"Se considero com atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diference da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente através das coisas e do mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao sol e dorme ali. O homem espoja-se à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se liberta da lei fatal de ser como é. Nenhum tenta levantar o peso de ser. [...]
Estas considerações, que em mim são frequentes, levam-me a uma admiração súbita por aquela espécie de indivíduos que instintivamente repugno. Refiro-me aos místicos e aos ascetas - aos remotos de todos os Tibetes, aos Simões Estilitas de todas as colunas. Estes, ainda que no absurdo, tentam, de facto, negar a lei da vida, o espojar-se ao sol e o aguardar da morte sem pensar nela. [...]
Nós outros todos, que vivemos animais com mais ou menos complexidade, atravessamos o palco como figurantes que não falam, contentes da solenidade vaidosa do trajecto. Cães e homens, gatos e heróis, pulgas e génios, brincamos a existir, sem pensar nisso (que os melhores pensam só em pensar) sob o grande sossego das estrelas. Os outros - os místicos da má hora e do sacrifício - sentem ao menos, com o corpo e o quotidiano, a presença mágica do mistério. São libertos, porque negam o sol visível; são plenos, porque se esvaziaram do vácuo do mundo"
- Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, pp.178-179.
o absurdo da vida(Kafkiano)e o absurdo de a negar.
ResponderEliminarA questão é se a acção passa pelo pensamento filosófico, ou se a filosofia, contrariamente à ciência é um não agir, o que a afasta de toda a possibilidade (mesmo virtual) de intervir num mundo em que tudo é participação. São os pensamentos de ausência a única possibilidade de existência perante um mundo não compreendido, não desvelado?
E quem se entre-teve, mais que tu, nos intervalos entre ser e não ser, entre sonho e realidade, no Limbo de todos os limbos? Será isso que outro em ti designou como "King of Gaps"? Ou terás confundido a mera indeterminação com o infinito?
ResponderEliminar"Uns e outros não pensam para além do que pensam" - a esta frase pestanejei um bocadinho, mas segui em frente.
ResponderEliminarComo quer que seja, parece-me que o Livro aqui foca fundamentalmente um aspecto que reputo importante.
Há aqueles, como a maioria de nós, porventura, que "atravessamos o palco como figurantes que não falam, contentes da solenidade vaidosa do trajecto".
E há aqueles que escolhem atravessar tal palco, não fora mas dentro de si mesmos, assistindo como espectadores que padecem (almejando, porém, deixar de fazê-lo) em vez de fazerem-no como actores involuntários e por vezes até inscientes.
Nessa insciência, é que, creio, Bernardo Soares parece dizer que ser homem ou ser animal é perfeitamente indiferente: basta para isso ser animal; num humano, tal é puro desperdício.
Sobre a liberdade...
ResponderEliminarNão queria escolher as palavras. Gostava que elas fossem fáceis, gostava das amar a eito. Acontece, porém, que as palavras se fizeram, uma a uma, pesadas e rudes perto do oásis luxuriante de imagens que me saqueia a verbosidade. Sigo trilhos de passos passados, os rastos desenhados no asfalto por travagens bruscas, rastreio os cortes que os gumes dos seus ângulos rectos provocam na estrutura volátil do ar. Agarro a ressonância das cordas na vibração sonora do corpo dos objectos , as linhas de luz, o perfume adejante do que se vai desfiando. Quebra-se a linha. Distraio-me e farejo descuidada o que fizeste ultimamente... mas o que eu desejava era ver o tracejado intrincado de cada acção depois de parida, mirar-lhe as ramificações que florescem nas mãos, nos braços, ente após ente como um acidente em cadeia; perseguir-lhe as raízes, o infinito cadente cada vez mais distante e rarefeito. Queria, sobretudo, falar de liberdade genuína, não da liberdade do servo, ou da besta...mas a palavra não lhe serve, não a basta, nem os olhos a cravam na memória. Tudo é escasso, disperso perante a enormidade do que os sentidos obliteram do espaço, do tempo, do infindável...inefável.
Cai o pano, opaco como sono, deixo-me adormecer mais uma vez inconsciente e tagarelo com os meus botões, aleatoriamente ,sobre o que me tem ocupado ultimamente.
Tinha escrito isto, antes de ontem, lá do outro lado, onde nas noites se acende a luz das coisas.
Sem tempo para grandes dissertações, ou para prosa poética como a da cara Ana, digo apenas, Lapdrey, ser óbvio que não concordo com tudo o que escreve Bernardo Soares.
ResponderEliminarUma das questões que coloco é todavia se existirão realmente homens, animais e outros seres, em si e por si, como essências, ou se não haverá antes algo - a mente - que, desorbitado da sua natureza primordial, se determina sob a forma e modalidade transitória de homens, animais, deuses, demónios, etc., numa metamorfose constante. No contexto cristão, algo de relativamente semelhante parece encontrar-se em Orígenes.
Pois eu os considero em suas diferenças: bichos e humanos. Penso até que o homem mais necessita dos intervalos do que os bichos: “Interlúdios”, diria o outro, são para o homem de maior validade do que para os bichos, não é existência para ele um interlúdio. Refira-se ao que a arte e vida nele se confundiram. Mesmo se o intervalo for apenas a arte, um sono ou um “supremíssimo cansaço”.
ResponderEliminarA admiração pelos ascéticos, em B.S. e mesmo em P. - neste em menor grau - só de compreende, a meu ver, contrapolarmente ao drama da cisão entre a vida vivida e sonhada, e é apenas vislumbre que não permanece nem ganha raízes, porque nele é ausente a necessidade do mistério. Pois do quotidiano e do corpo a sua arte era feita. Tenho para mim, que “o homem de que não se pode dizer ter nome de alguém (e que não era pequeno-burguês, já se vê!):), levantou mais o peso de ser, nisso, em que paradoxo e absurdo sejam. Cada vez mais sendo um nada pesadíssimo de ser e de sentir. Mas Bernardo Soares era o que mais fundo em si a dupla face da existência humana, contentando-se com ambas: devaneando-se em desassossegos, anonimamente, e “funcionado-se” (mais uma palavra nova) gostosamente, como os animais: “Gato que brincas na rua”...
Sendo B.S. aquele em que menos se vê, como se compreende, o sentido do mistério. Para ele, no seu drama criativo, antes o que esvazia o mundo do seu próprio vácuo, esses, sim, é de admirar. Mas logo lhe passava esse “súbito” pensamento, uma nuvem a passar no céu à sua janela o demorava mais.
Creio que a diferença sempre supõe identidade, sem a qual di-ferença não pode ser... Que di-ferir haverá se não houver origem comum do que no di-ferir se fere!?
ResponderEliminarPaulo,
ResponderEliminarDe novo, de acordo.
Um abraço, Saudades
que engraçado. vim cá publicar uma coisa do Bernardo Soares. :-)
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