Dizem-me que arrefeces. E que tudo dentro de ti escureceu. Venho à tua frente e só por isso não estou onde as lágrimas escorrem dessa fonte que é o olhar endurecido pela dor. Venho para preparar a passagem.
Descubro as escadas, porque não sei se a morte é uma forma de descer ou de subir. Depois talvez possas escolher, como quando te ensinava, o caminho. O caminho é sempre teu. A direcção, o rumo deixo que o escolhas porque te quero sempre entregue à liberdade do pensamento. Mesmo quando arrefeces e as palavras são mais frias dentro de nós, elas indicar-te-ão, vestidas no manto branco do silêncio perene, um norte ou um desnorte. Creio que andarás ainda por perto do reino dos vivos, mas não faças mais como nós fazemos, porque somos sonâmbulos que se perdem da relação entre a vida e a morte. Faz agora o teu caminho e não nos imites ou te deixes chamar mais uma vez.
Penso neste lugar. Parece mais abaixo mas pode ser também um útero em que a terra se levanta para te erguer ou uma morada em que sintas que, como o mar e as ondas, a terra te embala e é a grande mãe onde te fundes. Um útero dentro da terra para descobrires outras mães e outras mulheres fecundas onde inscrevas a luminosidade do teu riso brilhante. Um riso de louco pode parir uma estrela…acho que nunca te ensinei o sentido último deste pensamento, mas sei que te falei deste autor. Ouve-lo? Anda como tu por entre as paisagens do sul e desertas e nunca ouviu vivos. Chegas ao seu reino e, se o encontrares, recebe dele e de Ensor uma máscara para dançares e bailares nos espaços eternos onde a luz nunca é tão breve como aqui. E o teu sorriso não terá fim…
Antes que chegues, certifico-me que te deixei a árvore para ouvires os pássaros e os nomes com que na Terra os homens bons renomeiam a beleza e o instante. Quero que sorrias com a nossa capacidade, quase inexistente, de iluminarmos o fugaz e o passageiro que os pássaros cantam. A árvore é uma parte do bosque e nela moram as palavras inauditas e aquelas com que daqui em diante podes escutar a Terra vista desse lugar longínquo e desse lugar sem tempo. A luz doura-as, às folhas, e com elas espero-te neste lugar fundo da saudade para te soprar os versos que aprendi a ler nos movimentos de Klimt. Klimt não pintava nem escrevia. Deixava-se vagar pelo atelier à espera dos que apareciam ainda com a aura de beleza e juventude intactas. Retirava os movimentos restantes e repousava os mortos na imobilidade de uma visão imemorial. Esse repouso, esse descanso, cobria-o ele soprando a cor do que é eterno sobre os vossos corpos frios. Por isso todos os seus mortos estão revestidos desse brilho que ele conhecia e nenhum de nós partilha: recebia os mortos com folhas de ouro, douradas, que soprava e onde iam escondidas as sílabas do outro mundo. Esta noite soprarei neste atelier onde Klimt e tu descem ou sobem, não sei, os versos órficos que trouxe guardados dos teatros gregos por onde ouvi Sófocles e Ésquilo. Esta noite, e para ti, não serei nem Isabel nem a tua professora, serei como Cassandra, a do grito incontido. Klimt repreender-me-á como a uma sombra viva que o atrapalha. Desviarei o grito para não perturbar os sopros e, no vento, te deixar as múltiplas direcções com que vivos e mortos se podem ainda cruzar.
Dizem-me que inexistes, e, no entanto, ainda és dentro de mim fechado num grito e num espasmo. Um rosto vibrante e aberto por onde te digo, na última lição, a saudade. Queria dizer-te que um túmulo é outra porta e que a minha saudade te oferece o portão da espera, da espera infinita, a Idade de Ouro onde Klimt te pinta, Nietzsche te espera em gargalhadas furiosas e eu deposito a minha amizade numa lágrima que entrego à raiz desta árvore com sede de ti e de nós. E, quando pensares que o lugar onde te espero é ainda escuro, olha para ti e verás que eras tu que polias com folha de ouro a nossa tristeza.
Dizem-me que morreste e eu vejo Klimt andando pelo atelier com folhas douradas para te receber e grito, prometo, noutra direcção. Aqui. Ofereço as lágrimas a um pintor que queira limpar os pincéis com que se escreveu sobre a morte. E a morte é uma flor, como sabia o Celan…
Descubro as escadas, porque não sei se a morte é uma forma de descer ou de subir. Depois talvez possas escolher, como quando te ensinava, o caminho. O caminho é sempre teu. A direcção, o rumo deixo que o escolhas porque te quero sempre entregue à liberdade do pensamento. Mesmo quando arrefeces e as palavras são mais frias dentro de nós, elas indicar-te-ão, vestidas no manto branco do silêncio perene, um norte ou um desnorte. Creio que andarás ainda por perto do reino dos vivos, mas não faças mais como nós fazemos, porque somos sonâmbulos que se perdem da relação entre a vida e a morte. Faz agora o teu caminho e não nos imites ou te deixes chamar mais uma vez.
Penso neste lugar. Parece mais abaixo mas pode ser também um útero em que a terra se levanta para te erguer ou uma morada em que sintas que, como o mar e as ondas, a terra te embala e é a grande mãe onde te fundes. Um útero dentro da terra para descobrires outras mães e outras mulheres fecundas onde inscrevas a luminosidade do teu riso brilhante. Um riso de louco pode parir uma estrela…acho que nunca te ensinei o sentido último deste pensamento, mas sei que te falei deste autor. Ouve-lo? Anda como tu por entre as paisagens do sul e desertas e nunca ouviu vivos. Chegas ao seu reino e, se o encontrares, recebe dele e de Ensor uma máscara para dançares e bailares nos espaços eternos onde a luz nunca é tão breve como aqui. E o teu sorriso não terá fim…
Antes que chegues, certifico-me que te deixei a árvore para ouvires os pássaros e os nomes com que na Terra os homens bons renomeiam a beleza e o instante. Quero que sorrias com a nossa capacidade, quase inexistente, de iluminarmos o fugaz e o passageiro que os pássaros cantam. A árvore é uma parte do bosque e nela moram as palavras inauditas e aquelas com que daqui em diante podes escutar a Terra vista desse lugar longínquo e desse lugar sem tempo. A luz doura-as, às folhas, e com elas espero-te neste lugar fundo da saudade para te soprar os versos que aprendi a ler nos movimentos de Klimt. Klimt não pintava nem escrevia. Deixava-se vagar pelo atelier à espera dos que apareciam ainda com a aura de beleza e juventude intactas. Retirava os movimentos restantes e repousava os mortos na imobilidade de uma visão imemorial. Esse repouso, esse descanso, cobria-o ele soprando a cor do que é eterno sobre os vossos corpos frios. Por isso todos os seus mortos estão revestidos desse brilho que ele conhecia e nenhum de nós partilha: recebia os mortos com folhas de ouro, douradas, que soprava e onde iam escondidas as sílabas do outro mundo. Esta noite soprarei neste atelier onde Klimt e tu descem ou sobem, não sei, os versos órficos que trouxe guardados dos teatros gregos por onde ouvi Sófocles e Ésquilo. Esta noite, e para ti, não serei nem Isabel nem a tua professora, serei como Cassandra, a do grito incontido. Klimt repreender-me-á como a uma sombra viva que o atrapalha. Desviarei o grito para não perturbar os sopros e, no vento, te deixar as múltiplas direcções com que vivos e mortos se podem ainda cruzar.
Dizem-me que inexistes, e, no entanto, ainda és dentro de mim fechado num grito e num espasmo. Um rosto vibrante e aberto por onde te digo, na última lição, a saudade. Queria dizer-te que um túmulo é outra porta e que a minha saudade te oferece o portão da espera, da espera infinita, a Idade de Ouro onde Klimt te pinta, Nietzsche te espera em gargalhadas furiosas e eu deposito a minha amizade numa lágrima que entrego à raiz desta árvore com sede de ti e de nós. E, quando pensares que o lugar onde te espero é ainda escuro, olha para ti e verás que eras tu que polias com folha de ouro a nossa tristeza.
Dizem-me que morreste e eu vejo Klimt andando pelo atelier com folhas douradas para te receber e grito, prometo, noutra direcção. Aqui. Ofereço as lágrimas a um pintor que queira limpar os pincéis com que se escreveu sobre a morte. E a morte é uma flor, como sabia o Celan…
Esta desce sobre ti e não sei onde vai cair ou subir. Mas ela sabe como te encontrar no caminho.
Em memória do meu aluno Diogo Costa, o mais feliz dos alunos que tive, o do sorriso mais feliz e permanente e a quem agradeço a imensa alegria com que contagiou os meus dias e os da turma. À turma que me chamou para estes lugares mais fundos, a Morte e a Saudade, que são a grande sala metafísica da Vida, em particular ao João Moita e à Teresa Neves que estão ou na base da escadas ou no topo das escadas e confiam no que encontro e não procuro. Por confiarem na minha memória e no amor com que nos enlaçamos nas orlas da eternidade.
Isabel
ResponderEliminarTexto lindo. Vivo no frio, junto da Ribeira. Tudo gelado pela manhã.
plantarei mais rosas, pela cor das flores que sabem como chamar o Sol
O sentir de uma tristeza premente de emoção, onde as palavras são luz no ventre da escuridão.
ResponderEliminarA flor vive agora ausente, de barreiras e ilusão, liberta na sua essência, de alma em evolução.
Obrigado por partilhares!
Belo!
ResponderEliminarBenditas a tristeza e a dor que nos ungem de profundidade!
ResponderEliminarIsabel,
ResponderEliminarReceba um abraço meu, a esta distância.
Não é fácil partilhar palavras de morte, palavras que nos fazem recordar qualquer coisa que nos deixa uma marca muito grande, muito funda.
Não é fácil o 'adeus' suposto, a escuridão que fica depois da partida.
No meu caso, a escuridão é inevitável. Não consigo contorná-la, nem evitá-la. Ela passa e eu consigo caminhar, depois. Mas, só depois...
Texto muito bonito, este seu.
Obrigada pela partilha!
Não sei por que recebo tão bem a morte. Mas recebo. A morte combina bem com a flor que sou. Pode a rosa ser apenas uma flor?
ResponderEliminarA rosa é um símbolo do mundo.
ResponderEliminarPlatero
ResponderEliminareu sei por que razão as rosas, o "símbolo do mundo", nascem junto às suas ribeiras frias. Eu sei porque razão é um amante das rosas. Quando o leio, quando lhe respondo, vou sempre adiando esta verdade intensa dentro de mim: o Platero é um dos últimos vasos virtuosos onde os deuses deixaram a terra que deixa florir o que tem valor. Abençoada a terra que é, porque ela sabe semear o que frutifica e não recolhe ao seu seio o que não tem valor. Receba a minha mão estendida para lhe agradecer a virtude ou a nobreza, como preferir, da PESSOA que é. Esta tarde andarei junto da sua ribeira porque a s suas rosas fazem bem à minha pobre e tola existência. E talvez cante, como quando não sei que escrever ao mundo.
Pedro
Obrigada por ter sentido o que quis homenagear e pensar. Também penso que o Diogo, sempre disponível para todos, merece a bondade das suas palavras.
Maria da Conceição
Um sorriso e os olhos tremuluzentes de lágrimas. Não necessariamente de tristeza. A comoção é um espasmo que tem consigo o mistério de dentro de nós uma força irromper sem palavras e sem o poder do sentido, que nos faz lançar o olhar para dentro do outro que nos olha para acolher o nosso desamparo nas salas da Vida. Sejam elas a Morte e a Saudade...Sorrio a chorar. Sempre. Choro também a sorrir. Sempre.
Sereia,
sabes tu, (desculpa tratar-te por tu, mas sinto-te, quando te leio, como uma aluna que me entra pela sala e eu tenho medo de magoar. Vai por tu, esperando não te magoar), como abraço as sereias? Choro sempre sozinha junto ao Mar. Foi para aí que te convidei um dia em que por aqui andaste triste e magoada, não sei se te lembras... Desde menina e desde que as espero, às sereias. O teu abraço traz o consolo que todos os Homens esperam, que eu espero desde a infância mais tenra e que decorria olhando, em contemplação, o mar e todos os seres que de lá vinham. Esperava eu, seres sensíveis como tu. Não, não é o texto que é "bonito". É o Diogo, és tu. São todos aqueles por onde a tristeza caminha criando linhas, contornos, sombras, presságios, ritmos e rumores do mundo e do outro mundo. Abraço-te e choro.
À Rosa Suspensa e aos Anónimos respondo depois...agora não consigo mais. Desculpem.
"A morte é uma flor que só abre uma vez.
ResponderEliminarMas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora de estação.
E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.
Deixa-me ser o caule forte da sua alegria."
de Paul Celan
Isabel,
ResponderEliminarlembro sempre esse dia em que me convidou a mergulhar e a cantar.
Nenhuma palavra sua poderá magoar-me! Sinto mesmo o seu abraço e, muitas vezes, as suas lágrimas também as sinto...
mergulho nelas, todos os dias*
porque as lágrimas que choramos são salgadas para chorarmos ao pé do mar. E como as ondas vêm e vão, elas levam as nossas lágrimas e salgam o mar.
E como os olhos são o espelho da nossa alma, elas - as ondas - limpam a nossa alma e deixam só aquela Paz. AQUELA PAZ!
Abraço recebido e devolvido em demasia :)
Para a Rosa Suspensa, os Anónimos
ResponderEliminarInicialmente, e de acordo com o poeta, parece que temos que distinguir as flores. As que abrem várias vezes e as que abrem apenas uma vez. A morte, nesse sentido e no do poema de Celan, faz parte das que abrem uma só vez. E, quando abre, a flor da morte, fecha o mundo. O que é um mundo aberto? Um mundo aberto é uma rosa. Mas a rosa aberta é a antecâmara da morte. A rosa aberta é a que esgota o perfume do mundo. Se a vida fosse, ao contrário da rosa que floresce, desligada da morte, ela teria o poder de abrir a flor mais vezes. Assim, parece que não há flores que abrem mais do que uma só vez. Parece que há botões que nunca serão flores. Parece que as que não abrem não florescem, não constituem para os que estão à volta um florilégio e que também não têm esse sortilégio de abrir e fechar. São botões em que a flor foi abortada. O que pode querer dizer que a vida é a flor fechada, que no auge, num limite exponencial de beleza e tristeza, abre. Como a rosa que aberta murcha, mas abriu para fechar. E só abre uma vez como só se morre uma vez.
Mas o poeta ainda diz mais. A vida é o caule que ondula e espera o seu ornamento. Não é, para o poeta, a vida que conhece a liberdade, não é para o poeta a flor da vida que escolhe florir. A morte escolhe-nos. Mas se vida e morte, florir e secar, são um mesmo acontecimento, então viver também não resulta de uma escolha. Se essa condição, estar vivo para morrer, é uma condenação ou uma eleição, não se sabe. Mas, se o poeta quer ser escolhido, porque a morte é alegria, então também sente que foi escolhido porque está vivo. Ele é a flor que quer abrir e fechar. Os que não percebem a relação da vida com a morte, do caule com a flor, esses são o botão fechado. Não estão mortos nem vivos. Estão fechados. Só a vida e a morte são a flor. E por isso penso que, poeticamente, Celan diz o mesmo que Platão no "Fédon", 4º argumento. A alma, diz o filósofo, não pode receber o seu contrário: assumindo que ela é a vida (a ideia de ), não pode receber a morte. O que se relacionarmos com o 1º argumento só mostra que são o mesmo: a alma não aceita a vida e a morte como contrários, porque ambas são o mesmo. A alma é a flor que abre e fecha, nela a vida e a morte são o mesmo. Não são contrários. São o mesmo. A alma, liberta do corpo, do caule, é mais viva; então a morte, a perda do caule, é a sobrevida. O elogio da morte é o elogio da sobrevida. Da sua abundância. Nisto não reside a tristeza, mas a superabundância da beleza. O poeta é mais simbólico no poema. O poeta diz que a morte é uma mariposa. Na Grécia, a alma é a borboleta. Se a alma é a vida e a morte, então ela é a flor. A alma é a flor. A alma do mundo a grande rosa. O seu orvalho alimenta a sede dos que se amam até à morte. Por se amarem para além dela. O resto, como "tu" e como "eu", são caules. Creio, contudo, que vale a pena aprender a implorar como o poeta, “vem mariposa, adornar caules ondulantes.” Pascal falou de canas pensantes…como se dissesse que pensar é fazer florir a alma. E felizmente há por aqui muitas pessoas que têm uma alma que é um jardim. E eu peço, “vem mariposa, ensina-me o caminho até esses jardins que estão perto da Rosa do Mundo.” Quero fundir-me nela e não ser rosa, lírio ou cravo. Flor, apenas flor…flor que o não é. Suspensa no fio invisível que vem do centro do Todo-Nada.
É esta flor e a rosa em que ainda abro as tímidas pétalas do pensar.
A rosa pode ser também o Amor. Porquê?
Não se morre só uma vez. Tememos a morte porque inconscientemente sabemos a angústia que nela nos espera e pela qual passamos desde sempre, desde o sempre em que andamos vivos.
ResponderEliminarIsabel, achas mesmo que eu estou morta? Eu que fiz tanto amor com o Gustav...
ResponderEliminarConcedo,
ResponderEliminarvamos morrendo, porque vamos vivendo. Risos. Eu também sei o que é estar morta-viva!
Pode ser que seja só por sermos botões.
Mulher dourada de kimt
ResponderEliminarpor motivos de muito trabalho não lhe respondo agora, mas prometo responder à sua pertinente questão.
Um sorriso
O que sei, Mulher Dourada de Klimt, é que o amor é o mesmo que a morte. Bataille disse isso mesmo. O amor é a total dissolução do si e do outro. Klimt conheceu os mistérios do amor e com muita probabilidade conheceu também os mistérios da morte. Porque uns e outros são os mesmos e nada mais há para além de uns e outros. Basta que veja o "Beijo" para se perceber que aqueles corpos são um só revestido do manto dourado com que o sol cobre externamente a Terra da sua luz resplandecente. Mas aquele brilho não vem de estar vivo, mas de deixar de estar individualmente vivo. O amor como o a morte penso que podem ser pensados como fusões com o todo num só lance e rasgo único de luz e flores. Mais não sei.
ResponderEliminarE já sabes muito e bem, Isabel!
ResponderEliminarcara Isabel, gostei muito da sua resposta à mulher dourada, como de tudo o que escreve... às vezes passo por aqui e vou seguindo. Mas a Isabel escreve aqui poucas vezes. Atrevo-me a perguntar: costuma escrever noutros blogues?
ResponderEliminarAnónimo tardio. Em primeiro lugar dizer-lhe que gosto das pessoas tardias. São menos filhas do Tempo. Depois responder-lhe dizendo que não escrevo noutros blogs, apenas comento textos de mais 3 (ex-alunos e o da Saudades) e, depois dizer-lhe que se gostou do que escrevi e, se ainda não viu, recomendar-lhe "Pedro e Inês" da Olga Roriz. A propósito desse bailado escrevi há mais de 4 anos o seguinte que lhe dedico:
ResponderEliminarHá jardins onde todos os homens e mulheres deveriam entrar. Há jardins onde todos os homens e mulheres se deveriam enterrar. Se se amaram, se se namoraram à sombra de um Jardim perdido do Paraíso e do Amor. Se criaram fontes com as suas lágrimas e ventanias sibilantes com os seus gemidos incontidos. Se transformaram o seu Amor em jardim, esses que assim se metamorfosearam, inumanizaram-se porque a grande marca desumana da Natureza é o seu mutismo, é o seu perene e invencível silêncio.
No Amor o estranho pode ser o anjo. E, se pensarmos apenas e só nos exemplos da Bíblia, a presença inesperada do anjo anuncia sempre o início da luta de nós connosco próprios. O anjo não é o arauto de um conflito externo ao sujeito. O anjo do Amor e o anjo amado são um mesmo e só, porque o que eles nos pedem é que deixemos de ser o que somos e nos possamos tornar noutros para além de nós. O anjo do Amor, porque estar amando é estar sendo visitado por um anjo, o anjo da Morte, significa a agonia de um certo que temos sido. Da morte de si mesmo. Desse pouco que se era, desse ser normal e idêntico aos outros que éramos e temos sido. Deus não quer tornar Abraão num homicida. Quer apenas que ele se converta ao que ainda não era. O Amor é o anjo dos múltiplos que há em nós. Esse é o seu mistério. O de proporcionar o nascimento daquele que ainda não éramos. Pedro era infante mas não o rei trágico. Mas morre na infância para não se tornar rei e homem, humano, mas inumano. O mistério que não passa por tornar os outros mortais, como na guerra, mas por tornar-nos imortais a nós, com os anjos que nos salvam da nossa miséria e da nossa solidão. Anjos que não nos pedem outros sacrifícios para além do sacrifício de um certo eu que pode agigantar-se, como Orfeu e Pedro, ao reino dos Mortos para onde partem os e as que foram amados e amadas, homens e mulheres que nos chamam com uma voz que não é deste mundo. Para o Amor ser a essência musical do mundo é preciso que os seus Anjos tenham voz melodiosa, ou sejam portadores dos sagrados instrumentos de Apolo ou Diónisos: ou de uma cítara ou de uma flauta. Ou porque são criadores de um véu ou manto que a salva, feito de pranto e canto, como consente o poema da Fiama Hasse Pais Brandão: Teceram-lhe o manto/ para ser de morta/ assim como o pranto/ se tece na roca (…) Também de pranto/ a vestiram toda/ era como um manto/ mais fino que roupa; ou inspiradores de um grito que nos redime de uma linguagem que nos privou de ensinar, pelas emoções, o grito de luto e de exaltação aos pássaros inumanos do céu, todo o poder de uma alegria e de uma dor como a que está escondida no Amor. Porque, ainda que possamos dizer que a poesia é linguagem, e que é nela e por ela que se canta o Amor, em humana verdade ela não é nem linguagem, nem humana. Ou todos seríamos poetas, ou todos seríamos Pedro e Inês. A poesia, por ser linguagem de Amor e da dor, não é senão a prova mais decisiva do carácter inumano e profético do anjo a falar-nos de si, dos amantes e do jogo da liberdade da alma que é o poder de pela memória ressuscitar os mortos. O poeta apresenta o Amor porque ele é um profeta, um Hermes: viajante do mundo superior e do mundo inferior, do céu dos anjos e do degredo dos mortos.
Espero que goste e receba o meu sorriso.
Isabel, somos aquilo que escrevemos? No meu "Beijo" está Pedro? Quem é Inês? Se ela é como tu escreves, quero beijá-la...
ResponderEliminarBelo, cara Isabel. não vi o bailado... obrigado pela recomendação.
ResponderEliminarA Isabel escreve muito bem. De longe, acompanho.
um sorriso também para si.
Isabel,
ResponderEliminarDeixo-te um poema de Paul Eluard que espero que gostes:
"Se eu vos disser: «tudo abandonei»
É porque ela não é a do meu corpo,
Eu nunca me gabei,
Não é verdade
E a bruma de fundo em que me movo
Não sabe nunca se eu passei.
O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos
Sou eu o único a falar deles,
O único a ser cingido
Por esse espelho tão nulo em que o ar circula [através de mim
E o ar tem um rosto, um rosto amado,
Um rosto amante, o teu rosto,
A ti que não tens nome e que os outros ignoram,
O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim,
Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te
E o sangue espalhado nos melhores momentos,
O sangue da generosidade
Transporta-te com delícias.
Canto a grande alegria de te cantar,
A grande alegria de te ter ou te não ter,
A candura de te esperar, a inocência de te
[conhecer,
Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e
[a ignorância,
Que suprimes a ausência e que me pões no mundo,
Eu canto por cantar, amo-te para cantar
O mistério em que o amor me cria e se liberta.
Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu
[próprio."
Ao par, Mulhr Dourada e Gustav:
ResponderEliminarO outro é o "lugar" do abandono. O corpo do outro é o campo e a campa. O beijo, o abraço, nada mais são do que esse nevoeiro da sensação pura. No amor, como saberá também a Mulher Dourada de klimt, não há percepção. Há sensação em estado puro, há quiasma com o outro. É por isso que, na confusão mental, a boca é leque, há um espelho nulo, o ar é um rosto, o rosto é sem nome. O universo contém-nos sem que os amantes se contenham no que são e no que há. Os amantes são para além do aqui e do tangível. Do visível e do invisível, e o sangue que corre, dentro e fora da Mulher, é uma seiva que transporta em fogo, em lava, a vida deliciada. O prazer sem sujeito nem objecto. Com essa tinta ensanguentada do Amor, podia a humanidade conceber seres de Infância Eterna.
Gustav,
somos o que escrevemos e o que a escrita esconde. Não somos toda a escrita, somos só aquela em que beijamos e somos beijados pelo "Pedro" e "Inês" que há no olhar distante com que as palavras convertem o próximo no afastado e o afastado no próximo. E nesse cruzar o impossível somos unidade com o que fomos e nos esquecemos. A escrita é sempre um bom exercício de anamnese.
Agradeço a beleza das perguntas, a grandiosidade do poema. Vou tentar conseguir, na escrita, o abraço Klimteano que estes diálogos me têm suscitado. Fundo, fundo vos agradeço. Gosto de conversar depois.
Encantada, Isabel! Cada um dos teus comentários dava um post. É uma pena que fiquem aqui enterrados no ventre da Serpente, sem que, provavelmente, grande parte dos serpentinos os leia.
ResponderEliminarIncrível! Mesmo no ventre da serpente existem seguidores do belo. Por onde passa, Isabel deixa cair uma pétala da sua flor de pétalas infinitas... Os que as sabem ler caminham até mais não, porque é impossível deixar de acompanhar o fio de Ariadne, cujo destino certo será sempre o amor.
ResponderEliminarObrigado
Ele há coisas...Miguel ontem fui ao teatro e estive quase para mandar uma mensagem...grande texto e grande representação. Gostava de discutir tudo aquilo com o passarinho josé...mas tive receio de incomodar...e mais uma vez alguém diz..."vai ao Ventre da Serpente"...e volto. Como volto para esperar falar e ter tempo para escrever sobre os "Imaculados" de Dea Loher...
ResponderEliminarNas asas do passarinho há outro imaculado que dava uma peça de teatro...gostava de aprender a escrever...tanto texto dentro deste passarinho...
um abraço para retribuir o calor com que aquece o que fora de mim arrefece.
Incomodar... O seu silêncio é que poderá incomodar o mundo, tanto há de bom para oferecer...
ResponderEliminar"Encontrei Deus num saco de plástico e fiquei completamente baralhado." - Não vi mas quero muito ir ver!
Incomodemos!
Sim, sim, é tudo tão belo...a humanidade é triste e bela...tão bela...somos mesmo "imaculados". E o encenador faz o grande favor de nos mostrar os "grandes" do nosso tempo...neste caso a "grande" Dea Loher...
ResponderEliminarE Deus num saco plástico é uma daquelas intuições que estão para além dos nossos disparatinhos todos...
E estão todos bem, os actores, e ainda mais isto...o tema cabe no sentido do texto em que estamos a falar...
saudades de todos
Mulher Dourada de Klimt
ResponderEliminarleio agora com atenção o teu último comentário. E penso assim: não importa a superfície, não importa a exposição. Importa, como o mais verdadeiro minério da terra, que escondido alguém atento o veja. É nesse olhar que ele brilha e é neste que me tem iluminado e alumiado. Bem-haja por isso...pela jóia que intimamente se revela no ainda sem forma deste ventre.