domingo, 13 de dezembro de 2009

"[...] a verdade / Que morreu D. Sebastião"



(quadro atribuído a Cristóvão de Morais)

Publico aqui a continuidade de um texto anterior, de comentário ao poema inicial da Mensagem de Pessoa: "O dos Castelos".

O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras por eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

O poema “Quinto Império” permite aprofundar a interpretação do poema anterior. Começando pelas duas últimas estrofes, elas anunciam claramente um desenlace do sentido da passagem do tempo terreno e histórico como uma transição da “noite” para o “dia”, da treva para a luz, do negativo para o positivo (“atro” significa negro, tenebroso, lúgubre, aziago), ou melhor, como um pleno desentranhamento do “dia claro” que na funesta e “erma noite” já se enraíza e brota. Este processo é também uma passagem dos “quatro / tempos” de um estado onírico para um despertar, esse mesmo “dia claro” que acontecerá no “teatro” da “terra”. Os quatro tempos ou quatro sonhos passageiros e fugazes do “ser que sonhou” (um Deus sonhador ou o próprio homem?) são claramente os quatro impérios, os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais, que se destinam a ser superados pelo Quinto Império, na versão pessoana da interpretação pelo profeta Daniel do sonho de Nabucodonosor (Daniel, 2, 31-45) que se converteu num recorrente mito teológico-histórico-político ocidental, entre nós exaustivamente interpretado pelo Padre António Vieira. Esses quatro impérios, que configuram para Pessoa a génese histórico-cultural do último deles, a Europa, são pois estados oníricos, conotados com um regime obscuro de consciência, em que o “dia claro” não emergiu ainda plenamente da “erma noite” em que se enraíza e secretamente desponta. São por natureza fugazes e inconsistentes, tendo o destino de tudo o que é temporal: a evanescência e a dissolução, desaparecer sem deixar traços.

O que fica afinal, após os quatro tempos da noite e do sonho, senão o “dia claro” que já neles secretamente se desenvolvia? E o que é esse “dia claro” senão o Quinto Império, que desde Daniel é visionado e profetizado como universal e perene?. Mas o que é o Quinto Império para Fernando Pessoa? Veremos que tem vários sentidos, claramente apontados nos vários textos em prosa que lhe dedicou. Neste poema, contudo, sem contradizer esses outros sentidos e constituindo porventura a chave maior para a sua compreensão, o Quinto Império é sugerido como a “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Importa pois saber o que seja esta “verdade”, que, apesar de não ser definida, não deixa de ser por sua vez sugerida como o tema das três primeiras estrofes do poema. Que existam as condições para se compreender do que se trata é aliás o que fica pressuposto na exortação e desafio final a que surja quem venha “viver” essa “verdade / Que morreu D. Sebastião”.

O poema começa por lamentar dois aspectos da comum condição humana. “Triste” é “quem vive em casa”, fechado na sua reclusão doméstica e “contente” com essa forma exígua de exercício das possibilidades humanas, sem que algo mais, “sonho” ou “golpe d' asa” (cf. Mário de Sá-Carneiro), o leve a transcender essa condição domesticada, tornando até mais viva a experiência disso que se abandona (“mais rubra a brasa da lareira a abandonar”), subtil indicação de que só vivemos plenamente aquilo de que nos libertamos. Triste é também “quem é feliz”, contente agora com a mera duração da vida a que adere vegetativamente, inconsciente de tomar por vida a própria morte, o estar já sepulto nessa mesma e extrema limitação das possibilidades humanas. Esta falsa felicidade, extremamente condicionada e vulnerável, resulta de nada haver no indivíduo que internamente o leve além da “lição da raiz”, que se pode interpretar como o (falso) saber comum dispensado pela família, pela escola e pelo meio social aos humanos, ou, mais fundo, como esse inquestionado e irreflectido enraizamento vegetal na mera duração da vida biológica, sancionado pelas convenções dominantes na família, na escola e na sociedade.

Após a lamentação das duas primeiras estrofes, onde, em termos terapêuticos, se faz o diagnóstico e a etiologia do estado mórbido em que se encontra o homem comum, a terceira estrofe indica o remédio, a via a seguir para que tal estado se supere, o que deixa implícita a possibilidade da saúde. Essa via passa por assumir o descontentamento, o inconformismo com a situação imediatamente vivida, como exercício de humanidade. É isso que permite que se cumpra o apelo final: domar “as forças cegas” pela “visão” que há na alma, porventura a mesma visão espiritual a que alude o título Mensagem: Mens ag(itat) (mol)em, a visão de que o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão, o animado e o inanimado. A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores. Isso é possível, note-se, “pela visão que a alma tem”, como se nisso se aludisse a algo, o poder da consciência, desde já presente na alma, ou seja, na vida interna do homem, porventura apenas inoperante na medida em que esteja encoberto pelos automatismos da “vida” vegetativa e convencional.

Todavia, a estrofe carece ainda de ser lida em função do que nela se acrescenta e da sua função de charneira que, no centro da composição, estabelece a ligação entre as estrofes anteriores e posteriores. No seu início refere-se o fluxo contínuo das “eras” que umas às outras se sucedem e destituem, desvanecendo-se na mesma passagem voraz do tempo. A impermanência das “eras”, enquanto períodos temporais, é claramente, na estrofe seguinte, a dos “quatro / Tempos do ser que sonhou”, destinados a passar cedendo o lugar ao “dia claro” que desde o início nessa mesma fugacidade temporal se enraíza, germina e cresce, até que surja plenamente no “teatro” da “terra”. Estes quatro “tempos” ou “eras” oníricas, em que se troca o real por uma ficção inconsciente de o ser, e que são os quatro impérios – Grécia, Roma, Cristandade, Europa – destinados a desvanecer-se e ser superados pelo Quinto, são pois os marcos da história do mundo em que predominam as “forças cegas” que tornam a vida vegetativa, convencional e defunta e que devem ser domadas “pela visão que a alma tem”. Esta manifesta-se assim idêntica ao “dia claro”, ao despertar dos quatro tempos do sonho, ao implícito Quinto Império e à enigmática “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Resta saber o que é esta verdade, que fica desde já suposta como algo que transcende a impermanência universal que rege o tempo cósmico e a história político-civilizacional dos homens. É legítimo entretanto supor que ela também se relaciona com essa visão ampla que se diz na palavra Europa e que, pelo seu rosto-Portugal, fita/deseja esfíngica e fatalmente a sua morte e transcensão na alteridade do Ocidente/Oceano, esse “futuro do passado” (cf. o poema inicial da Mensagem) que já vimos ser irredutível a qualquer determinação temporal e histórico-geográfica. A “verdade / Que morreu D. Sebastião”, o Quinto Império, está demasiado comprometido com o despertar da ficção onírica e com a transcensão do movimento histórico para poder ser objectivado em qualquer coordenada espácio-temporal. Não o entender é ficar tristemente refém do tempo de ilusão que é o dos quatro impérios, o tempo da vida sepulta na funesta “noite” da consciência dominada pelas “forças cegas” que regem a visão comum, apegada ao seu enraizamento no irreal.

(texto em formulação e a continuar)

21 comentários:

  1. Todos querem ser donos... do Quinto Império! JCN

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  2. Triste de quem é feliz!
    Vive porque a vida dura.
    Nada na alma lhe diz
    Mais que a lição da raiz –
    Ter por vida a sepultura.

    Sonhadora

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  3. Acerca do Quinto Império
    com capital em Lisboa
    há mil e uma versões
    para além da de Pessoa
    que não passam de ilusões
    para não tomar a sério.

    JCN

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  4. Camões, que tudo conhece,
    não falou do Quinto Império,
    o que, a meu ver, me parece
    ser a chave do mistério:

    talvez seja brincadeira
    do Padre António Vieira!

    JCN

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  5. Quinto império existe desde que o Homem o pense e o faça. Desde Lisboa a Calcutá, em qq lugar do mundo, sem nação ou cultura.
    Transcendendo qq história, cultura ou regra humanas.
    Ao Homem pertence e ao Homem lhe será dado, desde que o sonhe e alcance.
    Basta que aprenda a ser criança, de novo!

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  6. Como é que se aprende a ser criança... não o sendo?!... Qual será a regra de ouro... que nos conduz a esse estado... ultrapassado?!... Criancices... gratas de ouvir, quando a infância já vai longe! Como colecciono versões de Quinto Império, vou juntar mais esta... à colecção. Talvez o Manoel de Oliveira se inspire nele para um novo filme. Vou-lhe fazer essa sugestão: O Quinto Império das Crianças! Alinho... nessa. JCN

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  7. Será que, a nível mundial, vamos ter uma guerra de Quintos Impérios... infantis?!... JCN

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  8. O humor de JCN é impagável!
    Insuperável!
    Rio quase sempre.

    Quem pode não rir desta frase:

    "Será que, a nível mundial, vamos ter uma guerra de Quintos Impérios... infantis?!... JCN"

    Não creio que seja fácil! A qualquer medíocre competir nesta área, também.

    Com mais piada só esta, da minha "graciosa" lavra:

    "Eu acho que JCN é uma criação minha!"

    Um sorriso de empatia JCN!

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  9. Tão graciosamente afirmada, quem não se honraria com tal maternidade?!... Sempre "fagulhas de ouro"! E mãos cheias de esmeraldas! JCN

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  10. ... Tudo preciosidades para o Quinto Império ... espiritual, JCN!

    A guerra dos "infantes imperiais" é uma coisa que me põe a pensar...
    que morreu D. Sebastião!?... mas não morreu a ideia dele. Receber não é ser dono. É agradecer e retribuir...

    As ideias não morrem, renascem e reactualizam-se... como os sonetos.
    As ideias são como os sonetos (quando não se encravam as máquinas... e não se "en (pan) ca" a vida)

    Tanto a tristeza como a alegria são "molas", ânimo e coragem de agir: a cada um segundo o seu Amor, dizia Camões, e segundo o seu entendimento... terá dito Pessoa...

    O que em nome de uma vontade superior a si mesmo, tiver força para sonhar... será nele que mora o Quinto Império. Posto que não é deste mundo, o que a si se supera, abdicando da sua pessoa, transcendendo-se, ganhando-se asas!
    Esse é o que regressará!

    "Será que o futuro nos reserva... um conflito mundial de Sebastiões com asas?" (Aqui, surge o momento de auto-irinia necessária!)

    Já para aqui estou a falar há algum tempo... vou-me retirar e repousar.

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  11. Sabia, "saudadesdofuturo", que na preciosa armadura milanesa do meu "irmão-de.leite", o "temor da maura lança", a "bem nascida esperança", estava representada a "Fénix renascida"?!... Dá, efectivamente que pensar! Sabe também que eu guardo uma das três penas caídas do elmo do "Encoberto" na batalha que lhe deu a imortalidade... comigo ao lado?... Coisas do arco-da-velha, que estou sempre a recordar. Olhe que D. Sebastião não "morreu"! Ele é que "morreu a verdade", ou seja, morreu por ela. Tanto se morre como se vive a verdade. Pessoa, com as suas originalidades, tornou o verbo transitivo. Uma das suas geniais liberdades poéticas, sem pedir vénia à Academia das Ciências... que seguramente não lha dava. Terei razão?... JCN

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  12. ELEGIA

    Ai! Dom Sebastião, que lhe fizeram,
    que lhe fizeram, que ainda não voltou?...

    Nos areais de Alcácer o deixaram,
    lá o deixaram, nunca mais o viram...
    sete espadas o peito lhe vararam
    e trê4s penas do elmo lhe caíram!

    A1! Dom Sebastião, que lhe fizeram
    que lhe fizeram que ainda não tornou?...

    Corpo de Rei, por mais que se buscara
    não se encontrou:
    de todas as empresas que sonhara
    só o seu Sonho não se malogrou!

    Ai! Dom Sebastião,
    que lhe passara,
    que lhe passara, que não mais voltou?...

    JOÃO DE CASTRO NUNES

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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  14. Foi a Verdade que o matou, a D. Sebastião! Há pois que viver a Verdade que há nesse "erguer da asa".

    Ter por vida a "morte", ser sepulto em vida é ser "feliz" por não saber ser "triste"... por não saber morrer(se) pela Verdade.
    Para que seja vivida por todos, terá que morrer.
    "Quem vem viver a verdade"

    Pessoa visiona o Quinto Império como o "sonho" de quem ousa viver a "morte da verdade",e nessa vivência, nascer, fazer despertar, tornar claro, por oposição à "erma noite"... Esse "claro dia" será o nascimento do mito...

    O Quinto Império é sempre um para além do tempo e do espaço. É insituado, instaura-se e visiona-se como um para além do real e do possível... e por isso ele, o mito levantado em Quinto Império, o mesmo a um outro nível, D. Sebastião, o mito que "é um nada que é tudo."

    Não é a "Ilha Afortunada" e a "Máquina do Tempo" é o avesso dela... O outro lado do Ser português que se terá morrido para a busca de uma "Nova Índia" dessa da alma, não a assente na geografia do mundo, mas a que se suspende, sem gravidade, no espaço insituado, na dimensão indimensionada de uma "geografia da alma" e do Espírito de novos e ousados voos!

    Quem vem viver a verdade/ Que morreu D. Sebastião?

    Não morreu, certamente, a Verdade que o "viveu",a D. Sebastião,tão só nasceu desse "morrer", o mito que nos vive ou morre, como queiramos que ele nos seja.

    P.S. Já percebi porque sou poeta e não sou filósofa... E também já percebi por que razão JCN prefere o soneto. (risos)

    Não se quer meter em Quintos!... Prefere as Ilhas... Afortunadas, JCN!

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  15. Prefiro tudo quanto seja belo e gracioso... como as suas rendilhadas palavras! Pode crer. JCN

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  16. O MEU PREITO

    Pbre menino cheio de mazelas,
    filho de Infante ainda adolescente,
    criado pela Avó, como Regente,
    que o induziu a sobrepor-se a elas!

    Quis que ele fosse um Rei como sonhou,
    um grande cavaleiro, um grão cruzado,
    continuador das górias do passado,
    esteio da nação... que o "desejou".

    Sem defraudá-la... e superando a custo
    os seus achaques, que escondeu do Povo
    que nele via o seu herói... (tão novo!),

    veio a morrer de pé, armas na mão,
    lutando contra as forças do Islão:
    permitam que eu me curve ante o seu busto!

    JOÃO DE CASTRO NUNES

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