Quem é contra o liberalismo pela razão mais óbvia é, também, contra o anarquismo, na medida em que essa razão é a de que num modelo social liberal os patrões desrespeitariam todo e qualquer direito dos trabalhadores, visando o lucro, dada a ausência de leis ou regras, ausência também verificada num modelo anarquista, razão suficiente para o mesmo desrespeito, não obstante o facto de os anarquistas defenderem a ausência de patrões.
Acontece que a razão pela qual os anarquistas criticam o modelo liberal é a sua descrença numa suposta bondade dos patrões, o que contradiz a sua teoria de que, educado, o ser humano é capaz de se tornar um animal fraterno porque, afinal, os patrões (nada mais) são (que) pessoas. Assim, só me resta crer que os anarquistas crêem que num modelo - que não o seu - as pessoas não têm escrúpulos e, noutro - o seu -, são maravilhosas e fraternas criaturas acabadas de sair de um colorido conto de fadas, anjos caídos num qualquer paraíso astral.
Tanto os liberais como os anarquistas têm problemas com a autoridade. Os primeiros, supostamente, porque defendem a treta do mercado livre, a auto-regulação, a iniciativa privada, blá blá blá, etc. Os segundos, supostamente, porque as leis são um instrumento opressivo do Estado, criado por um grupo de pessoas maquiavélicas, diabólicas, control-freaks cujo único prazer é o controlo e a instrumentalização dos outros, coitadinhos, pobrezinhos, sem culpa nenhuma.
Na minha opinião, o Estado, essa entidade abstracta à qual oferendamos entidades concretas, é uma entidade importante. Diria mesmo que se o Estado não existisse seria imperativo que o Estado existisse. Mais que não seja, por quatro razões: serviços de saúde, educação, reformas, segurança. Infelizmente, ao contrário dos anarquistas (e sendo momentaneamente caritativo), não creio que as pessoas sejam naturalmente viradas para a bondade, fraternidade e géneros afins. Creio que se não existissem leis e punições a criminalidade seria muito maior do que actualmente é. Penso que essa possível hecatombe, que seria a ausência de leis, não se deveria a uma qualquer falha moral humana, embora possamos tê-las em excesso, mas à nossa própria condição de esfomeados, sedentos e doentes.
Qualquer que seja o modelo socio-natural em vigor, haverão - sempre - pessoas melhor adaptadas do que outras ao mesmo, ou porque são mais inteligentes ou porque são mais fortes ou porque são mais bondosas ou porque... A verdade é que, até que encontremos a pílula-contra-todos-os-males, teremos de trabalhar para comer, beber água, ter roupa, casa, medicamentos, assistência na velhice (se lá chegarmos...) e assim por diante, pois a carência é uma das mais vibrantes propriedades da condição humana.
Nesta medida, penso que, embora hajam modelos sociais mais justos do que outros, o nosso maior problema - a carência, a necessidade - nasce connosco, em cada um de nós, sendo que não se augura solução no horizonte. No entanto, como disse, o mal pode ser parcialmente remediado, através da implementação de um modelo social mais justo do que outros e, a meu ver, esse modelo passa pela existência de um Estado que legisle e que tenha dinheiro, através de impostos, que seja utilizado justamente para cumprir a única função pedida a um Estado necessário: a minoração do sofrimento humano, na senda da melhoria da condição humana.
O ser humano, acima de tudo ama o poder. Exercer poder sobre os outros é a mais frequente e a mais humana das actividades humanas, seja através da violência física, psicológica, da discriminação e do isolamento do "Outro", da sedução, da sujeição sexual, da vertigem de poder que vem do sentimento de omnipotência que vem com a tão idealizada maternidade/paternidade, ou até na exibição da própria erudição, inclusivé em espaços destinados à libertação do próprio "eu". A brutalidade da infância e da adolescência é a prova cabal disso. O "amor" e a "civilidade" são resultados de processos de aprendizagem e são sempre uma capa fina e frágil, que facilmente se desintegra.
ResponderEliminarÉ um excelente comentário mas, infelizmente, não concordo. Dou comigo, não raras vezes, à beira de tentar exercer poder sobre os outros e, quando tomo consciência disso, opto, maioritariamente, por não fazê-lo. Exercer poder sobre os outros é, maioritariamente, uma agressão sobre os mesmos, na medida em que é um condicionamento do seu ser, do que são. Para além do mais, o poder e o seu exercício, sobre os outros, nada mais são do que prisões em que nós próprios nos encarceramos. Tive um professor de filosofia que se fartou de afirmar o seguinte: "a filosofia é uma lição de impoder"; nunca mais esquecerei essa frase (ok, talvez se um dia ficar demente...), porque traz consigo uma lição muito importante, que é a da abnegação dessa vontade de poder que refiro e que o comentador crê que o humano quer, maioritariamente, actualizar. Libertarmo-nos do (pouco) poder (que temos) é, como qualquer libertação, uma libertação. "Naturalmente", há pessoas que têm muito poder nas mãos, na medida em que as suas decisões são decisões de vida ou de morte para os outros; mas eu não sou uma dessas pessoas; pergunto: o que as move? Talvez a ganância, talvez o exercício de poder que o comentador foca... Diz-se que o poder corrompe; contudo, não creio que se trate de um mal necessário. Afinal, não haverá quem já tenha usado o poder para o bem? Diria que sim, que a abdicação do exercício do poder sobre os outros, quando o temos, é ela mesma um bem, primeiramente porque implica respeito pela autonomia e vontade dos mesmos. No entanto, isto não é claro, porque podemos conceber situações em que o exercício de poder sobre o outro é um bem para o mesmo e não um mal. Concluíndo, não creio que o ser humano ame acima de tudo o poder.
ResponderEliminarNão exerceste o poder nessas situações em que o poderias ter feito porque foste educado para tal. Tu próprio o afirmas.
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