quinta-feira, 4 de setembro de 2008
O cavalo negro e selvagem
"Só que ela não queria ir de mãos vazias. E assim como se lhe levasse uma flor, ela escreveu num papel algumas palavras que lhe dessem prazer: "Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenho medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez".
Ela sorriu. Ulisses ia gostar, ia pensar que o cavalo era ela própria. Era?"
- Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Rio de Janeiro, Rocco, 1998, pp.28-29.
Um dos romances mais belos e profundos sobre o amor entre um homem e uma mulher como iniciação.
Ela sorriu. Ulisses ia gostar, ia pensar que o cavalo era ela própria. Era?"
- Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Rio de Janeiro, Rocco, 1998, pp.28-29.
Um dos romances mais belos e profundos sobre o amor entre um homem e uma mulher como iniciação.
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7 comentários:
Qual a relação deste cavalo com os cavalos do carro da alma em Platão, com o cavalo de vento (lung ta) tibetano e com as cavalgadas do candomblé afro-brasileiro?
Não será a saudade deste cavalo, ou o seu não reconhecimento, que injecta tanto "cavalo" em tanta veia?...
prometo que tento resposta...mas ainda ocupado, o cavalo, a cuidar do outro que é difícil. Tento ser o cocheiro dos dois...mas é difícil...o desafio é irresistível...
o cocheiro nem sabe para onde se voltar...
O cavalo permite que a gente se evada deste "Big Brother" que e a vidinha chata, completamente moldada para servir interesses obscuros e sugar a seiva da vida, a paixao que realmente nos mantem vivos.
O pior e que o cavalo nos acorrenta numa prisao ainda pior.
Deveriamos era arrebentar com o "Big Brother", a comecar com a forma como o interiorizamos nas nossas cabecas, que por sua vez se projecta naquilo que nos julgamos ser a realidade.
“ E, quanto à sua imortalidade [a da alma] está dito o suficiente. Sobre a sua natureza, no entanto, deve acrescentar-se o seguinte: dizer o que ela é exigiria uma exposição de todo em todo divina e muito longa: mas dizer ao que se assemelha é empresa humana e de menores proporções. É, portanto, sob este ponto de vista que vamos falar. Podemos compará-la à força inata que une uma biga alada e o seu cocheiro. Os cavalos dos deuses e os seus aurigas são todos eles bons e originários e bons elementos, enquanto os dos outros são uma mistura. Sendo assim o nosso condutor, em primeiro lugar, dirige uma parelha; em seguida, dos seus cavalos, um é belo, bom e vindo de animais da mesma qualidade; mas o outro descende dos opostos deste e tem natureza contrária. Por conseguinte, é necessariamente o ofício do cocheiro em nós.” 246 a-246 b
Em diálogo fictício com Clarice Lispector e com o Interrogativo
Com efeito, nas mãos não levava uma folha com um texto. Levava a asa da alma dobrada sobre o corpo nu, metáfora para a luz. Essa asa que tremia suavemente, como se batesse, como se ensaiasse o voo, o levantamento, tinha escrito um reconhecimento que ritmava com um estremecimento. Em estado musical, ela sabia agora quem era o cavalo negro e selvagem. Por isso perguntava, se perguntava a si mesma, sorrindo: Ulisses ía gostar, ía pensar que o cavalo era ela própria. Era?
O cavalo negro e selvagem era ele. Ulisses o velho navegador entregue às sereias, aos ciclopes, à sorte e ao azar. Ulisses, o selvagem, que na versão de Sófocles tece o ardil a Filoctetes, sem freio, mora em todas as mulheres, na solidez dos seus corpos, nelas se abriga como na mais segura gruta: nas mulheres reais e nas mulheres irreais. Ulisses, o fantástico navegador que não resiste ao seu ciciar, entrega a boca para na fonte saciar a sede de cantar e encantar. Ulisses, o único que não tem nome, é Ninguém, é o Amor. Ulisses, o velho navegador, olha o céu, olha as ondas e no recorte das nuvens, no rebordo das espumas, sabe que em tudo o que é branco há espaço, há luz. Ulisses, o que inventa formas, cavalos com porte e sem trote, também sabe entrar onde a noite se faz luz. Ulisses, o que se desvia como uma ilha errática, cavalga nas águas na outra forma antiga de ser: um relinchar sagrado num corpo que sabe cavalgar no mar. Ulisses mascarado, cavalo-marinho, escolhe, nessa forma, nessa indisfarçável forma, a máscara que o conduz a todas as grutas onde se esconde um lago sem que à porta esteja acesa uma chama, um facho de cera com cheiro e ou cor carmesim.
Ela? O cavalo negro e selvagem também era ela. Quando a viu coberta com a asa, Ulisses estancou o trote, desfez o porte. Nem a procurada solidez do corpo, nem a sede das águas, nem a direcção das fontes, incitavam mais o desejo. Ulisses – o navegador contemplativo, paralisado, raptado pela asa e pela nudez distante de uma paisagem em que não há falo mas apenas fala, como se o único sexo do que está vivo fosse a alma, a companheira do corpo desenfreado e louco – vislumbrando a remota Planície, murmurou ao cocheiro uma ordem nova: pensar! Irrompendo numa quase imobilidade, Ulisses, por decisão brusca do cocheiro interior, roçagando o olhar sobre o próximo que tinha estado distante, sentindo o calor da asa e pressentido a mudez sibilante da fala, reconheceu nela o cavalo não inventado e abandonado. Ela? Quem era ela? A alma-Penélope que tece com fios dourados e se cobre de pudores e que recusa os pretendentes que chegam na ausência do que navega e corre a distância imensurável do mundo, é a alma que descobre a outra parte coberta de si, a sua própria nudez. Ela não era a mulher. Era a alma. Os que se olham, depois do amor, sabem-se um só e mesmo. Ela era ele. Ela era ela. Se Penélope fosse uma mulher não esperaria, imóvel e fiel, sentada ao tear. Se ele fosse apenas o cavalo negro e selvagem, não seria a ilha errante, seria Ulisses satisfeito consigo e inostáligico. A única parte de cada um que consegue essa imobilidade, que se oferece, ou manda textos a chamar por quem espera é a alma. A única parte de cada um que regressa e se desloca, em enlouquecida cavalgada para o repouso, é a alma. O cavalo negro e selvagem é a alma-Ulisses e o cavalo branco belo e bom, que espera e escreve textos, é a alma. O que a única fala dela perceptível para nós quer dizer é que é indistinto, no Amor, saber quem é o quê. No Amor e no Pensar somos enamoramento numa totalidade em que é indiferente o masculino e o feminino. E a outra coisa que este texto nos ensina é que aquele que pensa abre a asa que descobre o passado e desdobra a outra que descobre o futuro. É por isso que o pensar segue todas as direcções e é o que, morando junto ao Poema, segue indireccionado e intemporalizado.
e neste momento fico a chorar debaixo da oliveira...
alma da minha alma...
e para que nos serve uma alma?
Sorriso!
Como Clarice Lispector se comoveria ao ler esta suma homenagem que se lhe presta superando o seu próprio texto, no comentário de "à procura do cavalo bom e belo"!... Se é quem adivinho, é alguém que não quer publicar um livro por achar que o que escreve não o merece...
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