segunda-feira, 12 de outubro de 2009

DA FICÇÃO de Vilém Flusser *

Considerem a famosa sentença de Newton: hypotheses non fingo (minhas hipóteses não são inventadas). E considerem, em contrapartida, a sentença de Wittgenstein: “as ciências nada descobrem: inventam”. A contradição entre as duas sentenças desvenda uma profunda modificação do nosso conceito da realidade e ficção, da descoberta e invenção, do dado e do posto. Com efeito, desvenda a perda de uma fé em realidade dada e descobrível. E mostra a nossa situação como ficção inventada e posta por nós. A sensação do fictício de tudo que nos cerca, e do fingir como clima da nossa vida, é o tema da atualidade, e também do presente artigo.

O leitor objetará que nada há de especialmente atual nesse tema. É, pelo contrário, um tema que acompanha todo transcurso do pensamento. Sempre terá havido pensadores que vivenciavam o mundo como ficção enganadora. Para dar apenas alguns exemplos: Platão (vemos apenas sombras); Cristianismo medieval (o mundo é uma armadilha montada pelo diabo); Renascimento (o mundo é um sonho); Barroco (o mundo é teatro); Romantismo (o mundo é minha representação); Impressionismo (o mundo é como se).

Não, caro leitor, não é esta a sensação que se articula na sentença wittgensteiniana. Todos os exemplos mencionados concebem o mundo como ficção, se comparado com alguma realidade. Para Platão as sombras que vemos contrastam com a realidade das idéias. Para o cristão medieval este vale de lágrimas contrasta com a realidade divina. Para o renascentista o sonho dos sentidos contrasta com a realidade despertada do pensamento. Para o barroco o teatro do mundo tem a realidade matemática por bastidores. Para o romantismo o mundo como minha representação brota da realidade da vontade. Para o impressionismo o como se do mundo contrasta com a realidade do Eu transcendente. Mas para Wittgenstein (e para Einstein, e para Kafka, e para Sartre, e para Mondrian, e para Beckett, e para Hitler, e para os Beatles, e para a juventude da rua Augusta, e para o leitor e para mim) não há termo de comparação para a ficção que nos cerca. A ficção é a única realidade. E este é o tema do presente artigo.

Que digo se digo: “ficção é realidade”? Uma contradição de termos. O significado de ficção é não-realidade, o significado de realidade é não-ficção, e a relação entre estes dois significados é o assunto da teoria do Ser – da ontologia. Se digo “ficção é realidade”, estabeleço uma sentença que nega o significado dos seus termos, portanto uma sentença sem sentido. E, simultaneamente, aniquilo o assunto da ontologia. Há, pois, nesta minha sentença, um clima nítido de aniquilação, que posso denominar, logicamente, como o clima do sem-sentido, filosoficamente como o clima do niilismo, existencialmente como o clima do absurdo, teologicamente como o clima do maniqueísmo, e clinicamente como o clima da loucura. É o clima da atualidade. Considerem como funciona.

Tomem como exemplo esta mesa. É uma tábua sólida sobre a qual repousam os meus livros. Mas isto é ficção, como sabemos. Essa ficção é chamada “realidade dos sentidos”. A mesa é, se considerada sob outro aspecto, um campo eletromagnético e gravitacional praticamente vazio sobre o qual flutuam outros campos chamados “livros”. Mas isto é ficção, como sabemos. Essa ficção é chamada “realidade da ciência exata”. Se considerada sob outros aspectos, a mesa é produto industrial, e símbolo fálico, e obra de arte, e outros tipos de ficção (que são realidades nos seus respectivos discursos). A situação pode ser caracterizada nos seguintes termos: do ponto de vista da física é a mesa aparentemente sólida, mas na realidade oca, e do ponto de vista dos sentidos é a mesa aparentemente oca, mas sólida na realidade vivencial e imediata. Perguntar qual destes pontos de vista é mais “verdadeiro” carece de significado. Se digo “ficção é realidade”, afirmo a relatividade e equivalência de todos os pontos de vista possíveis.

Pois bem, e se eliminarmos todos os pontos de vista possíveis? Se pusermos todos eles entre parênteses e procurarmos contemplar a essência mesma da mesa? Que resta? A fenomenologia responde a esta pergunta: “resta a pura intencionalidade”. Mas que significa isto? A rigor: “nada resta”. A mesa é a soma dos pontos de vista que sobre ela incidem. A realidade da mesa é a soma das ficções que a modelam. A realidade é o ponto de coincidência de ficções diferentes. E se eliminarmos essas ficções fenomenologicamente, como camadas de uma cebola, restaria aquilo que resta na cebola: nada.

Na ânsia de salvar uma realidade que não seja fictícia invertemos os termos. A mesa é ficção, ou soma de ficções, de acordo. Mas a realidade está naquele outro lado da mesa, a partir do qual as ficções se projetam. A mesa é ficção, mas nós, enquanto inventores da mesa, somos realidade. Como assim, perguntamos perplexos? Que somos nós sem a mesa – ou sem um equivalente da mesa, sem qualquer objeto? Não somos exatamente aquilo que se lança sobre mesas? A nossa transcendência subjetiva sem um objeto a ser transcendido é rigorosamente nada. Somos reais apenas em função da mesa, ou de um objeto equivalente. Sem objeto qualquer somos mera ficção, mera virtualidade.

Pois bem, e se a realidade não está nem no objeto, nem no sujeito, talvez então se encontre na relação entre ambos? Na bipolaridade? No predicado que une sujeito e objeto? Tanto sujeito como objeto são ficções, de acordo. Mas a realidade está na relação entre ambos. O conhecedor e o conhecido são ficções, de acordo. Mas o conhecimento é realidade. O vivo e o vivido são ficções, de acordo. Mas a vivência é realidade. Muito bem, mas se há tantas relações quanto pontos de vista? Se a mesa é conhecimento meu enquanto tábua sólida e enquanto campo vazio? Ambos os conhecimentos são realidade. São ontologicamente equivalentes. E esta admissão significa, no fundo, a admissão de que realidade é ficção, e ficção é realidade.

Tudo isto é loucura. Tudo isto é fingimento. A nossa época se finge de louca. No fundo sabe da realidade. Daquela realidade que nem vivência nem conhecimento podem proporcionar, porque ambos são enganadores. Daquela realidade que apenas a fé proporciona. Mas notem bem: quem se finge de louco, está louco. Hamlet se finge de louco – mas sua ficção é, por isto mesmo, realidade. De tanto fingir-se de louco, prova Hamlet que é louco. De tanto fingirmos acreditar na ficção da vivência e da razão, acabamos perdendo a fé na realidade.

A sensação do absurdo e o cogumelo atômico estão aí para prová-lo.



* Publicado n’O Diário de Ribeirão Preto, São Paulo, em 26 de agosto de 1966.

5 comentários:

  1. "Hypoteses non fingo"; eu preferia traduzir: "As minhas hipóteses não são uma ficção", respeitando a semântica do radical de "fingo".
    Outra proposta de tradução: "As minhas hipóteses não são fantasias", mais à grega.Valeu? JCN

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  2. Que bela oferenda nos deixou...
    Grato

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  3. «Tudo isto é loucura. Tudo isto é fingimento. A nossa época se finge de louca. No fundo sabe da realidade. Daquela realidade que nem vivência nem conhecimento podem proporcionar, porque ambos são enganadores. Daquela realidade que apenas a fé proporciona.»

    Que realidade? Como desvendar a saúde se "tudo isto é loucura"? Como alcançar o imo da verdade se "tudo isto é fingimento"? Através da poesia? Da arte? Da religião? Existe alguma via trilhada e partilhada pela filosofia? Mas se acreditar na vivência e na razão é um fingimento, como usar a ciência, a arte, a religião ou mesmo a filosofia para desvendar a saúde? Usar o próprio fingimento para destruir o fingimento? Usar a ilusão para aniquilar a própria ilusão? Tomar veneno como antídoto do próprio veneno ingerido?

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  4. Grande texto! Uma clara demonstração da vacuidade sem falar dela, sem fazer dela um conceito e um dogma, como quase sempre acontece. Flusser é um grande pensador, injustamente esquecido. Recomendo a "História do Diabo".

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