segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Conto de Natal (por causa da quadra)


Era um dia como tantos. Da padaria ao fundo da rua desprendia-se o aroma do pão cozido no secreto da noite, junto ao alcatrão da rua uma leve neblina tornava a vida impensável sem o equilíbrio dos deveres na balança, sempre adulterada, do sacrifício.

O que tinha este dia de diferente em relação a todos os outros era que seria o seu último dia de vida sobre esta terra. Disso João nada podia saber. Acordara como sempre às 5 da manhã sob o influxo do relógio despertador. Um despertar de lata entre as paredes bolorentas do quarto onde o sono o levava a passear para fora do conforto pardacento duma solidão de homem de cinquenta e dois anos, demasiado feito pela vida. A gravata tinha em comum com as calças e a camisa que acabara de vestir esse ar demasiado vincado de roupa tratada na engomadoria, sem rituais de gente que se apruma, só a frieza infalível das máquinas operadas pelas meninas da Rua de S. Brás, recém-caídas no mundo laboral do part-time e do ordenado mínimo. Era uma gravata falsa, com um nó que não se desfazia. Presa por baixo do colarinho azul por um elástico.

O relógio marcava 5 e 45. Faltava pouco para o autocarro parar na paragem do outro lado da rua. À porta da barbearia o relógio a imitar o antigo continuava preso nas 7 e 45. Por essa razão só estava certo dois minutos em cada dia.

João passava grande parte do dia acertado com o relógio da fábrica de rações para animais. A sua função consistia em pesar os camiões que entravam e saíam. Dependia das suas anotações o acerto de contas com os fornecedores. Tonelada a tonelada enchiam os silos o seu bojo. E o ar tinha sempre aquela espessura que lhe era dada pelo pó dos cereais precipitados de grande altura para dentro dos silos. Os bombeiros diziam que havia perigo de explosão, se não fossem tomadas todas as precauções. Davam sempre como exemplo um documentário televisivo que mostrava uma catástrofe provocada pela explosão duns silos de cereais na América. »Eh João! Já viste como ficavas aqui feito em granulado?»

«Vai-te catar, Luís da Maçaneta! Hoje és tu que pagas um copo!» Depois do copo de branco, se fosse ainda antes das 10 da manhã, de Favaios, se estivessem quase na hora de almoço, ou da imperial, se o dia já tivesse entrado na tarde, cada um regressava às respectivas funções. Por vezes João tinha que pousar o copo de sopetão sobre o balcão por causa do ronco esbaforido duma buzina de camião - «Ó camelo, isso não é para partir! Vê lá se tens mais tento nas unhas!»

Depois duns berros trocados com o condutor do camião obrigado a uma espera irritante, a pesagem dava lugar a mais uma ida ao café do Chico, desta vez para suavizar a contrariedade do camionista calhado na rifa da ausência do posto. Coisa para poder dar origem a mais um desagravo, se o dia for de muito serviço.

Ao volante do autocarro vinha quase sempre o Manel Costa, um conterrâneo amigo de infância e companheiro nas sortes, em Lamego. Ficaram ambos incorporados, mas só o Manel foi dar com os costados ao Ultra-mar. João fora enviado para os Açores, onde viveu o melhor período da sua vida. Foi lá que se fez escriturário. E de lá veio, findo o serviço militar, assumir o encargo da pesagem dos camiões naquela fábrica junto ao rio no Poço do Bispo. Picava o ponto, religiosamente, ás 6 e 30. A essa hora já havia uma fila de camiões à espera. Alguns condutores iam estacionar o camião ao princípio da noite junto à porta da fábrica, para poderem despachar-se bem cedo. Assim podiam fazer mais um ou dois fretes, se o dia lhes corresse de feição. A burocracia do porto, muito mais pesada se a mercadoria passasse pela alfândega, equivalia a duas ou três bocas a comer o ganho do dia, tal era a quantia que ficava por apurar devido aos atrasos. Era preciso olear as engrenagens. O dinheiro das 'gratificações' chegava a quase todos, dos encarregados aos estivadores.

João vivia nesse mundo e por vezes era agraciado por causa dos muitos favores que fazia, dado que conhecia muito bem os meandros daquele pântano onde todos podiam viver sem atropelos. Quando havia encrenca, fazia um telefonema ao Fonseca da alfândega, ou mandava um bilhete à menina Noémia da contabilidade para apressar um pagamento. Tudo operações francas, sem mácula. Era assim que se vivia, a amizade era uma troca de pequenos favores, bastava que alguém lhe chegasse em aperto para que a sua generosidade entrasse em acção. Era assim mesmo com os motoristas que ali apareciam pela primeira vez, vindos da província. Alguns perdiam-se nos meandros do trânsito caótico de Lisboa. Chegar ali já era por si só uma odisseia. Alguns quando voltavam traziam um garrafão de azeite ou de bagaço. Vivia tudo como uma família.

Uma vez por mês fazia-se uma patuscada, na primeira 6ª-Feira de cada mês. O Antunes trazia bacalhau do armazém e cada um entrava com o que podia.

Nesse dia o Manel Costa iria participar. Trazia dois garrafões de morangueiro, acabados de chegar da terra. «Ah João, hoje vamos matar saudades lá da Laje Grande! Olha que esta é pomada do Varandas, até parece que estamos a provar as uvas morangueiras da Fonte da Roda. Lembras-te quando o pai dele nos corria aos berros e com ameaças de chumbo no traseiro?» Se lembrava! Bons tempos. Ah Manel, como o tempo se nos some por entre os dedos... Parece mentira... daqui a pouco estamos na outra margem a olhar para a banda de cá...

João, João, deixa-te de lamúrias. Estamos a chegar ao teu destino, pega lá nos garrafões. Depois do turno apareço no café do Chico. O que é que tens, homem?

Era uma tristeza fina, sem razão. Aquela humidade vinda do rio ainda envolta em escuridão ensopava qualquer possibilidade de alegria íntima. João desceu do autocarro, acenou ao solitário condutor que àquela hora da manhã tinha ainda muito poucos clientes. E ficou a ver o autocarro a descer a rua, com um garrafão em cada mão, sentindo o peso daquele vinho impossível de encontrar fora do lagar onde fora pisado, três meses antes. Tinha uma cor clara, a lembrar o petróleo com que se lavavam as engrenagens do portão da fábrica, por causa da ferrugem.

Foi sem espanto que viu o autocarro do Manel a subir a rua a apitar e com os piscas ligados. Lá dentro um polícia estava sobre um vulto deitado nos primeiros bancos da frente, como se lhe estivesse a apertar o peito para que não fugisse, ou para o agarrar a preceito, algum ladrão... àquela hora da manhã era estranho. 6 e 12. Chegara um pouco mais cedo nessa manhã. O Manel vai cá com uma cara... parece que viu a morte. Vai-lhe fazer bem esta pinga! O garrafão assim elevado à altura da sua cara parecia-lhe mais um relicário do que uma simples vasilha. O vinho de tão leve seria mais espiritual do que outra coisa. Isto só nas goelas do prior depois da missa! Isso porque o morangueiro, não subia aos altares, era um vinho que fazia bem a transição do sagrado para o profano. A pontos de poder até embebedar o demo. O leve travo a enxofre que lhe vinha da mecha acesa dentro do barril na preparação para a fermentação final do mosto, parecia um convite a mais sulfurosas práticas. Nada que um homem não pudesse fazer sem se ver a queimar nas chamas definitivas do inferno dos danados. Há sempre tempo para a conversão final, nem que seja no transe da agonia. Tudo fica registado para memória futura, quando os defuntos forem vomitados pelas entranhas da terra ou regurgitados pelos abismos dos mares. Não fica cá ninguém para semente.

Mas que diabo! Em frente aos portões da fábrica não se avistava vivalma. O sol nascia inundando toda a rua duma profusão de tons dourados. Lá ao fundo o rio parecia um cadinho a manar ouro derretido. No muro branco da fábrica que se estende até quase ao fim da rua, os murais revolucionários ganham a pouco e pouco uma paleta de cores exuberantes, com cintilações metálicas. Uns verdes magníficos, uns azuis incandescentes, uns vermelhos acobreados, vivíssimos, como sons de trombeta, profundos, bem entranhados no inusitado daquela manhã sem memória...

Em vez dos sons da cidade a despertar, ouvia-se o emaranhado do vento sobre as ervas duma pradaria sem fim. Ao longe o chilreio dos pássaros tornava-se cada vez mais encorpado, uma tapeçaria de melodias agitadas, emaranhadas, indecifráveis na sua caótica emergência, como se um animal gigantesco se preparasse para levantar voo e cobrir com as suas asas translúcidas toda a extensão do mundo.

Uma torrente de ratos precipitava-se dos orifícios do muro da fábrica. João lembrou-se da desratização, constante devido à presença de cereais, mas intensificada nessa semana. Os danados dos ratos até vencem o mais intenso dos venenos! Mas foi sem o susto habitual que João se deparou com este espectáculo, eram ratos de todos os tamanhos, pareciam alegres e com os olhos muito vivos, a pelagem luzia-lhes como se tivesse sido escovada e tratada à maneira dos cães de companhia. O caudal de roedores encheu a rua em direcção ao rio e ao fundo, contra a luz multicolor dum sol nunca visto,os ratos erguiam-se no ar, pássaros de plumagens incandescentes, e partiam em direcção ao sul subindo cada vez mais alto até se transformarem em nuvens estonteantes dando ao céu uma textura de tela setecentista, trabalhada com a paciência embriagada dum qualquer mestre barroco.

As pedras da calçada aveludavam-se e quase não se sentiam debaixo dos pés.

João reparou num papel com uma cruz negra colocado nas vidraças do café do Chico. Por baixo da cruz, a mesma caligrafia garatujada que anunciava o prato do dia e o preço das bifanas e dos pregos, sentenciava: «hoje não abrimos por ser um dia de grande pesar». Será que o Benfica perdeu outra vez? O Chico era mais que fanático, doente. Grande burro! Será que lhe morreu alguém? Vou-lhe ligar para saber o que se passa.

Alguns metros mais abaixo, a cabine telefónica brilhava como se tivesse sido restaurada durante a noite. Sim senhor. Uma obra digna de quem a fez... a companhia dos telefones está a esmerar-se. Lá dentro o telefone parecia saído dum filme dos anos quarenta. Com as peças metálicas dum dourado cortante, parecia um adereço palaciano, ali, numa das ruas mais humildes da Lisboa operária... Quanto tempo ficará ali a tentar os gandulos? Bem... O que interessa é que pode ter serventia.

As moedas enfileiradas na calha que termina na ranhura que as engole ao ritmo da conversa que se animar a partir do momento em que de lá se atenda a chamada, os números marcados sem que se sentisse a habitual resistência das engrenagens do aparelho, do lado de lá toca a chamar. Mas é um toque estranho, longínquo, abafado pela limpidez da luz que passava pelos vidros límpidos da cabine telefónica. Ninguém respondia. Será que foi ele quem morreu? Mas, como, se as garatujas eram dele? Hum... logo se verá.

Voltou ao café e ao tocar na porta viu que esta se abria. Entrou. Não se sentia o habitual cheiro a fritos. Só um aroma de vinho de primeira, exuberante, a lembrar aquelas tardes em que se festejava o aniversário de algum amigo, a comer bom presunto e a beber o vinho especial que o Chico só servia nessas ocasiões. Poisou os garrafões em cima do balcão. Abriu um e encheu um copo. Era a bebida mais luminosa que tinha presenciado em toda a sua vida. Fechou os olhos e bebeu. Lentamente. Mal se sentia a presença do líquido na boca. Toda a sensação de estar vivo se alargava em redor. Pela primeira vez fazia sentido ter nascido. E para quê? Para ser um pobre diabo... Mas apesar de tudo fazia sentido.

«Oh João!Seu molengão! Quanto tempo é que me fazes estar à espera?» O José Rodrigues? Não tinha morrido já, o José Rodrigues?! «Oh malandro! Não tinhas morrido?». «A ti o que te interessa isso? Mete-te na tua vida e faz o teu trabalho!».

E lá estava o camião, novinho em folha. O mesmo que fora parar ao ferro-velho de Fernão Ferro (ferro com ferro... ironia!). Para quê tanta pressa? E vais descarregar o quê? A guia de transporte estava em branco... Vou descarregar o que eu quiser, agora trabalho por conta própria, sou patrão de mim mesmo...

O José vivia em constantes arrelias com o patrão, um ricaço com um armazém em Campo de Ourique e que para além de negociar em cafés tinha uns camiões que faziam transportes para outras empresas. Era frequente ouvir da boca do Zé o seu mote preferido: 'cada patrão, cada cabrão!' Enfim estava livre. Podia andar com o camião por onde quisesse. «Não queres um copo de morangueiro?»

«Até que não é má ideia». E despacha-te que daqui a pouco passa por aqui o funeral. É triste: um gajo morre e levam-lhe a carcaça a passear logo frente ao seu local de escravidão. Mas tu gostas disto aqui, não é João? Para ti já não há mundo para lá destas paredes, não é?

E não havia. Era a sua vida. Não se imaginava a fazer outra coisa.


4 comentários:

  1. paulo não vi o seu post antes de postar, mas o que parece antagónico talvez seja complementar.
    abraço e bom ano

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  2. conto verdadeiramente antológico. cheio de pormenores mais vivos - porque embalados em cheiros e em sons
    - do que retratos

    agradeço o agradável momento de leitura

    Um Bom 2010, com inspiração para mais "coisas"destas

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  3. Antológico ou antagónico, como lhe chamou o revolucionário... BAAL?!... JCN

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