que a cor ditou a dor. A branca histérica pregou que o racismo não existe. O preto desviou o olhar - sofreu em silêncio.
- Dona fique por cá...
Os olhos de Daio não mentem. Vejo nele a memória do seu povo. Cada grito calado, cada lágrima contida. Um dia matam todos os africanos.
Quero de Daio a revolta escondida. Lamento constante. Resistência passiva.
- Dona fique por cá...
Quis de Daio cada carinho roubado. Daio triste olhou o vazio. Procurei uma chama, calor de um tempo passado. Daio triste olhou o vazio.
- Dona fique por cá...
- E o que tem essa ilha perdida para além das tristezas vividas?
- Não tem passado. Minha geografia – o vazio.
No regresso à casa, Lisboa quero-te de novo vestida de véu e grinalda!
Mostra-me que também aqui é possivel amar.
Tenho sono. Saudades de São Tomé.
Diz-me Cleo se o teu planeta é melhor do que este que destruímos com tanta pressa?.
sexta-feira, 22 de janeiro de 2010
Do declínio de Portugal a um Outro Portugal
Portugal nasceu, desenvolveu-se, expandiu-se e declinou sob o signo da violência contra o outro: leonês, castelhano, árabe, indígenas colonizados. Esse ciclo terminou em 25 de Abril de 1974 e nele um Portugal morreu. Desde então até agora estamos num Limbo, sem poder ser aquilo que estávamos habituados a ser e sem vislumbrar outra alternativa senão a ausência de alternativas do produtivismo-consumismo europeu-ocidental.
Este Limbo é a possível sementeira de um Outro Portugal. Um Portugal solidário com tudo e todos, um Portugal-solidariedade, um Portugal armilar, um Portugal-Universo. O que jamais será o Portugal do Estado ou da sociedade portugueses, mas sim o Portugal alternativo gerado pela comunidade dos portugueses despertos. É a Hora de dar à luz esse Portugal!
umoutroportugal.blogspot.com
Um coração feito em pedaços
Não me podia queixar de falta de sorte. Heloísa nunca incomodava. Às vezes sinto saudades do barulho dos miúdos. Do bater de portas zangadas. De Augusto a gritar:
- Vou-me embora! Esta casa é um caos. Já viste a prenda que o Vodka largou na cozinha? Não tens dinheiro para pagar a luz e arranjas um cão à mistura!
Augusto preocupava-se tanto comigo! Tinha mesmo de levar as mãos ao céu e agradecer a minha sorte. Amor assim não se encontra na esquina. Nem está à venda no boticário.
Um dia partiram todos. Os miúdos cresceram e avisaram que iam viajar. Não me lembro para onde. Sei que até hoje ainda não voltaram. A verdade é que já nem lembro bem quando foi. Sei que chorei quando beijei cada um na face. Nunca entendi porque existe um dia em que todos se vão. Não entendo porque fiquei sem ter para onde ir.
- Os caminhos são para aqueles que caminham…
Era assim que Augusto falava quando se deitava.
- Um dia meu caminho será fora desta estrada, e tu ficas por cá com esse passo pequeno que nunca se atreve a nada…
Acho que a casa tornou-se pequena. Um dia Augusto estava no outro lado da estrada e gritou-me:
- Maria mesmo que eu queira os meus pés já não chegam até casa. Meu corpo manda seguir outro caminho. Tenta ser feliz, Maria. Calça outros sapatos. Deixei-te os meus velhos no armário. Experimenta. Pode ser que entendas…
Sorri com o disparate. Augusto tinha um sentido de humor invejável. Já passavam das sete da noite, quase hora do jantar.
- Augusto olha que o jantar fica frio. Despacha-te…
Mas o corpo de Augusto seguiu outro caminho. Quando acreditei que era verdade, fui ao quarto e calcei os velhos sapatos do meu marido. Tão grandes! Ainda tentei caminhar pelo quarto, mas tropecei em todos os passos. Aqueles sapatos nunca me levariam a lugar nenhum.
Assim fui ficando, tomando conta dos filhos – todos homens. Um dia também eles partiram. Não sei se a vontade de ir é uma herança genética. Não sei se é de Augusto, ou se é uma coisa mesmo que só os homens gostam de fazer. Nenhum deles calçou os sapatos de Augusto e no entanto partiram.
Meus pais sempre me ensinaram a não reclamar da vida. Se era assim que acontecia é porque tinha de ser. A dor é só para aquelas pessoas que conheceram outra coisa que eu nem sei o que é. Assim fiquei eu e o Vodka.
A casa ficou grande. Dava mais trabalho limpar todos os quartos. E a cozinha então! Perdi a vontade de comer, afinal lavar a louça era mesmo penoso. Antes era tão fácil. Havia almoço e jantar. E quando os miúdos eram pequenos havia o lanche da tarde. Todos os dias um prato novo. Augusto não admitia comer a mesma coisa do dia anterior. Que tempos aqueles! Nunca me cansei. No entanto agora, tudo me custa. Se não fosse o Vodka acho que nem sapatos para ir a rua eu calçava.
Heloísa é neta de Cesária, uma velha amiga de Augusto. Cesária telefonou-me a perguntar se não queria alugar um dos quartos, pois a neta vinha trabalhar para a capital. Fiquei tão feliz! Afinal depois de tantos anos sozinha voltava a ter companhia.
Heloísa é tão jovem! Bem-educada, sempre atenciosa mas tão calada quanto o silêncio que reina nesta casa desde que todos se foram.
Cheguei à conclusão que assim como os homens partem as mulheres permanecem caladas.
Levanto-me e vejo Heloísa, como sempre calada. Nas suas mãos pedaços vermelhos de uma coisa que não reconheço.
- O que tens miúda? O que é isso na tua mão?
Lentamente levantou o olhar. Sem cor. Sem brilho. Heloísa respondeu-me:
- Trago meu coração aos pedaços.
- Como assim?
- Sentei-me sem vontade. Amei sem desejo… Tudo o que fiz, foi porque obrigaram-me. Hoje no espelho um pedaço do meu coração estalou! Fiquei assustada, mas sabe que foi um alívio? Menos uma dor. Depois outro pedaço e mais outro e outro e outro! Fiquei sem ar, Maria. Em menos de meia hora todo o meu coração aos pedaços nas palmas da minhas mãos. Não faço a menor ideia de como recompô-lo. Nem sei quem pode ajudar-me. Os médicos nem acreditam que isto é o meu coração em pedacinhos mil.
Enquanto acariciava cada pedacinho, Heloísa murmurava:
- Este foi quando…
A dor tão igual à minha ou à dele, o amor que partiu, a mãe que morreu, a fome, a criança sem escola , o holocausto, os filhos na guerra, a bomba assassina, a morte, os homens perdidos, um artista sem arte, a miséria, e esta e aquela, o Haiti em morte lenta na TV…
- Ai, que esta dor que também é minha Heloísa!
Meu coração estala feito o dela, meu corpo sente o que nunca sentiu. Esta dor que me adormeceu. Os sapatos que nunca ousei vestir…
Nas mãos de Heloísa reconheci quando Augusto partiu, e quando Francisco avisou-me que seguiria os irmãos.
De repente Heloísa sorri.
- Olha Maria, aqui foi quando eu fui feliz…
A mesma felicidade que a minha, ou que à tua, ou igualzinha à dele, um filho que nasceu, um beijo na boca, um abraço sem fim, um povo sem fome, um animal que acabou de ser salvo, uma vida assistida, o sopro da arte, a ilha dos amores…
- Em cada pedaço um abraço Heloísa. É assim que gentilmente refazes esse coração que não é só teu.
Amanhã vou comprar uns sapatos novos.
frágil momento de luz
na inebriante música dos gestos que somos
embriaguez de esplendor
além de todas as palavras
no silêncio da beleza que nos envolve
é cada vez mais o vazio e menos o que nos separa!
abraço a todos