Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
O mal tem origem ou sempre existiu? Se tem origem, o quê ou quem é a mesma? O que é o mal? O que podemos considerar como mal ou mau? O mal pode ser aniquilado?
Podemos responder à primeira questão negando a possibilidade de mal algum ter origem em algum bem. Para isso, temos de tentar imaginar um caso em que de um bem se gere um mal - se tal se verificar impossível, ou somos lerdos de imaginação ou de facto o mal não pode ter origem num ou no bem.
Porém, de não ter origem no bem, não se segue qe tenha origem em si mesmo, que seja sem origem, dado que pode ter origem em algo que não é nem bom nem mau. Para isso, temos também de imaginar o caso em que um mal se gera a partir de algo - um estado de coisas - que não é nem bom nem mau.
Se conseguirmos imaginar este segundo caso, então a resposta sobre se o mal sempre existiu no passado fica em suspenso como mera possibilidade.
É-nos difícil imaginar que um mal provenha de um bem, a menos que consideremos que existem razões de nós escondidas por um ser inteligente, para evitar males maiores, como o terramoto de 1755 ou o 11 de Setembro terem ocorrido para evitar males maiores.
Se tal é improvável mas possível no caso do 11 de Setembro, parece mais improvável mas possível no caso do terramoto, já que no primeiro caso temos a certeza de ter sido originado por acção humana, isto é, motivado e com intenção, o que é mais duvidoso no segundo caso.
De qualquer das formas, o caso do terramoto é um mal, e a sua muito provável origem é a imperfeição da Terra, explicada pelos cientistas, sismólogos.
É um mal natural, dado que tem origem na Natureza, mas que ainda assim gera sofrimento extremo desnecessário e injusto, para com as vítimas e os familiares das mesmas.
Esse sofrimento só não seria desnecessário e injusto no caso das vítimas estarem a pagar por algum mal feito no passado, o que é uma hipótese indecifrável e que demonstraria que o mundo é um jogo perverso e que a justiça natural ou divina seria a da vingança.
Mas aí estaríamos a supor que estamos neste mundo em que tanto sofremos porque cometemos algum mal no passado, um mal por nós já esquecido - Deus fez com que nos esquecêssemos? - o que parece estranho e absurdo, pois que mal fizeram as crianças esfomeadas e coléricas?
Teríamos de supor a existência de vidas passadas em que tinham feito tanto mal que estariam agora condenadas nesta vida a sofrer o que sofrem, o que é uma tese estranha e perigosa, primeiro porque terá de pôr como real o meramente imaginado e segundo porque pode levar-nos ao abandono uns dos outros.
Ou negamos esses mundos passados ou possíveis mas diferentes do nosso, ou estamos condenados a não obter resposta e a deixar as nossas crenças em suspenso, já que as suas justificações ficam em suspenso, isto é, ficam apenas como possíveis.
Algum conhecimento é possível. Tenho consciência que estou neste momento a ler, a escrever e a pensar o que escrevo. Isso parece-me certo. E, se não é certo, é pelo menos possível.
Tenho consciência que existo, mas é possível que um deus esteja a sonhar tudo, inclusivamente a mim, e que eu de facto não exista, mas seja apenas um sonho na mente desse deus.
Nesse caso, aquilo que tomo como o primeiro facto para mim, que para mim existo, deixaria de sê-lo, já que o meu corpo não existia e o meu próprio eu seria uma ilusão criada por esse deus no seu sonho - é o que é pensado como Brahma sonhando no oceano de leite.
É uma hipótese.
"Penso, logo existo" - como sei que penso ou que duvido, já que a minha dúvida pode ser parte do sonho desse deus?, e eu mais não ser do que um objecto na imaginação desse deus, sendo tudo imaginário e portanto não real?
A menos que consideremos que nesse caso ambos os domínios coincidiriam, mas então teríamos de considerar, por honestidade e pondo em suspenso a hipótese céptica, que o que de facto imaginamos no mundo real é tão real como as pedras que percepcionamos.
Como saber, no fim de tudo, se tudo não passou de um sonho, bom ou mau, mas um sonho?
Psicologicamente, põe-se a questão mas, a realidade parece real demais para ser um sonho, a realidade, isto é, a experiência física, nomeadamente a experiência da fome, da doença e da dor.
Se é um sonho, então tem muitos laivos de pesadelo. E, em geral, se é um sonho, tem características que o distinguem dos outros sonhos, tal como muito provavelmente eu e o leitor tivemos sonhos diferentes esta noite (guardemo-los).
Para além do mais, se é um sonho, temos de enfrentá-lo, porque existimos nesse sonho, com as mais variadas consciências ao longo do tempo e com múltiplas imagens na nossa mente num mesmo tempo.
Porém, indagando-nos sobre a natureza da realidade, põe-se a questão de se é ou não uma realidade mental, como o sonho de um deus adormecido. Em abono da verdade.
Mesmo que a realidade seja esse sonho, diferenciamos nela aspectos distintos e típicos, como são aqueles a que chamamos físicos ou materiais e aqueles a que chamamos mentais.
Começam por se distinguir na medida em que os primeiros são observáveis e os segundos não são observáveis, mas apenas assinalados pelo que observamos, desde as palavras que ouvimos por parte dos nossos interlocutores às suas expressões faciais, que assinalam algumas das suas propriedades mentais: que estão tristes, alegres ou meditativos, por exemplo.
Os sonhos existem e por vezes não nos aparecem tão reais como a realidade, mas mais reais.
De facto, quantas vezes estamos acordados mas inconscientes do que estamos a ver ou a pensar? E quantas vezes estamos a dormir e cosncientes de que vemos ou pensamos algo nitidamente, que acordamos lembramos nitidamente?
Quantas vezes não sentimos, durante os sonhos, dores semelhantes às dores reais, podendo até acordar ainda sentindo essas mesmas dores, como quem convalesce de uma operação?
Se o que é dito é verdade, como não aceitar pelo menos a possibilidade de a realidade ser um sonho de um deus adormecido, tal como Berkeley aceitava que os objectos da percepção são objectos na mente de Deus?
Fá-lo, porque considera que serem percepcionáveis é uma propriedade essencial dos objectos da percepção e que, como tal, não existem se não são percepcionados. Para manter a continuidade das suas existências, teve de criar a ideia da mente divina no qual os objectos estão.
São, portanto, objectos ideais, e no entanto dotados de existência objectiva, na medida em que estão aí não para um sujeito - ao contrário do caso do sonho de Brahma - mas para todos os sujeitos.
No caso do sonho de Brahma não há sujeito, que é um sonho, e o próprio Brahma não é sujeito para si ou não se conhece como sujeito, visto estar absorto no sonho.
Há porém a hipótese, como nem tudo é claro (algo é?), de, em vez de Brahma não ser de todo em todo sujeito para si, ser para si todos os sujeitos sonhados, tal como num sonho em muitos sonhos que tivemos fomos sujeitos para nós.
Ainda (e para sempre?)na dúvida, podemos afirmar que se a realidade é um sonho de um deus adormecido, é muitas vezes um pesadelo, e volta a pôr-se a questão do mal, já que os pesadelos são maus, mormente aqueles que aparentemente são reais!
Se a realidade é um sonho de um deus adormecido, o mal tem origem no seu sonho.
Pondo apenas a hipótese, somos propriedades desse sonho e parte da mente desse deus, somos o próprio deus e, portanto, o mal origina-se em nós, já esse deus seria origem ou fonte de tudo, "fonte" porque tudo fluia da sua mente.
Ainda assim, põe-se a questão: independentemente de o mal se originar em nós na medida em somos esse deus (hipótese), por que se origina o mal?
A resposta fácil é que ou não se origina ou que faz parte da estrutura intrínseca da realidade, isto é, que é uma propriedade essencial da mesma, o que implicaria a sua eternidade e a impossibilidade de o aniquilarmos.
Esta resposta, porém, põe o problema de existir uma estrutura intrínseca da realidade que subjaz a esse deus, tornando-o apenas mais uma parte da realidade. Essa estrutura é, no mito do sonho de Brahma, a Serpente e o Oceano de Leite.
Uma interpretação possível: Brahma é um deus que sofre o bem e o mal, na medida em que estes existem no seu sonho, mas que não os criou, sendo estes a estrutura última da realidade, representados respectivamente pela Serpente e pelo Oceano de Leite.
Ao contrário do que acontece no mito do Génesis, em que Deus diz que o homem e a mulher se tornaram "como um de Nós, conhecedor do bem e do mal" (Gn 3, 22).
Brahma conhece o bem e o mal por experiência, na medida em que sofre no sonho, mas está alheio do bem e do mal como entidades metafísicas, enquanto Adão e Eva conhecem o bem e o mal intelectivamente, pois tornaram-se como o Deus bíblico - omniscientes (quanto a esse assunto).
Por isso, talvez o mito do Sonho de Brahma deitado na Serpente sob o Oceano de Leite represente não só a estrutura da realidade, mas também uma fase de conhecimento anterior ao conhecimento intelectivo, o conhecimento por contacto directo.
Como o mito tem de ser desvendado, é possível que queira também significar que a estrutura do conhecimento humano é a experiência e, assim desvendado, o mito passa a ser uma defesa do empirismo mas também da existência de entidades metafísicas, o bem e o mal, como fundamento da realidade.
Outra interpretação possível do mito do Sonho de Brahma deitado na Serpente no Oceano de Leite é que todas as entidades referidas constituem a estrutura da realidade. O Oceano é de Leite, porque o leite é o que fertiliza e permite o crescimento, e poderíamos supor por isso que tudo provém do Oceano, sendo este, então, uma representação do feminino. Assim, a Serpente poderá ser fálica e masculina, embora penda mais para o lado que é uma representação do que é tenebroso, assustador, do medo, da angústia, enfim, de todos os estados mentais quee possamos considerar negativos. Brahma é o sujeito que percebe. O Sonho é o Mundo. Como Brahma está inconsciente de Si, pode-se interpretar como sendo a ideia que o sujeito pode conhecer o mundo através do contacto directo, as entidades metafísicas através do pensamento, tendo para isso de passar por si e fazendo isto ou esquecendo-se de si, o que parece uma leitura pouco provável, ou querendo o mito dizer, nesta interpretação, que o sujeito pode conhecer tudo excepto a si mesmo, ou, ainda outra hipótese, que não há sujeito para conhecer.
Aplicando o mito à realidade, penso que é mais provável ou que não exista sujeito para conhecer ou que o sujeito não possa ser conhecido. Talvez esta segunda hipótese nos leve para a de que não há sujeito, querendo isto dizer que o que há a ser conhecido é o mundo e a estrutura do mundo, sendo que o sujeito do conhecimento é, no máximo, consciência que, como tal, desligada do objecto intencional (mundo ou estrutura do mundo), não é entidade alguma, dado que é vazia, a aceitarmos que nada mais é que intencionalidade.
Mas esta visão é a nosso entender errada, porque se é verdade que a consciência é intencionalidade, é intencionalidade para alguém.
Esse alguém é o que repousa entre o mundo e os medos, que poderão representar o inconsciente, que pode ser mais ou menos tenebroso consoante a visão e a atitude que se tem do e perante o mundo.
Para lá das trevas existe um Oceano de Leite, um Oceano de Ferrtilidade, sendo que a ideia de oceano nos transporta também para a ideia de paz, podendo então, nesta interpretação, a Serpente representar as vagas que nos poderão atormentar, mas que não atormentam aquele que dorme sobre elas, o que é também o caso de Cristo: "E eis que houve uma grande agitação no mar, de modo que a barca estava sendo coberta pelas ondas. Jesus, porém, dormia." (Mt 8, 24). Esta é a interpretação psicológica.
Esta interpretação pode representar que muitos dos males que nos atormentam são psicológicos e sustentados pela nossa psique ou por nós mesmos, sendo que podemos libertar-nos deles se tivermos outra atitude perante as vagas, como também é afirmado algures num ensinamento budista, que os pensamentos são como ondas num oceano e há que deixar passá-los. Neste caso, e provavelmente no caso budista, referem-se aos pensamentos negativos, pois quem não gosta de alegria e felicidade, do júbilo tantas vezes referido nos Upanixades?
Diz-nos Cristo: "Porque tendes medo, homens de pouca fé? E, levantando-se, ameaçou os ventos e o mar e tudo ficou calmo." (Mt 8, 26)
À luz do que foi dito acima, os homens de pouca fé podem do texto podem representar não os homens de uma barca particular, mas a humniddade em geral, e os ventos e as ondas podem representar a mente atormentada por medos, angústias, tristezas, sofrimento em geral.
Ameaçar os ventos significa que se impôs sobre esses estados mentais perturbadores, reconhecendo-Se como mais forte que eles e senhor deles, isto é, capaz de os dominar.
Nesta interpretação, a fé é a capacidade de dominarmos os nossos estados mentais perturbadores e de os aniquilarmos - tristeza devido a perdas, culpa devido a actos ou omissões, e assim por diante.
É uma interpretação psicológica da fé, ao contrário da interpretação mais comum - mas não banal - em que a fé é a ligação entre nós e um ser superior - exemplificada, por exemplo, na Guerra das Estrelas pela força -, que opera milagres através de nós, quando tudo o mais leva ao desespero.
Nesta interpretação, a fé é também uma esperança cega nas capacidades milagrosas, por exemplo curativas, desse Ser.
Se existe um Ser com essas três propriedades, como justificar a existência do mal, senão na premissa que é melhor existir do que não existir mal, o que pode parecer estranho, mas aceitável, porque podemos supor que sem algum mal não fruíamos o bem.
No entanto, existe mal em excesso no mundo, na medida em que aparentemente nem todo o sofrimento, ou grande parte dele, nos é devido, isto é, a grande parte das nossas existências não existem sob a égide da justiça.
Dir-se-ia que um Deus justo criaria um mundo justo, a menos que, e lá vem a hipótese, estejamos a pagar por males que cometemos em vidas passadas.
Mas vidas passadas são meras possibilidades e, como tal, deixam-nos na incerteza, dando azo ao cepticismo e ao agnosticismo, que Deus e os seus propósitos não podem ser conhecidos, nem no que refere à Sua existência.
Assim, a ser verdade o que é dito, Deus não pode ser afirmado nem negado, nada disto implicando que a Humanidade não tenha confiança na possibilidade de regeneração de si mesma e do fim das guerras e sofrimentos que uns aos outros causamos e que podemos evitar.
Penso que é dessa compaixão que Karen Armstrong fala no discurso em que recebe o prémio TED, nomeadamente ao referir a história dos dois homens que se vêem como divinos ao chorarem juntos a morte do filho de um deles, morto pelo outro.
Penso que choram a própria natureza humana e o arrependimento de terem, cada um deles, agido mal à sua maneira, criando guerras e lutando por poderes e territórios, motivados pela ganância e pelas paixões mais selvagens.
Assim, através dos sentimentos, estes dois homens descobrem o divino, não só o perdão e o arrependimento, expressos nas suas faces, mas a própria racionalidade, que lhes permite extrair uma máxima devido àquela experiência e, porventura, uma mudança de atitude, uma vez ganho o discernimento sobre o correcto e o incorrecto, certo e errado, bom e mau, bem e mal.
Se afirmarmos que Deus existe e que criou ou permite o mal para que tenhamos liberdade, podemos contrapor o seguinte: que liberdade têm as crianças esfomeadas e coléricas?
Afastadas as teses do mal necessário para a fruição do bem, porque existe mal em excesso e a do mal para que tenhamos liberdade de escolha, porque as crianças esfomeadas e coléricas não podem escolher, penso que nos restam duas: a do mal feito em vidas passadas ou a do mal feito no passado. Excluíndo ambas, penso que estamos entregues a nós mesmos.
Tanto uma como outra implicam que algures no ou num mundo mas, para simplificar, no mundo, no passado, abusámos da liberdade que nos tinha sido concedida por Deus.
Escolhemos mal, o que não implica que exista uma entidade metafísica que é o mal, desligada do mundo porquanto antes de escolhermos mal existia em potência. Poderemos dizer apenas que não existia e que passou a existir.
Mas terá existido algum momento da história em que o ser humano foi imune à dor, ao envelhecimento, à morte e aos terrores psicológicos, neste mundo imensamente belo e assustador, ao qual tanto temos que nos adaptar em vista da sobrevivência e ao qual de facto tanto nos conseguimos adaptar?
Por um lado o mundo é-nos hostil e por outro nascemos dotados das capacidades para lidar com essa hostilidade; tanto assim é que a espécie sobreviveu até hoje, durante cerca de 200 mil anos.
A questão é: será que essa hostilidade sempre existiu, gerando os maiores terrores físicos e psicológico, ou será que surgiu algures no tempo, devido a termos abusado da liberdade que nos fora concedida?
É que esses terrores, parece-nos evidente, são eles mesmos um grande mal e há inclusivamente quem defenda a ideia de uma memória genética - contaram-me - na qual estão presentes os nossos medos ancestrais de animais selvagens.
Se não fizemos mal nenhum no passado para estarmos sujeitos a esses medos, então Deus ou o mundo assumem o valor moral "mau", a menos que a existência seja um teste perverso à nossa capacidade de luta contra os nossos próprios medos e demais terrores psicológicos, uma espécie de campo de batalha moral em que nós - e agora deliro um pouco - deuses de nós mesmos, nos digladiamos com insana coragem em buscada imortalidade que só é concedida àqueles que vencem esses mesmos medos, inclusivamente o da morte, em nome de ideais.
Se a existência - mundana ou supra-mundana - é de facto esse campo de batalha moral (psicologicamente é-o certamente), o bem não vencerá exclusivamente pela racionalidade, já que é tantas vezes a racionalidade fria e cega que premedita os mais hediondos crimes, embora possamos aboná-la dizendo que a maioria dos crimes são passionais e que mesmo os premeditados podem ser - e provavelmente são-no - motivados por paixões. Pensemos no caso de Hitler e do Holocausto: o que raio iria na cabeça daquele homem? Pensemos no 11 de Setembro e façamos a mesma questão.
Se queremos eliminar o mal moral humano, ao nível do agente, temos de eliminaar as motivações, porque as motivações são o porquê da acção: bati-lhe por ódio, vinguei-me por rancor, e assim por diante. Temos, então, de eliminar esses sentimentos negativos ou perturbadores, o que não é o bastante (ou será?) para eliminar o mal no mundo, mas é um grande passo.
Nesse sentido, como Karen Armstrong nos ensina no já referido discurso, devemos cultivar a compaixão, que significa "sofrer com o outro", "sentir o sofrimento do outro", porque se o fizermos provavelmente abster-nos-emos não só de lhe fazer mal, causando-lhe sofrimento, como também provavelmente agiremos para o seu bem, porque isso nos alegrará, nos encherá de júbilo, para usar a linguagem dos Upanixades.
Para que tal compaixão seja uma realidade, talvez fosse bom que esvaziássemos a alma, o coração, para que nela houvesse espaço para brotar o sentimento de amor pelo outro, que penso ser, sob pena de estar errado, o corolário do ensinamento da shunyata budista. Pois se tiveres o coração cheio - cheio de ti e de sujidade - como terás espaço para o outro?
Talvez o ensino da compaixão seja a única forma de nos tornarmos melhores, mais fraternos, como Humanidade, sem que sejamos moralistas no mau sentido de querermos impor os nossos valores, regras, códigos, condutas morais aos outros, o que eventualmente resulta em desgraça já que se sentirão oprimidos por alguém que se julga superior, senhor e dono da razão e conhecedor de assuntos esotéricos apenas revelados a umas quantas luminárias.
Sobre a compaixão, no Eclesiástico 7, 34: "Não evites aqueles que choram, e sofre com os que sofrem."
Sobre a acção, o rumo a dar à vida e o destino do ser humano, no Eclesiastes 9, 10: "Tudo o que puderes fazer, fá-lo enquanto tens forças, porque no mundo dos mortos, para onde vais, não existe acção, nem pensamento, nem ciência, nem sabedoria."
Se nos últimos comentários falámos da eliminação das causas da acção moral maldosa como sendo a eliminação das motivações negativas (ira, ódio, angústia...), podendo essa solução implicar actos compassivos, que provavelmente geram retribuição compassiva, fundamento do amor desinteressado (e não é assim todo o amor? Ou não?), esse fluxo de compaixão entre um e outro, a última citação "Tudo o que puderes fazer, fá-lo enquanto tens forças (...)" (Ec 9, 10) transporta-nos para outra questão e outro problema - ou será que a resposta já foi dada?
A questão é a seguinte: o que queres fazer? A questão é habitualmente colocada da seguinte forma: como viver? Ou também: há razões para viver uma vida ética?
Quando se faz esta última questão, não se quer com isto dizer que a resposta satisfaça todos os espíritos, já que a minha escolha ética pode ser o hedonismo, a busca do prazer, enquanto a do leitor pode ser a busca da virtude, da sabedoria ou talvez a ajuda ao próximo.
Existirão valores que devemos hierarquizar e pôr em prática, como por exemplo o trabalho acima de todas as coisas, ou a amizade, a coragem ou mesmo o puro prazer?
Ou deveremos esvaziar a mente e olhar caso a caso, de acordo com as consequências possíveis de cada caso?
Ou, ainda, deveremos tomar algo como máxima universal, de modo que seja possível que queiramos, motivados por uma vontade boa, que a nossa máxima seja universal? E que quer isto dizer?
Uma interpretação possível é a que queiramos que nas mesmas circunstâncias outra pessoa aja do mesmo modo que agimos nessas circunstâncias, já que o agente, porquanto está em acto, está necessariamente sob circunstâncias particulares, que analisa (se tiver tempo) antes da acção.
E que pode o agente analisar, senão os quatro factores já referidos: o que o motiva? Qual a sua intenção? E para quê, isto é, que consequências pretende obter? Em que consiste a acção?
Analisados estes quatro factores, entra em jogo o quinto factor, a escolha, que é aquele que leva o agente, que até aqui é meramente possível, a agir ou a não agir.
Provavelmente, a passagem do pensamento ao acto, isto é, a escolha, passa pela análise dos outros quatro elementos, e pelo peso que cada um deles tomará na escolha (se fosse assim tão fácil!).
Um agente racional provavelmente pensará se as suas motivações justificam a acção, se a intenção é correcta, se as consequências são boas ou más e também em factores relativos à acção, como ser ou não exequível.
Este último factor não é moralmente relevante, porque se relaciona exclusivamente com a reunião das condições necessárias e suficientes para encetar a acção. Por exemplo, no caso do 11 de Setembro, questões financeiras ou económicas.
Mas isto não obsta a que a acção não tenha valor moral - e aqui já generalizámos e não estamos no exemplo-, porque afecta outros seres humanos, podendo causar-lhes sofrimento desnecessário e sem nenhum bem em contra-partida.
Afinal, uma acção não irresponsável, não motivada e não intencional, pode ter consequências morais graves, como o caso do homem que caminha na ponte repleta de pedras, com todo o cuidado, tropeça numa, a pedra cai, bate num carro e dá-se um grave acidente em cadeia com mortos e feridos, causando sofrimento extremo desnecessário.
Não significa ser um anjinho. Afinal, os membros da Al-Qaeda podem pensar que o Ocidente e os ocidentais são demoníacos e que, por consequência, os atentados que cometem são bons porque ajudam a eliminar o mal.
Afinal, alguém pode ter reflectido e sobre a sua existência e ter concluído que é preferível viver uma vida boémia, decadente e selvática em vez de uma vida sóbria, por exemplo por julgar que os prazeres boémios da vida só se vivem uma vez e que são o melhor que esta existência mundana tem para oferecer.
Outros podem ter escolhido o afastamento do mundo, outros a acção política, e outros podem nem ter pensado sobre o assunto. É acerca destes últimos que Peter Singer afirma que não levam uma vida ética.
A esta afirmação subjaz a ideia que uma vida é ética quando quem a vive pensou sobre como deve agir, isto é, comportar-se, que comportamentos deve ter.
E isto leva-nos a pensar que a acção é fundamental em ética, a acção que pode ser levianamente definida (se fosse assim tão fácil) como o que de facto acontece. Não o que está dentro das nossas mentes, mas o que de facto fazemos. E importa, depois, pensar sobre essas acções, quanto a serem boas ou más.
A isto obstamos o caso dos monges Cartuxianos, ou outros que eventualmente existam, cuja acção boa é orar pelos outros. As próprias palavras do Papa há um dia (?): "Cremos que a oração contribui de facto para o bem no mundo".
Mal não fará e provavelmente faz bem, mesmo que indirectamente, porque torna as pessoas mais calmas e pode eliminar as já referidas emoções perturbadoras, que podem motivar acções más.
O caso dos monges põe em causa o que é a acção: poderemos considerar a oração como acção?
Na verdade, parece evidente que o mundo ou tudo o que nele existe, está em acto, e que em nós, tanto corpo como mente estão em acto, porque estão se não sempre - sono profundo sem sonhos -, quase sempre a ocorrer, em nós, eventos mentais e físicos.
Mas os mentais não são observáveis, senão apenas indirectamente, como é o caso das motivações e intenções, por observarmos os corpos, por exemplo detectarmos raiva ou medo na expressão facial de alguém, ou ouvirmos dizer.
São os únicos modos de se conhecer os conteúdos mentais de alguém, o que é aparentemente complicado no caso dos monges Cartuxianos, porque pouco falam, embora tenham momentos de comunhão, como quando proclamam juntos a missa.
Ou seja, é difícil conhecer as suas motivações e intenções e, dado que pouco revelam através da acção, que aparentemente tem poucas consequências para o mundo, são um caso difícil de analisar, relativamente a se fazem bem ou o bem, ou se são um caso de omissão. Mal, aparentemente, não fazem.
"O que existe, já existia; o que existirá, também já existiu" Eclesiastes 3, 15
ResponderEliminar"O que existe, já recebeu um nome há muito tempo" Ec 6, 10
O mal tem origem ou sempre existiu?
ResponderEliminarSe tem origem, o quê ou quem é a mesma?
O que é o mal?
O que podemos considerar como mal ou mau?
O mal pode ser aniquilado?
E por que raio somos tão atraídos por ele?
ResponderEliminarPodemos responder à primeira questão negando a possibilidade de mal algum ter origem em algum bem. Para isso, temos de tentar imaginar um caso em que de um bem se gere um mal - se tal se verificar impossível, ou somos lerdos de imaginação ou de facto o mal não pode ter origem num ou no bem.
ResponderEliminarPorém, de não ter origem no bem, não se segue qe tenha origem em si mesmo, que seja sem origem, dado que pode ter origem em algo que não é nem bom nem mau. Para isso, temos também de imaginar o caso em que um mal se gera a partir de algo - um estado de coisas - que não é nem bom nem mau.
Se conseguirmos imaginar este segundo caso, então a resposta sobre se o mal sempre existiu no passado fica em suspenso como mera possibilidade.
É-nos difícil imaginar que um mal provenha de um bem, a menos que consideremos que existem razões de nós escondidas por um ser inteligente, para evitar males maiores, como o terramoto de 1755 ou o 11 de Setembro terem ocorrido para evitar males maiores.
Se tal é improvável mas possível no caso do 11 de Setembro, parece mais improvável mas possível no caso do terramoto, já que no primeiro caso temos a certeza de ter sido originado por acção humana, isto é, motivado e com intenção, o que é mais duvidoso no segundo caso.
De qualquer das formas, o caso do terramoto é um mal, e a sua muito provável origem é a imperfeição da Terra, explicada pelos cientistas, sismólogos.
É um mal natural, dado que tem origem na Natureza, mas que ainda assim gera sofrimento extremo desnecessário e injusto, para com as vítimas e os familiares das mesmas.
Esse sofrimento só não seria desnecessário e injusto no caso das vítimas estarem a pagar por algum mal feito no passado, o que é uma hipótese indecifrável e que demonstraria que o mundo é um jogo perverso e que a justiça natural ou divina seria a da vingança.
Mas aí estaríamos a supor que estamos neste mundo em que tanto sofremos porque cometemos algum mal no passado, um mal por nós já esquecido - Deus fez com que nos esquecêssemos? - o que parece estranho e absurdo, pois que mal fizeram as crianças esfomeadas e coléricas?
Teríamos de supor a existência de vidas passadas em que tinham feito tanto mal que estariam agora condenadas nesta vida a sofrer o que sofrem, o que é uma tese estranha e perigosa, primeiro porque terá de pôr como real o meramente imaginado e segundo porque pode levar-nos ao abandono uns dos outros.
Ou negamos esses mundos passados ou possíveis mas diferentes do nosso, ou estamos condenados a não obter resposta e a deixar as nossas crenças em suspenso, já que as suas justificações ficam em suspenso, isto é, ficam apenas como possíveis.
ResponderEliminarAlgum conhecimento é possível. Tenho consciência que estou neste momento a ler, a escrever e a pensar o que escrevo. Isso parece-me certo. E, se não é certo, é pelo menos possível.
Tenho consciência que existo, mas é possível que um deus esteja a sonhar tudo, inclusivamente a mim, e que eu de facto não exista, mas seja apenas um sonho na mente desse deus.
Nesse caso, aquilo que tomo como o primeiro facto para mim, que para mim existo, deixaria de sê-lo, já que o meu corpo não existia e o meu próprio eu seria uma ilusão criada por esse deus no seu sonho - é o que é pensado como Brahma sonhando no oceano de leite.
É uma hipótese.
"Penso, logo existo" - como sei que penso ou que duvido, já que a minha dúvida pode ser parte do sonho desse deus?, e eu mais não ser do que um objecto na imaginação desse deus, sendo tudo imaginário e portanto não real?
A menos que consideremos que nesse caso ambos os domínios coincidiriam, mas então teríamos de considerar, por honestidade e pondo em suspenso a hipótese céptica, que o que de facto imaginamos no mundo real é tão real como as pedras que percepcionamos.
Como saber, no fim de tudo, se tudo não passou de um sonho, bom ou mau, mas um sonho?
ResponderEliminarPsicologicamente, põe-se a questão mas, a realidade parece real demais para ser um sonho, a realidade, isto é, a experiência física, nomeadamente a experiência da fome, da doença e da dor.
Se é um sonho, então tem muitos laivos de pesadelo. E, em geral, se é um sonho, tem características que o distinguem dos outros sonhos, tal como muito provavelmente eu e o leitor tivemos sonhos diferentes esta noite (guardemo-los).
Para além do mais, se é um sonho, temos de enfrentá-lo, porque existimos nesse sonho, com as mais variadas consciências ao longo do tempo e com múltiplas imagens na nossa mente num mesmo tempo.
Porém, indagando-nos sobre a natureza da realidade, põe-se a questão de se é ou não uma realidade mental, como o sonho de um deus adormecido. Em abono da verdade.
Mesmo que a realidade seja esse sonho, diferenciamos nela aspectos distintos e típicos, como são aqueles a que chamamos físicos ou materiais e aqueles a que chamamos mentais.
Começam por se distinguir na medida em que os primeiros são observáveis e os segundos não são observáveis, mas apenas assinalados pelo que observamos, desde as palavras que ouvimos por parte dos nossos interlocutores às suas expressões faciais, que assinalam algumas das suas propriedades mentais: que estão tristes, alegres ou meditativos, por exemplo.
Os sonhos existem e por vezes não nos aparecem tão reais como a realidade, mas mais reais.
ResponderEliminarDe facto, quantas vezes estamos acordados mas inconscientes do que estamos a ver ou a pensar? E quantas vezes estamos a dormir e cosncientes de que vemos ou pensamos algo nitidamente, que acordamos lembramos nitidamente?
Quantas vezes não sentimos, durante os sonhos, dores semelhantes às dores reais, podendo até acordar ainda sentindo essas mesmas dores, como quem convalesce de uma operação?
Se o que é dito é verdade, como não aceitar pelo menos a possibilidade de a realidade ser um sonho de um deus adormecido, tal como Berkeley aceitava que os objectos da percepção são objectos na mente de Deus?
Fá-lo, porque considera que serem percepcionáveis é uma propriedade essencial dos objectos da percepção e que, como tal, não existem se não são percepcionados. Para manter a continuidade das suas existências, teve de criar a ideia da mente divina no qual os objectos estão.
São, portanto, objectos ideais, e no entanto dotados de existência objectiva, na medida em que estão aí não para um sujeito - ao contrário do caso do sonho de Brahma - mas para todos os sujeitos.
No caso do sonho de Brahma não há sujeito, que é um sonho, e o próprio Brahma não é sujeito para si ou não se conhece como sujeito, visto estar absorto no sonho.
Há porém a hipótese, como nem tudo é claro (algo é?), de, em vez de Brahma não ser de todo em todo sujeito para si, ser para si todos os sujeitos sonhados, tal como num sonho em muitos sonhos que tivemos fomos sujeitos para nós.
Ainda (e para sempre?)na dúvida, podemos afirmar que se a realidade é um sonho de um deus adormecido, é muitas vezes um pesadelo, e volta a pôr-se a questão do mal, já que os pesadelos são maus, mormente aqueles que aparentemente são reais!
ResponderEliminarSe a realidade é um sonho de um deus adormecido, o mal tem origem no seu sonho.
Pondo apenas a hipótese, somos propriedades desse sonho e parte da mente desse deus, somos o próprio deus e, portanto, o mal origina-se em nós, já esse deus seria origem ou fonte de tudo, "fonte" porque tudo fluia da sua mente.
Ainda assim, põe-se a questão: independentemente de o mal se originar em nós na medida em somos esse deus (hipótese), por que se origina o mal?
A resposta fácil é que ou não se origina ou que faz parte da estrutura intrínseca da realidade, isto é, que é uma propriedade essencial da mesma, o que implicaria a sua eternidade e a impossibilidade de o aniquilarmos.
Esta resposta, porém, põe o problema de existir uma estrutura intrínseca da realidade que subjaz a esse deus, tornando-o apenas mais uma parte da realidade. Essa estrutura é, no mito do sonho de Brahma, a Serpente e o Oceano de Leite.
Uma interpretação possível: Brahma é um deus que sofre o bem e o mal, na medida em que estes existem no seu sonho, mas que não os criou, sendo estes a estrutura última da realidade, representados respectivamente pela Serpente e pelo Oceano de Leite.
ResponderEliminarAo contrário do que acontece no mito do Génesis, em que Deus diz que o homem e a mulher se tornaram "como um de Nós, conhecedor do bem e do mal" (Gn 3, 22).
Brahma conhece o bem e o mal por experiência, na medida em que sofre no sonho, mas está alheio do bem e do mal como entidades metafísicas, enquanto Adão e Eva conhecem o bem e o mal intelectivamente, pois tornaram-se como o Deus bíblico - omniscientes (quanto a esse assunto).
Por isso, talvez o mito do Sonho de Brahma deitado na Serpente sob o Oceano de Leite represente não só a estrutura da realidade, mas também uma fase de conhecimento anterior ao conhecimento intelectivo, o conhecimento por contacto directo.
Como o mito tem de ser desvendado, é possível que queira também significar que a estrutura do conhecimento humano é a experiência e, assim desvendado, o mito passa a ser uma defesa do empirismo mas também da existência de entidades metafísicas, o bem e o mal, como fundamento da realidade.
Outra interpretação possível do mito do Sonho de Brahma deitado na Serpente no Oceano de Leite é que todas as entidades referidas constituem a estrutura da realidade. O Oceano é de Leite, porque o leite é o que fertiliza e permite o crescimento, e poderíamos supor por isso que tudo provém do Oceano, sendo este, então, uma representação do feminino. Assim, a Serpente poderá ser fálica e masculina, embora penda mais para o lado que é uma representação do que é tenebroso, assustador, do medo, da angústia, enfim, de todos os estados mentais quee possamos considerar negativos. Brahma é o sujeito que percebe. O Sonho é o Mundo. Como Brahma está inconsciente de Si, pode-se interpretar como sendo a ideia que o sujeito pode conhecer o mundo através do contacto directo, as entidades metafísicas através do pensamento, tendo para isso de passar por si e fazendo isto ou esquecendo-se de si, o que parece uma leitura pouco provável, ou querendo o mito dizer, nesta interpretação, que o sujeito pode conhecer tudo excepto a si mesmo, ou, ainda outra hipótese, que não há sujeito para conhecer.
ResponderEliminarAplicando o mito à realidade, penso que é mais provável ou que não exista sujeito para conhecer ou que o sujeito não possa ser conhecido. Talvez esta segunda hipótese nos leve para a de que não há sujeito, querendo isto dizer que o que há a ser conhecido é o mundo e a estrutura do mundo, sendo que o sujeito do conhecimento é, no máximo, consciência que, como tal, desligada do objecto intencional (mundo ou estrutura do mundo), não é entidade alguma, dado que é vazia, a aceitarmos que nada mais é que intencionalidade.
Mas esta visão é a nosso entender errada, porque se é verdade que a consciência é intencionalidade, é intencionalidade para alguém.
Esse alguém é o que repousa entre o mundo e os medos, que poderão representar o inconsciente, que pode ser mais ou menos tenebroso consoante a visão e a atitude que se tem do e perante o mundo.
ResponderEliminarPara lá das trevas existe um Oceano de Leite, um Oceano de Ferrtilidade, sendo que a ideia de oceano nos transporta também para a ideia de paz, podendo então, nesta interpretação, a Serpente representar as vagas que nos poderão atormentar, mas que não atormentam aquele que dorme sobre elas, o que é também o caso de Cristo: "E eis que houve uma grande agitação no mar, de modo que a barca estava sendo coberta pelas ondas. Jesus, porém, dormia." (Mt 8, 24). Esta é a interpretação psicológica.
Esta interpretação pode representar que muitos dos males que nos atormentam são psicológicos e sustentados pela nossa psique ou por nós mesmos, sendo que podemos libertar-nos deles se tivermos outra atitude perante as vagas, como também é afirmado algures num ensinamento budista, que os pensamentos são como ondas num oceano e há que deixar passá-los. Neste caso, e provavelmente no caso budista, referem-se aos pensamentos negativos, pois quem não gosta de alegria e felicidade, do júbilo tantas vezes referido nos Upanixades?
ResponderEliminarDiz-nos Cristo: "Porque tendes medo, homens de pouca fé? E, levantando-se, ameaçou os ventos e o mar e tudo ficou calmo." (Mt 8, 26)
À luz do que foi dito acima, os homens de pouca fé podem do texto podem representar não os homens de uma barca particular, mas a humniddade em geral, e os ventos e as ondas podem representar a mente atormentada por medos, angústias, tristezas, sofrimento em geral.
Ameaçar os ventos significa que se impôs sobre esses estados mentais perturbadores, reconhecendo-Se como mais forte que eles e senhor deles, isto é, capaz de os dominar.
Nesta interpretação, a fé é a capacidade de dominarmos os nossos estados mentais perturbadores e de os aniquilarmos - tristeza devido a perdas, culpa devido a actos ou omissões, e assim por diante.
É uma interpretação psicológica da fé, ao contrário da interpretação mais comum - mas não banal - em que a fé é a ligação entre nós e um ser superior - exemplificada, por exemplo, na Guerra das Estrelas pela força -, que opera milagres através de nós, quando tudo o mais leva ao desespero.
Nesta interpretação, a fé é também uma esperança cega nas capacidades milagrosas, por exemplo curativas, desse Ser.
Esse Ser é o Deus a quem se atribuem os seguintes atributos: omnipotente, omnisciente, sumamente bom. Existirá?
ResponderEliminarSe existe um Ser com essas três propriedades, como justificar a existência do mal, senão na premissa que é melhor existir do que não existir mal, o que pode parecer estranho, mas aceitável, porque podemos supor que sem algum mal não fruíamos o bem.
ResponderEliminarNo entanto, existe mal em excesso no mundo, na medida em que aparentemente nem todo o sofrimento, ou grande parte dele, nos é devido, isto é, a grande parte das nossas existências não existem sob a égide da justiça.
Dir-se-ia que um Deus justo criaria um mundo justo, a menos que, e lá vem a hipótese, estejamos a pagar por males que cometemos em vidas passadas.
Mas vidas passadas são meras possibilidades e, como tal, deixam-nos na incerteza, dando azo ao cepticismo e ao agnosticismo, que Deus e os seus propósitos não podem ser conhecidos, nem no que refere à Sua existência.
Assim, a ser verdade o que é dito, Deus não pode ser afirmado nem negado, nada disto implicando que a Humanidade não tenha confiança na possibilidade de regeneração de si mesma e do fim das guerras e sofrimentos que uns aos outros causamos e que podemos evitar.
Penso que é dessa compaixão que Karen Armstrong fala no discurso em que recebe o prémio TED, nomeadamente ao referir a história dos dois homens que se vêem como divinos ao chorarem juntos a morte do filho de um deles, morto pelo outro.
Penso que choram a própria natureza humana e o arrependimento de terem, cada um deles, agido mal à sua maneira, criando guerras e lutando por poderes e territórios, motivados pela ganância e pelas paixões mais selvagens.
Assim, através dos sentimentos, estes dois homens descobrem o divino, não só o perdão e o arrependimento, expressos nas suas faces, mas a própria racionalidade, que lhes permite extrair uma máxima devido àquela experiência e, porventura, uma mudança de atitude, uma vez ganho o discernimento sobre o correcto e o incorrecto, certo e errado, bom e mau, bem e mal.
Se afirmarmos que Deus existe e que criou ou permite o mal para que tenhamos liberdade, podemos contrapor o seguinte: que liberdade têm as crianças esfomeadas e coléricas?
ResponderEliminarAfastadas as teses do mal necessário para a fruição do bem, porque existe mal em excesso e a do mal para que tenhamos liberdade de escolha, porque as crianças esfomeadas e coléricas não podem escolher, penso que nos restam duas: a do mal feito em vidas passadas ou a do mal feito no passado. Excluíndo ambas, penso que estamos entregues a nós mesmos.
ResponderEliminarTanto uma como outra implicam que algures no ou num mundo mas, para simplificar, no mundo, no passado, abusámos da liberdade que nos tinha sido concedida por Deus.
ResponderEliminarEscolhemos mal, o que não implica que exista uma entidade metafísica que é o mal, desligada do mundo porquanto antes de escolhermos mal existia em potência. Poderemos dizer apenas que não existia e que passou a existir.
Mas terá existido algum momento da história em que o ser humano foi imune à dor, ao envelhecimento, à morte e aos terrores psicológicos, neste mundo imensamente belo e assustador, ao qual tanto temos que nos adaptar em vista da sobrevivência e ao qual de facto tanto nos conseguimos adaptar?
Por um lado o mundo é-nos hostil e por outro nascemos dotados das capacidades para lidar com essa hostilidade; tanto assim é que a espécie sobreviveu até hoje, durante cerca de 200 mil anos.
A questão é: será que essa hostilidade sempre existiu, gerando os maiores terrores físicos e psicológico, ou será que surgiu algures no tempo, devido a termos abusado da liberdade que nos fora concedida?
É que esses terrores, parece-nos evidente, são eles mesmos um grande mal e há inclusivamente quem defenda a ideia de uma memória genética - contaram-me - na qual estão presentes os nossos medos ancestrais de animais selvagens.
Se não fizemos mal nenhum no passado para estarmos sujeitos a esses medos, então Deus ou o mundo assumem o valor moral "mau", a menos que a existência seja um teste perverso à nossa capacidade de luta contra os nossos próprios medos e demais terrores psicológicos, uma espécie de campo de batalha moral em que nós - e agora deliro um pouco - deuses de nós mesmos, nos digladiamos com insana coragem em buscada imortalidade que só é concedida àqueles que vencem esses mesmos medos, inclusivamente o da morte, em nome de ideais.
Se a existência - mundana ou supra-mundana - é de facto esse campo de batalha moral (psicologicamente é-o certamente), o bem não vencerá exclusivamente pela racionalidade, já que é tantas vezes a racionalidade fria e cega que premedita os mais hediondos crimes, embora possamos aboná-la dizendo que a maioria dos crimes são passionais e que mesmo os premeditados podem ser - e provavelmente são-no - motivados por paixões. Pensemos no caso de Hitler e do Holocausto: o que raio iria na cabeça daquele homem? Pensemos no 11 de Setembro e façamos a mesma questão.
ResponderEliminarSe queremos eliminar o mal moral humano, ao nível do agente, temos de eliminaar as motivações, porque as motivações são o porquê da acção: bati-lhe por ódio, vinguei-me por rancor, e assim por diante. Temos, então, de eliminar esses sentimentos negativos ou perturbadores, o que não é o bastante (ou será?) para eliminar o mal no mundo, mas é um grande passo.
ResponderEliminarNesse sentido, como Karen Armstrong nos ensina no já referido discurso, devemos cultivar a compaixão, que significa "sofrer com o outro", "sentir o sofrimento do outro", porque se o fizermos provavelmente abster-nos-emos não só de lhe fazer mal, causando-lhe sofrimento, como também provavelmente agiremos para o seu bem, porque isso nos alegrará, nos encherá de júbilo, para usar a linguagem dos Upanixades.
Para que tal compaixão seja uma realidade, talvez fosse bom que esvaziássemos a alma, o coração, para que nela houvesse espaço para brotar o sentimento de amor pelo outro, que penso ser, sob pena de estar errado, o corolário do ensinamento da shunyata budista. Pois se tiveres o coração cheio - cheio de ti e de sujidade - como terás espaço para o outro?
ResponderEliminarTalvez o ensino da compaixão seja a única forma de nos tornarmos melhores, mais fraternos, como Humanidade, sem que sejamos moralistas no mau sentido de querermos impor os nossos valores, regras, códigos, condutas morais aos outros, o que eventualmente resulta em desgraça já que se sentirão oprimidos por alguém que se julga superior, senhor e dono da razão e conhecedor de assuntos esotéricos apenas revelados a umas quantas luminárias.
ResponderEliminarSobre a compaixão, no Eclesiástico 7, 34: "Não evites aqueles que choram, e sofre com os que sofrem."
ResponderEliminarSobre a acção, o rumo a dar à vida e o destino do ser humano, no Eclesiastes 9, 10: "Tudo o que puderes fazer, fá-lo enquanto tens forças, porque no mundo dos mortos, para onde vais, não existe acção, nem pensamento, nem ciência, nem sabedoria."
Se nos últimos comentários falámos da eliminação das causas da acção moral maldosa como sendo a eliminação das motivações negativas (ira, ódio, angústia...), podendo essa solução implicar actos compassivos, que provavelmente geram retribuição compassiva, fundamento do amor desinteressado (e não é assim todo o amor? Ou não?), esse fluxo de compaixão entre um e outro, a última citação "Tudo o que puderes fazer, fá-lo enquanto tens forças (...)" (Ec 9, 10) transporta-nos para outra questão e outro problema - ou será que a resposta já foi dada?
ResponderEliminarA questão é a seguinte: o que queres fazer? A questão é habitualmente colocada da seguinte forma: como viver? Ou também: há razões para viver uma vida ética?
Quando se faz esta última questão, não se quer com isto dizer que a resposta satisfaça todos os espíritos, já que a minha escolha ética pode ser o hedonismo, a busca do prazer, enquanto a do leitor pode ser a busca da virtude, da sabedoria ou talvez a ajuda ao próximo.
Existirão valores que devemos hierarquizar e pôr em prática, como por exemplo o trabalho acima de todas as coisas, ou a amizade, a coragem ou mesmo o puro prazer?
Ou deveremos esvaziar a mente e olhar caso a caso, de acordo com as consequências possíveis de cada caso?
Ou, ainda, deveremos tomar algo como máxima universal, de modo que seja possível que queiramos, motivados por uma vontade boa, que a nossa máxima seja universal? E que quer isto dizer?
Uma interpretação possível é a que queiramos que nas mesmas circunstâncias outra pessoa aja do mesmo modo que agimos nessas circunstâncias, já que o agente, porquanto está em acto, está necessariamente sob circunstâncias particulares, que analisa (se tiver tempo) antes da acção.
E que pode o agente analisar, senão os quatro factores já referidos: o que o motiva? Qual a sua intenção? E para quê, isto é, que consequências pretende obter? Em que consiste a acção?
Analisados estes quatro factores, entra em jogo o quinto factor, a escolha, que é aquele que leva o agente, que até aqui é meramente possível, a agir ou a não agir.
Provavelmente, a passagem do pensamento ao acto, isto é, a escolha, passa pela análise dos outros quatro elementos, e pelo peso que cada um deles tomará na escolha (se fosse assim tão fácil!).
Um agente racional provavelmente pensará se as suas motivações justificam a acção, se a intenção é correcta, se as consequências são boas ou más e também em factores relativos à acção, como ser ou não exequível.
Este último factor não é moralmente relevante, porque se relaciona exclusivamente com a reunião das condições necessárias e suficientes para encetar a acção. Por exemplo, no caso do 11 de Setembro, questões financeiras ou económicas.
Mas isto não obsta a que a acção não tenha valor moral - e aqui já generalizámos e não estamos no exemplo-, porque afecta outros seres humanos, podendo causar-lhes sofrimento desnecessário e sem nenhum bem em contra-partida.
Afinal, uma acção não irresponsável, não motivada e não intencional, pode ter consequências morais graves, como o caso do homem que caminha na ponte repleta de pedras, com todo o cuidado, tropeça numa, a pedra cai, bate num carro e dá-se um grave acidente em cadeia com mortos e feridos, causando sofrimento extremo desnecessário.
E o que significa viver uma vida ética?
ResponderEliminarNão significa ser um anjinho. Afinal, os membros da Al-Qaeda podem pensar que o Ocidente e os ocidentais são demoníacos e que, por consequência, os atentados que cometem são bons porque ajudam a eliminar o mal.
Afinal, alguém pode ter reflectido e sobre a sua existência e ter concluído que é preferível viver uma vida boémia, decadente e selvática em vez de uma vida sóbria, por exemplo por julgar que os prazeres boémios da vida só se vivem uma vez e que são o melhor que esta existência mundana tem para oferecer.
Outros podem ter escolhido o afastamento do mundo, outros a acção política, e outros podem nem ter pensado sobre o assunto. É acerca destes últimos que Peter Singer afirma que não levam uma vida ética.
A esta afirmação subjaz a ideia que uma vida é ética quando quem a vive pensou sobre como deve agir, isto é, comportar-se, que comportamentos deve ter.
E isto leva-nos a pensar que a acção é fundamental em ética, a acção que pode ser levianamente definida (se fosse assim tão fácil) como o que de facto acontece. Não o que está dentro das nossas mentes, mas o que de facto fazemos. E importa, depois, pensar sobre essas acções, quanto a serem boas ou más.
A isto obstamos o caso dos monges Cartuxianos, ou outros que eventualmente existam, cuja acção boa é orar pelos outros. As próprias palavras do Papa há um dia (?): "Cremos que a oração contribui de facto para o bem no mundo".
Mal não fará e provavelmente faz bem, mesmo que indirectamente, porque torna as pessoas mais calmas e pode eliminar as já referidas emoções perturbadoras, que podem motivar acções más.
O caso dos monges põe em causa o que é a acção: poderemos considerar a oração como acção?
ResponderEliminarNa verdade, parece evidente que o mundo ou tudo o que nele existe, está em acto, e que em nós, tanto corpo como mente estão em acto, porque estão se não sempre - sono profundo sem sonhos -, quase sempre a ocorrer, em nós, eventos mentais e físicos.
Mas os mentais não são observáveis, senão apenas indirectamente, como é o caso das motivações e intenções, por observarmos os corpos, por exemplo detectarmos raiva ou medo na expressão facial de alguém, ou ouvirmos dizer.
São os únicos modos de se conhecer os conteúdos mentais de alguém, o que é aparentemente complicado no caso dos monges Cartuxianos, porque pouco falam, embora tenham momentos de comunhão, como quando proclamam juntos a missa.
Ou seja, é difícil conhecer as suas motivações e intenções e, dado que pouco revelam através da acção, que aparentemente tem poucas consequências para o mundo, são um caso difícil de analisar, relativamente a se fazem bem ou o bem, ou se são um caso de omissão. Mal, aparentemente, não fazem.
Têm aqui o sítio deles:
www.chartreux.org/pt/menu.html
E a música de hoje é esta:
http://www.youtube.com/watch?v=enG5Dc156Ow
Nuno, te quero parabenizar, es o estupido mais estupido deste estupido blog
ResponderEliminarE tu és uma lágrima no meu coração.
ResponderEliminarLindo, Nuno! A melhor resposta de sempre. Gosto muito de ti.
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