sexta-feira, 13 de março de 2009

Maria Lúcia Garcia Marques: Viator

Lido aqui.

[...] No nosso imaginário, VIAGEM contém em si e desde logo o gérmen de um movimento excêntrico. É, em geral, um conceito que se alimenta da ideia de um encontro para lá de nós, de caminhos, paisagens ou costumes, mais ou menos exóticos que se recolhem através dela, viagem, como processo exterior ou interior. É intrinsecamente, um partir do centro existencial de cada um em busca de uma coisa outra - nova ou diferente - para dela fazer uma aquisição sua. A viagem é um exercício humano velho como o tempo e longo como as voltas do mundo, narrado ou simplesmente vivido na Busca: da novidade? do saber? da superação dos limites (materiais e humanos)? da simples fuga do trivial no displicente mover-se de quem tem lazeres? via iniciática? (na nomenclatura maçónica dá-se essa designação ao conjunto de provas a prestar por quem quer entrar na sociedade secreta ou passar deum grau inferior a outro superior), ou uma certa forma de se superar o medo atávico de partir, de alguma forma sugerido pelo Poeta: “Partir / perder países...” ou mais claramente caracterizado pelo brasileiro Amyr Klink, navegador solitário e narrador sensível, à beira de iniciar a travessia, em barco a remos do Atlântico:

Era o medo de nunca partir. Sem dúvida, este foi o maior risco que corri: não partir” [...] “Pelo simples facto de estar ali onde estava, debatendo-me entre os remos, xingando as ondas e maldizendo a sorte, me sentia profundamente aliviado: Feliz por ter partido.
(in Cem Dias Entre o Céu e Mar, Companhia das Letras, 1955)

A viagem contém em si um sentido de utilidade e renovação eternos, porque somos por natureza abertos ao espanto ainda que fiéis à rota e à lição dos mapas, guiados pela curiosidade mas leitores de tradição, intuindo que, como já Alexandra Lucas Coelho disse “ela (viagem), se não faz fatalmente em frente mas também por dentro, não é uma só mas também todas as outras, as que deixámos para trás, lidas, vividas, ressuscitadas”. E tudo isso se explica porque, se olharmos de perto a etimologia da palavra “viagem”, o latim viaticum (chegado até nós através do provençal viatge) verificamos que significa, à letra, ‘provisões de viagem’, ‘tudo o que serve para fazer caminho’, ou seja, e generalizando, espécies várias de alimento (para o corpo e para o espírito) que a sustentam e fazem com que ela ajude a viver a esperança, a descobrir e a abrir espaços de reflexividades úteis e renovadoras e, na sua máxima realização, alimente um gosto exclusivo pela vida, de caminhar pelo mundo desencantando olhares proféticos que vêem o que ainda não vimos e libertando memórias que recordam o que não chegámos a ver.

3 comentários:

  1. "Já você outro dia se revoltou perante o meu prazer de embarcar, embarcar sempre, acreditando cada vez menos nos portos de chegada; […] continuo […] a ter como mais firme dentro em mim a aspiração de que um dia atinja o heroísmo de me atirar a todas as batalhas em que não haja esperança de vitória. […] Não me tentam nada as estradas que vão de um ponto a outro, de que sabemos, à partida, a quilometragem e a direcção; tentam-me as estradas que não vão dar a nenhum ponto. […]
    […] embarcar num navio que nunca chegará, rumar por mapa e bússola ou goniómetro para o porto que não existe
    - "Sete Cartas a um Jovem Filósofo" [1945], in "Textos e Ensaios Filosóficos I", pp.246-247.

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  2. Obrigada por mais este grito de saudade lusófona. Estou a gostar muito de descobrir este filósofo. Obrigada a todos por este espaço.

    Também a mim nada me tentam essas estradas cujo destino conheço. O mar não tem estradas.

    A melhor casa é um barco.

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  3. José Marinho, um grande filósofo português, fala da vida do espírito como "viagem na qual nasce o próprio viajante". Cf. "Teoria do Ser e da Verdade", o livro mais difícil que conheço.

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