"Um homem novo recria-se-me na transparência do seu ser. Sinto-o leve e lúcido, instantâneo e incandescente, por entre as cinzas que o fogo deixou. Frente à noite que submergiu os homens e as coisas, frente à anulação da vida transaccionável e plausível, na recuperação deste início do mundo, o homem primordial que em mim sobe tem a face atónita de uma primeira interrogação.
[...]
A invenção de um novo mundo não é uma invenção de ninguém. Não está na nossa mão criá-lo; está só, quando muito, ajudar ao seu parto. E todavia - sabemo-lo bem - é em nós que ele se gera; mas tão longe donde estamos, que só já quando irrevogável o sabemos. Um mundo acontece na escolha indeterminável de nós. Assim pois, testemunhas apenas à superfície desse acto de criação, instrumentos que se ignoram para a grande obra invisível, anterior à obra visível, nós cumprimos sempre as ordens que ninguém deu e não as pudemos pois discutir. [...]
[...] Frente ao grande sono dos homens que o esqueceram, na atenção inexorável ao sem limite de mim, a minha vigília arde como um fogo assassino. É um fogo alto e poderoso. Lume breve na minha intimidade, na brevidade de um pequeno ser, eu, anónimo e avulso, ocasional e frágil - eu. E todavia, esse lume vibra de vigor, brilha único e intenso contra o assalto da noite. Trago em mim a força monstruosa de interrogar, mais força que a força de uma pergunta. Porque a pergunta é uma interrogação segunda ou acidental e a resposta a espera para que a vida continue. Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação"
- Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, Lisboa, Bertrand, 1994, 3ª edição, pp.13-15.
Mais uma vez, o beirão de Melo, no sopé da Estrela, meu antigo colega... a marcar pontos! JCN
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