O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 2 de abril de 2012

DÁ QUE PENSAR

Eu e o mundo – há que pensar
As rodas do mundo sobre a lama do tempo
Deus limpando os olhos da maresia
Cansado de tanta vigilância permanente

Hoje aqui agora sempre
O merceeiro a roubar
Nos pesos e no preço da mercadoria

Deus
Controlando as ondas
Do mar
Da rádio
Da televisão
(e a fome
Será que foi de vez banida do mundo
Ao menos da Etiópia? )


Deus cansado De(u)scansado ?
Quiçá manco
Correndo a toda a volta
Da Terra
Aqui sintonizando os rádios
Ali desligando aquecedores em casa de idosos
acesos por incúria

Eu tentando um lapso
Uma pequena aberta nesta azáfama
Para puxar a Deus pela aba do casaco
- há que pensar
O stress
Não há já quem disponha
De um simples minuto para nos atender

Ou chegamos
Com um bom negócio em mãos
A casa das pessoas
E as portas se escancaram
Para os maples
Para o fogão de lenha
Para as paredes com o "menino com lágrimas"
ou
Deus – dá que pensar

Todos os amigos
Estão permanentemente absorvidos
E nós – o mundo –
Ou caímos no enxofre das tabernas
Para a sopa de grão e o vinho tinto
Ou caímos nos maples dos menos amigos
Na periferia
De uma família fria
Frente à luz a cores do aparelho de televisão

Só vi deus duas vezes:
A primeira andaria pelos meus dez anos
Fui roubar ameixas
À quinta de um vizinho
E um velho muito velho
Com o indicador em riste me apontou:
Menino isso não se faz

Sumiu-se o velho
Por detrás do fuste das ameixieiras
E uma pancada forte na cabeça
Fez-me ver estranhas luzes
E ouvir
Um interminável som de campainhas

Pela segunda vez, e última , que vi Deus
Foi num exame de Química no Liceu
Tinha que manusear um ácido qualquer
Muriático se a memória não me falha
E de tal ordem desastrada foi a minha prova
Que o laboratório se encheu de um fumo estranho
Fosforescente e a cheirar a enxofre
E o pobre professor
Me pareceu levitar de costas para o tecto
Segurando um bastão
Semelhante em tudo ao báculo
De Deus

Acho que não mais O vi
A despeito de algumas aflições ao fim do mês
E de certos pecadilhos
Que de vez em quando lhe confesso
Por e-mail

Por isso Deus
para mim
- dá que pensar

4 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Mau gosto, pá! JCN

platero disse...

JCN

porreiro, pá

amigo é o que diz o que pensa
do amigo
sem precisar de pensar
o que vai dizer

grande abraço

João de Castro Nunes disse...

Exactamente, pá! JCN

Thuan Carvalho disse...

Muito bom.

Com o mundo nessa monta, sobre os afazeres de Deus, dá que pensar...