quarta-feira, 15 de abril de 2009

KALUNGA - Um poema em 5 movimentos de Miguel Gullander

1.

Acendo a pequena vela para na treva perscrutar, rápido e sacudido, nos contornos enrugados sobre o tecido do próprio bafo da noite – o predador corpo da fera, o grande mamífero que me observa.
Dou-me conta que estou a ser testemunhado pelo enorme tigre preto.
Súbitos dois pontos de luz da cor-do-Destino movem-se na noite. Esperando momento exacto de atacar.
De me atacar.

2.

Faça o que fizer desta esteira de vida, este fio entrançado que me foi atribuído – faça o que fizer – é inexorável que aquilo aconteça.
A minha cabeça nua roda sobre o delicado eixo do pescoço, roda, roda, roda – nesta Roda das Existências e dos Seres.
Rodo o olhar como quem contempla em toda a volta, em todas as direcções – toda a extensão da abóbada celeste, nesta noite do hemisfério sul.
Noite africana.
Vejo o escorpião no coração do Cruzeiro do Sul – sinto, ao lado, Orion pulsante e – então! – sei que toda a minha cabeça está já na boca do tigre.
Já lá está – esperando pelo inevitável instante em que as mandíbulas, súbitas, se cerrem sobre o meu crânio.
Para com ele explodir em fagulhas de luz e perfume, bem na tua direcção.
Animal.

3.

O caçador ao falar disse estas exactas palavras:
“Existe uma relação directa entre o amor e a morte.”
Eros e Thanatos.
“Tens de amar para conseguir matar. O verdadeiro caçador sabe que a Palanca abatida não poderá morrer – pois não há morte no universo.”
Apenas Kalunga e as suas sombras, reflexos – como Mar Consciente e as suas ondas rebeldes.
Ondas que procuram o seu par por entre a espuma e os arremessos de paixão oceânica.
“Tens de amar a Palanca – verdadeiramente – para a conseguires caçar.
O predador tem de seduzir alguém a quem é impossível de mentir.”
Também não há mentira no universo – apenas loucos e crentes que acreditam em si mesmos.
A Palanca não vê ilusões, nem miragens, ou véus – mentiras. Isso ela não vê.
Ela vê-te a ti.
Tens de, na treva, perscrutar a tua presa. Ela procura esses teus olhos da cor-do-Destino – inexoráveis.
Tu moves-te rápido, musculado, sacudido – em total silêncio. Apenas os teus movimentos poderosos dedilham ondulações melódicas que enrugam o bafo da noite.

4.

Naquela Baia Azul, em Benguela, as águas do mar são estranhamente quietas e transparentes. Como vidro esmeralda.
Kalunga chama-a, puxa-a, seduze- a até si.
Ali, tocando a orla duma costa onde homens vendiam homens a outros homens.
Ali, ela costuma levantar-se muito cedo pela manhã.
Após acender uma vela perfumada, coloca-a à entrada da sua miserável casa, como prova da luz que a tudo observa e inunda. Como ondas.
As areias brancas sopram suavemente um fio de assobio enquanto ela caminha até às águas – enquanto se dirige a Kalunga os seus pés sussurram um sim, renovado, contínuo. Sim sim sim.
O convite. O ágape.
Os seus pés negros brilham porque a sua pele é santa e ungida pelo óleo trazido do outro lado do mar, do Mistério.
Ela sempre entra nas águas quando o sol começa a sua magnífica aurora. Nesses dias ela está feliz, canta sem palavras – e sabe pisar onde os outros não compreendem.
Ela também caminha sobre as águas quando o sol se põe. Mas, nesses crepúsculos o seu rosto fica riscado pelas lágrimas que através dos seus olhos encontram alívio e regresso – retorno à foz – à paz – a Kalunga.
Todas as dores desta terra, todas as injustiças, todos os pecados choram-se-lhe pelos seus olhos.
Ela esvaí da dor os corações de todos aqueles nela pensam. Ela devolve inocência a todos aqueles cujo seu corpo é tecido de dor e medo. Nesse tecido, ela, o fogo renova e purifica.
Ela é fogo sobre as águas.
E hoje as águas diamante da Baía Azul estão totalmente como tu as amas quando com elas sonhas. Tal como sonhas com o calor, e o sol, e o corpo nu que entra no mar quente e salgado.
Ela é linda e o seu corpo nu é manifestação, reflexo e sombra – síntese em gota de cacimbo – de toda a harmonia que o Amor, Deus, pode mostrar aos olhos de um homem que procura ver a Beleza. O Eterno.
Kalunga.
Estou com os meus pés roçando a orla-em-textura destas águas acariciantes. A ondulação sob as palmas dos meus pés – o mar todo em meu redor – também eu me sinto a viajar sobre ti até ao sem-fim.
Experimenta.
Vem até nós, aqui, nesta praia. Entra nu nas águas e vê atentamente a sua superfície. Vê como as suas ondulações são também tocadas pela sola dos teus pés.
As mínimas variações da ondulação em redor dos teus tornozelos espelham os toques da brisa da manhã no teu tronco despido.
Estás com o Mar todo em teu olhar.
Com sorte viverás o milagre. Com sorte andarás mesmo sobre as águas.

5.

A noite na Baía, sob as estrelas... é como amor, esta noite em África: uma presença envolvente e observante.
Diz-me a miúda negra de pés brilhantes:
Podes tentar abandonar-me. Podes viajar para longe. Podes partir sem querer voltar – e podes querer regressar – mas, lembra-te... sempre que me quiseres ver e ter, basta acenderes uma vela perfumada –
E eu levarei vinho doce como o amor quando sonhamos.
O amor das crianças sem passado e sem futuro. Agora.
Eu entrarei pela noite do teu quarto, e serei a presença que tudo o resto te fará esquecer. Serei fogo sobre as águas.
E nesse instante olhamo-nos no escuro, vendo tudo.
E quando acordares verás tudo pelos meus olhos. Verás este mundo como eu o vejo. E chorarás. Muito, muito.
África.

(Publicado na revista "Egoísta" e enviado para os leitores deste blogue)

4 comentários:

  1. Mais um poeta: é o defeito da raça.

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  2. Serão os Migueis Gullanders deste mundo vocações religiosas frustradas que se realizariam plenamente como monges ou "renunciantes" andarilhos noutro tempo e noutro espaço?

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  3. Monge ou não!...
    Quero um Miguel assim... muita louco.

    "Ó Deus, faz com que os ímpios [não] desapareçam..."

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