Reúno aqui um conjunto de estudos e ensaios dispersos, bem como um extenso texto inédito, que versam sobre um dos rumos maiores da minha actividade enquanto investigador e docente, a reflexão acerca de Portugal e do seu sentido no diálogo hermenêutico com alguns dos seus mais destacados poetas, profetas e pensadores: Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.
Em todos eles o leitor encontrará um nítido fio condutor: por vias diversas, estes cinco autores vislumbram e assumem em Portugal, na sua dimensão simultaneamente real e simbólica, uma vocação para a universalidade. Este Portugal e esta vocação, naturalmente pensados a partir da experiência histórico-cultural dos Descobrimentos e da diáspora planetária ainda em curso, assumem duas vertentes, simultâneas e inseparáveis: 1 - designam, por um lado, a predisposição e o impulso do povo, da nação e da sua cultura para uma aventura e convivência planetárias, que nos intérpretes aqui estudados se converte na assunção de Portugal como mediador ou inaugurador de um novo ciclo cultural e civilizacional, sob o signo de uma globalização ético-espiritual, em tudo contrastante com aquela, de teor económico-tecnológico, que hoje se impõe, com todos os problemas e riscos inerentes; 2 – por outro lado, Portugal e a sua vocação para a universalidade são assumidos, pelos mesmos autores, como símbolos de algo que interpretamos como o próprio homem ou a própria consciência, em busca de uma visão-experiência mais plena do real e na aspiração a realizar integralmente as suas supremas possibilidades. Desta interpenetração de dois registos do que se designa como Portugal, o real e o simbólico, e que se prolonga na leitura feita de algumas das suas mais paradigmáticas figuras, mitos e símbolos histórico-culturais, decorre uma complexa ambiguidade, que exige um rigoroso discernimento hermenêutico e crítico. É isso que procuramos fazer ao longo deste livro, num diálogo com os autores que procura pensar com e a partir deles e dos seus temas, problematizando as suas leituras, sem deixar de lhes aproveitar as sugestões especulativas.
Seja como for, encontro nestes cinco poetas, profetas e pensadores de Portugal, do seu sentido e destino, aquilo a que chamo Uma Visão Armilar do Mundo. O que designo como tal é uma visão-experiência do mundo sob o signo de tudo o que no símbolo da esfera armilar se implica: perfeição, plenitude, totalidade e infinidade. Tudo se passa como se nestes cinco autores o sentido último de Portugal, e/ou do que como tal se simboliza, não deixasse de ser o divino globo do mundo, ou a sua divina visão, revelada por Tétis a Vasco da Gama na camoniana Ilha dos Amores. Directa descendente da Esfera do Ser em Parménides, da Esfera do Amor em Empédocles e da Esfera camoniana, além de todas as tradições que figuram o divino e o incondicionado como uma Esfera infinita e omniabrangente, a Esfera Armilar acresce a essas, no entrecruzamento das suas múltiplas armilas, o símbolo da interconexão dinâmica de todos os seres e coisas, de todas as tradições e culturas, de todas as artes e saberes.
Muito antes de se tornar a divisa de D. Manuel I, conectada com o domínio imperial e territorial do mundo, é essa a maior fecundidade simbólica da Spera Mundi – Esfera e/ou Esperança do Mundo, conforme foi interpretada – que tremula na nossa bandeira, como marca disso que Camões, Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva divisam na nossa cultura: ao contrário da atitude do nacionalismo ou patriotismo comum, luso ou lusófono, sempre tendentes a resguardar-se (agressivamente) atrás de supostos e estáticos perfis identitários e a privilegiar o mesmo em relação ao outro, a cultura portuguesa e lusófona primaria pelo impulso de converter muros em pontes, fronteiras em mediações e lugares de passagem, limites em limiares, num descentramento e abertura incircunscritos ao mundo e ao universo, a todos os povos e seres, a todas as línguas, culturas, religiões e irreligiões, a todas as formas de alteridade. Como se acentua em Pessoa e Agostinho da Silva, Portugal e a Lusofonia seriam mesmo movidos por um ímpeto de ser tudo de todas as maneiras e nisso sacrificar, esquecer e perder a própria identidade, transfigurando-a divina e cosmicamente, tal um sujeito místico que só se realiza plenamente, sendo tudo quanto pode ser, quando já não é isto ou aquilo, quando não existe, quando não é nada.
Decerto que nesta visão haverá uma boa parte de idealização optimista, que projecta na nação as próprias e supremas aspirações dos autores, pois o Portugal e a comunidade lusófona que, noutras perspectivas, surgem como reais, parecem ter sido e ser bem diferentes, para o melhor e o pior. Tudo depende, como sempre, da perspectiva que condiciona e dá forma à percepção do que chamamos real. Contudo, para além de toda a deconstrução psicológica e psicanalítica possível, permanecerá qualquer coisa por esclarecer, que é o fundo obscuro que torna esta visão reiteradamente presente nalguns dos nomes mais representativos e geniais da nossa cultura. Independentemente de esta visão armilar do mundo corresponder a uma missão, vocação, potencialidade ou aspiração, creio que ela é, indubitavelmente, a visão mais fecunda que do mundo se pode ter, sobretudo se for assumida não como mera forma de autogratificação intelectual, cultural e/ou supostamente “patriótica”, como algo de já garantido e possuído de uma vez por todas, mas antes como projecto individual e colectivo a desenvolver, dádiva, tarefa e serviço a prestar a si, à nação, ao planeta e ao universo. Porque uma visão armilar do mundo é, como vimos, uma visão-experiência do mundo sob o signo da perfeição, plenitude, totalidade e infinidade, real ou possível, convidando à abertura da mente e do coração ao entrecruzamento, intersecção e interacção armilares de todos os seres e coisas – que na verdade não são, mas entre-são, como disse Pessoa - , ela não pode senão conduzir a um Abraço solidário à natureza e a todos os entes, que seja a busca de realização do seu Bem, a todos os níveis, do espiritual e cultural ao ecológico, social, económico e político, sem discriminação de raça, sexo, religião, nacionalidade ou espécie. Uma visão armilar do mundo é uma visão-experiência integral do mundo, sem cisões, exclusões ou parcialidades.
É sob a influência deste potente símbolo, a Esfera Armilar, e em busca de uma filosofia armilar como cumprimento da vocação de toda a filosofia, antes modo de vida do que mera teoria, que inicio com este livro um novo ciclo da minha produção filosófica e literária, numa natural metamorfose daquele antes iniciado sob o signo do Finisterra e do Atlântico [1], já antecipada num livro e na ficção sobre Agostinho da Silva [2] e emergente nas obras publicadas mais recentemente [3]. É também sob o signo da Esfera Armilar que publico aqui os três últimos ensaios, de carácter mais pessoal, onde os dois últimos apontam rumos concretos de acção e intervenção pública, inspirados no que designo como patriotismo trans-patriótico e universalista e consubstanciados no projecto Refundar Portugal/Outro Portugal.
E é o símbolo holístico da Esfera Armilar que - numa era celebrada como multicultural, mas ainda tão falha de uma visão real da interdependência ou do entre-ser universal de todos os seres, povos, nações, saberes e culturas - invoco como paradigma plenamente actual e contemporâneo de um destino por cumprir, de um potencial em aberto, de um chamamento urgente, vindo do mais fundo sem fundo de cada um de nós e do qual depende hoje a própria sobrevivência humana, a biodiversidade e o equilíbrio do planeta: ver e experimentar o mundo divinamente, ou seja, integralmente, sem cisões, exclusões ou parcialidades.
[1] Cf. Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001; Pensamento Atlântico. Estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.
[2] Id., Tempos de Ser Deus. A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva, Lisboa, Âncora Editora, 2006; Línguas de Fogo. Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva, Lisboa, Ésquilo, 2006.
[3] Id., Princípio e Manifestação. Metafísica e Teologia da Origem em Teixeira de Pascoaes, 2 volumes, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008; A cada instante estamos a tempo de nunca haver nascido (aforismos), Lisboa, Zéfiro, 2008; Da Saudade como Via de Libertação, Lisboa, Quidnovi, 2008; A Pedra, a Estátua e a Montanha. O Quinto Império no Padre António Vieira, Lisboa, Portugália Editora, 2008; O Jogo do Mundo. Ensaios sobre Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, Lisboa, Portugália Editora, 2008.
[1] Cf. Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001; Pensamento Atlântico. Estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.
[2] Id., Tempos de Ser Deus. A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva, Lisboa, Âncora Editora, 2006; Línguas de Fogo. Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva, Lisboa, Ésquilo, 2006.
[3] Id., Princípio e Manifestação. Metafísica e Teologia da Origem em Teixeira de Pascoaes, 2 volumes, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008; A cada instante estamos a tempo de nunca haver nascido (aforismos), Lisboa, Zéfiro, 2008; Da Saudade como Via de Libertação, Lisboa, Quidnovi, 2008; A Pedra, a Estátua e a Montanha. O Quinto Império no Padre António Vieira, Lisboa, Portugália Editora, 2008; O Jogo do Mundo. Ensaios sobre Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, Lisboa, Portugália Editora, 2008.
Prefácio de Paulo Borges, Uma Visão Armilar do Mundo, Lisboa, Verbo, 2010.
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