sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Canto Órfico
A dança já não soa,
a música deixou de ser palavra,
o cântico se alongou do movimento.
Orfeu, dividido, anda à procura
dessa unidade áurea, que perdemos.
Mundo desintegrado, tua essência
paira talvez na luz, mas neutra aos olhos
desaprendidos de ver; e sob a pele,
que turva imporosidade nos limita?
De ti a ti, abismo; e nele, os ecos
de uma prístina ciência, agora exangue.
Nem tua cifra sabemos; nem captá-la
dera poder de penetrar. Erra o mistério
em torno de seu núcleo. E restam poucos
encantamentos válidos. Talvez
um só e grave: tua ausência
ainda retumba em nós, e estremecemos
que uma perda se forma desses ganhos.
Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe,
braços do não-saber. Ó fabuloso
mudo paralítico surdo nato incógnito
na raiz da manhã que tarda, e tarde,
quando a linha do céu em nós se esfuma,
tornando-nos estrangeiros mais que estranhos.
No duelo das horas tua imagem
atravessa membranas sem que a sorte
se decida a escolher. As artes pétreas
recolhem-se a seus tardos movimentos.
Em vão: elas não podem.
Amplo,
vazio
um espaço estelar espreita os signos
que se farão doçura, convivência,
espanto de existir, e mão completa
caminhando surpresa noutro corpo.
A música se embala no possível,
no finito redondo, em que se crispa
uma agonia moderna. O canto é branco,
foge a si mesmo, vôos! palmas lentas
sobre o oceano estático: balanço
de anca terrestre, certa de morrer.
Orfeu, reúne-te! chama teus dispersos
e comovidos membros naturais,
e límpido reinaugura
o ritmo suficiente, que, nostálgico,
na nervura das folhas se limita,
quando não compõe no ar, que é todo frêmito,
uma espera de fustes, assombrada.
Orfeu, dá-nos teu número
de ouro, entre aparências
que vão do vão granito à linfa irônica.
Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa
atmosfera do verso antes do canto,
do verso universo, latejante,
no primeiro silêncio,
promessa de homem, contorno ainda improvável
de deuses a nascer, clara
luz no céu sem pássaros,
vazio musical a ser povoado
pelo olhar da sibila, circunspecto.
Orfeu, que te chamamos, baixa ao tempo
e escuta:
só de ousar-se teu nome, já respira
a rosa trimegista, aberta ao mundo.
(Carlos Drummond de Andrade. In: Poesia Completa. RJ: Nova Aguilar, 2003, p. 412-414)
a música deixou de ser palavra,
o cântico se alongou do movimento.
Orfeu, dividido, anda à procura
dessa unidade áurea, que perdemos.
Mundo desintegrado, tua essência
paira talvez na luz, mas neutra aos olhos
desaprendidos de ver; e sob a pele,
que turva imporosidade nos limita?
De ti a ti, abismo; e nele, os ecos
de uma prístina ciência, agora exangue.
Nem tua cifra sabemos; nem captá-la
dera poder de penetrar. Erra o mistério
em torno de seu núcleo. E restam poucos
encantamentos válidos. Talvez
um só e grave: tua ausência
ainda retumba em nós, e estremecemos
que uma perda se forma desses ganhos.
Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe,
braços do não-saber. Ó fabuloso
mudo paralítico surdo nato incógnito
na raiz da manhã que tarda, e tarde,
quando a linha do céu em nós se esfuma,
tornando-nos estrangeiros mais que estranhos.
No duelo das horas tua imagem
atravessa membranas sem que a sorte
se decida a escolher. As artes pétreas
recolhem-se a seus tardos movimentos.
Em vão: elas não podem.
Amplo,
vazio
um espaço estelar espreita os signos
que se farão doçura, convivência,
espanto de existir, e mão completa
caminhando surpresa noutro corpo.
A música se embala no possível,
no finito redondo, em que se crispa
uma agonia moderna. O canto é branco,
foge a si mesmo, vôos! palmas lentas
sobre o oceano estático: balanço
de anca terrestre, certa de morrer.
Orfeu, reúne-te! chama teus dispersos
e comovidos membros naturais,
e límpido reinaugura
o ritmo suficiente, que, nostálgico,
na nervura das folhas se limita,
quando não compõe no ar, que é todo frêmito,
uma espera de fustes, assombrada.
Orfeu, dá-nos teu número
de ouro, entre aparências
que vão do vão granito à linfa irônica.
Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa
atmosfera do verso antes do canto,
do verso universo, latejante,
no primeiro silêncio,
promessa de homem, contorno ainda improvável
de deuses a nascer, clara
luz no céu sem pássaros,
vazio musical a ser povoado
pelo olhar da sibila, circunspecto.
Orfeu, que te chamamos, baixa ao tempo
e escuta:
só de ousar-se teu nome, já respira
a rosa trimegista, aberta ao mundo.
(Carlos Drummond de Andrade. In: Poesia Completa. RJ: Nova Aguilar, 2003, p. 412-414)
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13 comentários:
Renata,
Quem assim surge de Orpheu acompanhada é - por mim falo, que sou do nada e nada - a bem aparecida, a que faltava...
Belo! oh como é belo este poema! e como o escuto maravilhada!
Obrigada, Saudades
Paulo,
Que belo poema de antologia!
:)
Renata, seja bem vinda, do outro lado do Atlântico, a este espaço de todos e ninguém! Grato pela rápida correspondência ao convite para o blogue e para publicar este magnífico poema, que muito agradeço ter-me dado a conhecer. Eu ando a ver se tiro um curso acelerado de literatura brasileira...
Espero que continue a aparecer por cá.
E pode comunicar que o blogue está aberto a quem nele se reconhecer: é só enviar-me os mails que faço chegar os convites.
Aqui se vê... Portugal e Brasil não falam apenas a mesma língua: São a mesma Língua. :)
Qual? A do Amor, pois então.
Renata,
Seja bem-vinda a esta casa onde se acolhe a beleza e o bem.
Inspirada pelo Carlos...
A minha Pátria é a minha Língua
porque ela é o Amor que não vejo
mas que por demais sinto,
sinto-a a vibrar em mim
assim como este Amor
por todo o meu corpo.
Chega quase dançando, traz a música e é atenta escutadora de Orfeu. E não é estranhgeira nem estranha, é daqui e connosco, os que se olham na Poesia. E, como se Orfeu a juntasse, a nós se reúne e canta a Poesia: bela, nova,longa melodia que nos reúne a Outrora sempre Agora.
E junto a minha voz à dos restantes e digo sem bem-vinda Renata!
Um sorriso
Mas porquê Renata? ...
Estarei eu a ler mal... ;)*
bem-vinda, renata. não! Roberta desculpe
Roberta, desculpe ter-lhe trocado o nome!
queridos todos
muito grata pelo carinho
e não se assustem, eu sou sempre chamada de Renata, que não é um acaso não: é que a veia dionisíaca do que renasce está no meu mais íntimo eixo.
fico feliz em fazer parte desse abraço de tantos, pela nossa língua viva e dançante
um beijo
Roberta
Parabéns!...Um abraço!
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