sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Natureza da mente, meditação e contemplação segundo a tradição do Dzogchen ou "Grande Perfeição"" - I



- Longchenpa

Publico o início da comunicação que apresentarei no Sábado, dia 14, pelas 11.30, no 3º Simpósio Internacional "Fronteiras da Ciência", A Humanidade e o Cosmos, organizado pelo Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência da Universidade Fernando Pessoa (Porto), em 13 e 14 de Novembro. A presente versão não tem notas de rodapé.

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A presente comunicação visa introduzir à experiência meditativa e contemplativa da natureza última da mente e dos fenómenos segundo a tradição budista tibetana do Dzogchen, ou "Grande Perfeição", a partir de textos de dois dos seus mais eminentes representantes, ambos pertencentes à escola dos Antigos ou Nyingmapa: Longchenpa (1308-1363) e Dudjom Lingpa (1835-1904). Considerado, na classificação da mesma escola, e na perspectiva da via gradual (lam rim), como o último e supremo dos nove veículos para o reconhecimento da natureza primordial da mente e de todos os fenómenos - a natureza de Buda, designação não de uma figura histórica, mas do pleno desvendamento da realidade última - , o Dzogchen é todavia, em si mesmo, não propriamente uma via ou um veículo, mas o próprio estado de experiência imediata da perfeição natural e absoluta de todas as coisas, independente dos métodos e práticas que o podem preparar e mesmo de qualquer tradição, religião ou escola específicas.

Começamos por um texto de Dudjom Lingpa, Nang-jang, Refinar os Fenómenos Aparentes, cujo início descreve a constituição da experiência condicionada de si e do mundo e a sua ausência de fundamento. Se analisarmos, aquilo que se designa como o “si mesmo da personalidade individual” não consiste senão numa “impressão de que existe um si mesmo”, seja na vigília, no sonho ou no bardo – o estado intermediário entre uma morte e um renascimento. Porém, “seguindo imediatamente essa primeira impressão, há uma consciência subjacente” – também designada como “consciência subsequente ou “pensamento discursivo” - que considera essa impressão como sendo um “eu””. Isso parece tornar “mais clara”, “estável e sólida” a “impressão do si mesmo”, se bem que, se tentarmos localizar a fonte originária do dito “eu”, tenhamos de concluir que ela não existe.

Trata-se com efeito de investigar, a respeito do assim chamado “eu”, se podemos determinar-lhe uma “localização” e um “agente localizado”, existentes como “entidades” “individualmente identificadas” e com “características ultimamente definidoras”. Se procurarmos essa id-entidade com características irredutíveis que designamos com a etiqueta “eu”, no corpo e em cada uma das suas partes, ou na sucessão dos momentos de consciência, não a encontramos nem ao seu lugar, o que se converte na certeza acerca da sua “vacuidade” (tong-pa-nyid). Verificando-se, pela experiência analítica que corrige a irreflectida crença conceptual subjacente à experiência comum, não haver senão “a aparência de algo existente onde nada existe”, designar algo como um “eu” revela-se equivalente a “descrever os chifres de um coelho”.

A mesma análise deve estender-se então à suposta natureza intrínseca dos fenómenos integrantes da esfera do não-eu, animados ou inanimados. Se procurarmos a “base da designação” dos “nomes” que lhes atribuímos, ou seja, “os objectos últimos aos quais todos os nomes se aplicam”, verificaremos ser impossível estabelecer a auto-sustentação de qualquer fenómeno que seja, em si e por si. Deste modo, a sua nomeação “em nada mais redunda do que na aplicação de etiquetas ao que não existe”, pelo impulso entusiástico “responsável pelo pensamento conceptual”. A análise da natureza última das coisas vem pôr fim a esse impulso, convidando à abolição dos “conceitos da aparente permanência de entidades substanciais” e objectivamente existentes ao mostrar nelas a mesma “vacuidade” antes reconhecida ao “eu”. É suposto que esta constatação, caso se converta numa experiência constante, tenha como efeito a libertação de todos os condicionamentos mentais, suscitando nomeadamente o colapso da ilusão do benefício e da ofensa, da esperança e do medo.

Até aqui, a abordagem mantém-se na esfera do budismo primitivo e, particularmente, do Mahayana, que enfatiza a sabedoria consistente no reconhecimento da dupla vacuidade, do eu e dos fenómenos, como na paradigmática obra de Nagarjuna, as Estâncias da Via do Meio. Sabedoria indissociável da compaixão imparcial e universal pelo sofrimento de todos os seres vítimas das suas próprias ilusões mentais e das emoções e acções-reacções por elas suscitadas. Tal como são inseparáveis a verdade absoluta, trans-conceptual e trans-emocional, e a relativa, referente à experiência conceptual-emocional do mundo, assim o são a sabedoria, o amor bondoso e a compaixão.
A especificidade do Dzogchen manifesta-se todavia, para além da dialéctica desconstrutiva de todas as visões do mundo, exacerbada em Nagarjuna e na escola Madhyamika, no aprofundamento da natureza da experiência da realidade como uma “interdependência de causas e condições” reunidas, onde se destaca, no íntimo dos doze nidanas - ou elos da produção interdependente que estrutura toda a experiência condicionada de si e do mundo, desde a ignorância até ao nascimento e à velhice e morte - , um fundo primordial inato, livre de todo o condicionamento e, por isso mesmo, eminentemente fecundo. Há assim um ”factor causal” e um “factor condicionante”. O primeiro é shi ying, “o fundo do ser como espaço fundamental, subtilmente lúcido e dotado da capacidade para que tudo apareça”. O “espaço fundamental”, ying, designa a própria vacuidade, que aqui surge, não como mera ausência de pontos de vista sobre as coisas, a qual, como em Nagarjuna, dissolve o haver “coisas” na abstenção de qualquer modo de predicação – A, não A, A e não A, nem A nem não A - , mas antes como a matriz da fenomenalidade universal, indissociável da luminosidade da consciência primordial e da potência manifestativa, as quais constituem no Dzogchen a tríade de aspectos da intemporal natureza de Buda e o sentido mais profundo da Tripla Jóia, Buda, Dharma e Sangha. Quanto ao “factor condicionante”, “é uma consciência que imagina um «eu»”, ou seja, a mesma “consciência subjacente”, “subsequente” ou discursiva atrás referida, que interpreta erroneamente a impressão de existir um “si mesmo”, cristalizando-a na ficção de um “eu” substancial. Da união dos dois factores, “causal” e “condicionante”, “todos os fenómenos aparentes se manifestam, como ilusões”.

A experiência da realidade fenoménica, externa e interna, procede assim da “conexão interdependente” do fundo primordial de tudo com a modalidade de consciência reificante que o vela, mas que não deixa de emergir a partir de si e, mais concretamente, da sua “energia dinâmica” (tsel), a potência ou virtualidade manifestativa atrás referida. Como diz o texto: “Deste modo, o fundo do ser como espaço fundamental (shi-ying), a mente comum (sem) que surge da energia dinâmica (tsel) desse fundo e os fenómenos externos e internos que constituem o aspecto manifesto dessa mente comum estão todos interligados (lu-gu-gyüd), como o sol e os seus raios”. A visão da “Grande Perfeição” assume a presença, em termos mais positivos do que na dialéctica negativa e desconstrutiva das outras abordagens budistas, de um incondicionado cuja funcionalidade consciente e manifestativa permanece inerente a isso mesmo que dela surge como sua distorsão e encobrimento, refractando-a nas aparências já conceptuais e dualistas do absoluto e do relativo ou do nirvana e do samsara, ultimamente ilusórias. Por mais obscurecedora e densa que possa parecer a experiência reificada do eu e do mundo, isto significa que a sua natureza íntima, a cada instante susceptível de ser reconhecida e fruída, é livre de todos os condicionamentos adventícios, que em verdade não possuem fundamento real, pois não procedem senão de uma incompreensão da natureza do processo, a ignorância (ma-rigpa), revogável mediante a meditação analítica e contemplativa.

Toda a infinita variedade dos fenómenos assim se manifesta como algo que em si e por si não existe, pois jamais difere substancialmente da omnipenetrante e lúcida vastidão da vacuidade do “fundo” primordial, que apenas aparece dividida nas esferas do si mesmo e do outro devido à concepção de um “eu” que a força aos “estreitos confins” de uma consciência subjectiva e conceptual e padece a “confusão” de conferir realidade ao que a não tem, ele mesmo e o outro de si, tornada um “hábito arreigado”. Deste modo se constitui a percepção convencional da realidade, de si e do mundo, karmicamente distribuída pelas seis possibilidades de existência e pelos estados de vigília, sonho e bardo, que metaforicamente se descrevem “como a aparência de uma ilusão mágica (gyu-ma)”, uma “miragem (mig-gyu)”, um “sonho (mi-lam)”, um “reflexo (zug-nyan)” num espelho, “cidades” visionárias (dri-zai drong –khyer), “ecos (drag-cha)”, “reflexos de todos os planetas e estrelas no oceano (gya-tsoi za-kar)”, só aparentemente diversos mas na verdade indistintos da própria água, “bolhas formando-se na água (chu-bur-gyi bu-wa)”, uma “alucinação (mig-yor)” e uma “emanação” fantasmática (trul-pa). Meditar e contemplar deste modo todos os fenómenos conduz a vê-los como “ilusões” (gyu-ma), tornando-se o praticante num “yogi de ilusão”.

(continua)

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