terça-feira, 14 de abril de 2009

Epitáfio Desconhecido

Epitáfio Desconhecido

Quanta mais alma
Por mais que a alma ande no amplo informe,
A ti, seu lar anterior, do fundo
Da emoção regressou, ó Cristo, e dorme
Nos braços cujo amor é o fim do mundo.

Fernando Pessoa, 1929
Um epitáfio é uma frase escrita sobre um túmulo. Epitáfio Desconhecido sugere a inscrição de uma frase num túmulo de um desconhecido, de alguém anónimo e esquecido no tempo e no espaço. A noção de amplo informe evoca o mundo das formas, do mundo pensável e tangível, o mundo do demiurgo que por ser impermanente e em constante mudança, é informe e sem substância. Penso que este amplo informe se coaduna com um axioma da filosofia budista o qual afirma que todos os fenómenos compostos são impermanentes. O amplo corresponde aos mundo dos fenómenos compostos, do qual, por exemplo, o ser humano faz parte; o informe corresponde à impermanência, à desagregação, usando o mesmo exemplo, do corpo humano.
Segundo a filosofia budista, o ser humano é composto por cinco agregados: o corpo, a sensação, a percepção, as construções mentais e a consciência. É desde o momento da concepção que estes agregados se agregam para simultanea, não posteriormente, se desagregarem, tudo isto sendo um processo instantâneo, ou seja, "evoluindo" o ser humano desde a sua concepção a morte. Por isso, este epitáfio acompanha-o desde o início, desde a sua origem pois a origem não é mais do que o seu fim.
A expressão lar anterior, o sítio para onde o morto regressa é Cristo. Cristo é uma palavra proveniente do grego e que significa ungido. Na minha perspectiva, o Ungido é o ser que está imbuído de algo que o torna mais puro, mais perfeito, sendo esse algo, a meu ver, a consciência primordial, a Saúde primordial. O morto regressa ao seu lar anterior, a Cristo, ou seja, o morto desagrega-se e a sua consciência primordial resplandece, algo que no budismo pode ser designado como Estado de Buda. É curioso sublinhar como o defunto regressa ao seu lar: do fundo da emoção. Julgo que Pessoa aqui evoca a saudade, aquele estado de espírito que leva o Homem procurar o que de mais fundo há em si, a Saúde primordial.
O alma do defunto regressa então a Cristo e dorme nos braços cujo amor é o fim do mundo. O fim do mundo aqui é o limiar (não o limite) do mundo que se abre para o infinito. Cem Komurcu, num artigo publicado na revista Nova Águia (Melancolia em Istambul e Lisboa), afirma que Lisboa tem dois rostos, o rosto da finitude que é a Lisboa finisterra, a Lisboa que segura um ponto extremo do continente europeu (juntamente com Istambul), e o rosto da infinitude que se encontra para além das costas do finito, o oceano in-fundado. Ligando o Tejo o mundo ao i-mundo, penso que o limiar do mundo é o seu fim, lugar mágico a partir do qual os portugueses de quinhentos partiram à conquista do infinito: o nosso Tejo, o Tejo da humanidade.

14 comentários:

  1. Muito interessantes o epitáfio e o comentário! Sem tempo para mais, pergunto apenas se isto não se pode aplicar à própria "vida" dos "vivos" que julgamos ser, sem esperar pela "morte" que julgamos haver.

    Fico contente pela referência ao profundo texto do meu amigo turco-alemão Cem Komurcu.

    Saudações!

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  2. Caro Professor,

    julgo que através da disciplina, meditação e sabedoria é possível morrer e renascer, para viver não a vida dos "vivos" mas sim a vida dos "mortos".

    Saúde do túmulo:)

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  3. Queria agradecer este texto por razões que são mais ou menos óbvias para quem me vai lendo aqui e ali no blog, no corpo impermanente e insubstancial deste blog. No entanto, não posso deixar de particularizar duas ou três referências que são muito importantes para quem, sem escolher, acaba por pensar a morte, os mortos, a saber, o "amplo informe", o "lar anterior", "Cristo" e a linha que, invisível, liga as cidades da melancolia: Lisboa e Istambul.
    As primeiras ideias são fundas e além do mais belas. A ideia de "lar antigo" permite rasgar os véus das palavras e dar a ver um útero inicial de onde nunca se sai, onde só em aparência se saiu, o lar onde e apenas podemos estar em casa; nos outros estaremos abrigados, protegidos de algumas coisas, mas não são a morada, o destino e a origem que sempre coincidem. E só podem coincidir no "lar anterior". Esse lar, por exemplo, penso que está estampado no rosto e no corpo das pinturas de Waterhouse. E, assim, depois deste texto poderei dizer, as figuras de Waterhouse estão em trânsito para o "lar antigo" e seguem unigidas, como Cristo, para o seu útero absoluto e único. E por isso, túmulos são moradas, ou são como as garrafas por onde, Celan, diz que os poemas vão, e seguem a caminho.
    E, para não me alongar mais dizer só, que entre estas razões para agradecer o seu texto, ainda encontro mais uma que me é muito especial: o seu texto fez-me lembrar a obra de Orham Pamuk, "Istambul", que é uma longa e detalhada reflexão sobre as razões da melancolia da cidade: as ruínas, os cemitérios, os barcos a vapor, a neblina do Bósforo...
    O autor diz assim: " Em todo o decurso da minha vida, o sentimento da ruína do Império Otomano e da tristeza pela miséria dos escombros que cobriam a cidade representaram os elementos característicos de Istambul. Passei a vida a lutar contra esta tristeza, ou então - como acontece com todos os habitantes de Istambul -, a tentar apropriar-me dela." pp. 14-15
    Com efeito, Istambul é um "lar antigo" em todos os sentidos, e o seu texto é como um barco a vapor que deslizou no meu espírito. Nas margens estão as ruínas e, olhando para elas, o amplo informe, promete o mundo original das formas, até lá o demiurgo irriquieto que anda no vento, acaricia as pálpebras de quem olha para dentro do invisível e do obscuro.

    Muito lhe agradeço o prazer imenso desta reflexão ao cair da manhã que só não é de Istambul, porque não tem o cheiro das especiarias, mas trouxe na escrita o toque do que é especial e antigo no mais fundo de cada um.

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  4. pensava que regressavamos ao lugar do ser, à toca por sobre a clareira ao não desvelado, e que o nosso lugar seria ao início primordial, ou será tudo uma questão de linguagem?

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  5. Nevoeiro de Istambul14 de abril de 2009 às 14:35

    É baal! É! Toma umas cervejas e vais ver que é! Às duas da manhã, como é teu hábito, vais ver que é.

    baal és melancólico como pareces, ou é só charme?

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  6. melancólico ao entardecer (como é de ser), às duas melancólico e triste utilizando a ironia não como defesa, mas como alegria.
    'chatice'lá utilizei a ironia antes da hora. mas aina não bebi as sagres.

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  7. baal és estonteante! Vais acabar por ser adoptado no blog como o gralhista de serviço, porque tu não precisas de álcool para desfazer as palavras: já nasceste embriagado! E isso é ser eleito! Vá, mas não fiques muito convencido...a malta gosta de ti como és. E gostamos de ti a todas as horas...a sério!
    Até há uma canção das "Doce" que dizia:"uma da manhã, hei...vem com duas da manhã..."
    Já não deve ser do teu tempo...mas vinha a calhar para te dizer a importância de ti a todas as horas...

    És mesmo fixe!

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  8. desfazer palavras é desconstrutivismo, gralhar é falar de mais, enganar-se é acertar, desta vez não 'gralhei', logo enganei-me.

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  9. Passarinho do bósforo14 de abril de 2009 às 18:52

    se não gralhas não és pássaro, assim, gostamos menos de ti!

    bem...talvez não! Afinal, ainda te enganas e no engano há imensa graça...vamos ver, vamos ver...

    vou, não sei quando volto, se volto. Voar leva-me sempre para muito longe...

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  10. Somos epitáfios de nós mesmos

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  11. O Tejo não existe, tal como este blog e tudo o resto. Pessoa viu isso, mas, para continuar poeta, passou ao lado.

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  12. ps do bosf, acontece é dif´cil fazer 4 (quatro) coisas ao mesmo tempo:
    beber
    estudar
    postar
    e pensar (ou estar inebriado? de conceitos).

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  13. baal enlouquece e vai-te embora

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  14. ó nome escatológico, pensa e deixa de ser uma finalidade.

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