O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 11 de outubro de 2009

Curso de Escutatória

"Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as idéias estranhas). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou.

Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades.
Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado".
Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou".Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa.

No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto."

Rubem Alves

6 comentários:

Anónimo disse...

...outras vezes, você fala e dá-me ideias para eu falar também. Você começa com pé esquerdo para a frente e eu com o pé direito para trás e estamos a dançar!É giro, dinâmico, contrastado. Mas entre isso há silencio e há espaço.

Este texto é interessante.Diríamos que é um texto maduro! Às vezes somos jovens, corremos atrás das palavras e das ideias e elas correm atrás de nós... e rimos! Até que um dia ou simultaneamente, nos inscrevemo-nos num Curso de Escutatória e sublinhamos uma frase de Alberto Caeiro : "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma".

rosário disse...

Revi-me e agradeço-te. Não me revi porque costumo limpar o espaço de forma a torná-lo digno de receber o que aí vem; mas revive-me porque quando o que é dito me soa a novo, a importante, gosto de ficar só a escutar e depois de ficar em silêncio tentanto dar sentido àquilo que me chegou.

Não é fácil isso, pq as outras pessoas n só atropelam as conversas, não as deixam fluir ao seu ritmo, como não permitem depois o silêncio. "Porque estás a olhar assi para mim?" "Estou a pensar". Incomoda o silêncio nunma sociedade em que o silêncio é proibido, em que os jornalistas na televisão quando não lhes saem frases dizem "aaaaaaaa" para nunca se calarem.

Mas revejo-me tb no não limpar a casa; no parecer já saber o q o outro vai dizer, no completar as plavras.... Ah e como me irrita quando me fazem isso! "Estava muito bom o pão que fizeste, como o conseguiste tão fofinho?" "Sei lá." "Puseste fermento de padeiro?" "Não." "Mas podias ter posto." Até quando faço qq coisa boa poderia fazer diferente Revi-me e agradeço-te. Não me revi porque costumo limpar o espaço de forma a torná-lo digno de receber o que aí vem; mas revive-me porque quando o que é dito me soa a novo, a importante, gosto de ficar só a escutar e depois de ficar em silêncio tentanto dar sentido àquilo que me chegou.

Não é fácil isso, pq as outras pessoas n só atropelam as conversas, não as deixam fluir ao seu ritmo, como não permitem depois o silêncio. "Porque estás a olhar assi para mim?" "Estou a pensar". Incomoda o silêncio nunma sociedade em que o silêncio é proibido, em que os jornalistas na televisão quando não lhes saem frases dizem "aaaaaaaa" para nunca se calarem.

Mas revejo-me tb no não limpar a casa; no parecer já saber o q o outro vai dizer, no completar as plavras.... Ah e como me irrita quando me fazem isso! "Estava muito bom o pão que fizeste, como o conseguiste tão fofinho?" "Sei lá." "Puseste fermento de padeiro?" "Não." "Mas podias ter posto." Até quando faço qq coisa boa poderia fazer diferente. Livre..... queria ser livre (
Obrigada Luís.

Vou divulgar um excerto no facebook. Se te incomodar diz, que nunca mais o faço.

rosário

Paulo Borges disse...

Magnífico, Luís! Devias publicar isto no blogue da "Nova Águia".

Grande Abraço

rmf disse...

"No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia,"

Confirmo, Luís. Assim o entendo, ou, é também essa a minha percepção sobre esse nada que por fora se escuta. Esse contínuo ritmo cardíaco que por vezes a sopro se expande oceano adentro.

Amigo, acaso mergulhe , conte comigo. É sempre mais seguro um mergulho a dois.

Obrigado Luis.
Um abraço.

Estudo Geral disse...

Escutei todos e gostei, muito.
Rosário não me incomoda nada! Paulo, vi o link na Nova Águia. Obrigado.
Rui, conte comigo.

Abraço Grande.

rosário disse...

ok luís, obrigada

perdoa a confusão de parágrafos repetidos. Não percebi!