"A confusão do Infinito Esplendor com a tragicomédia que tudo é. A tragicomédia que tu, acima de tudo, és! A tragicomédia de te imaginares alguém com pensamentos, palavras e acções, alguém que pensa, fala e age, alguém por detrás do que pensa, diz e faz. A tragicomédia de não veres que isso é apenas mais um pensamento errante, bolha insubstancial e oca que sempre se desfaz em coisa alguma. E que pensamentos, palavras e acções não são senão as vagas, ligeiras ou alterosas, as brisas ou rajadas que de lugar algum vêm, para lugar algum vão, em lugar algum persistem. Fluxo contínuo e impermanente, que jamais chega a ser, sem origem, sentido e destino senão os que tu, ou melhor, a ilusão de ti, lhes inventa. A tragicomédia de não veres que pensamentos, palavras e acções, bem como todos os fenómenos, sem interior nem exterior, não são senão o Infinito Esplendor, livre de o ser. A tragicomédia de não veres que tudo é, desde sempre e para sempre, ou seja, a cada instante, insubstancial, luminoso e livre, vazio de realidade, conceitos e palavras, vazio de vazio, vazio de o ser. A tragicomédia de conferires realidade a bolas de sabão, a que chamas eu, outros e coisas. E alimentares a expectativa de que aquela com que te identificas cresça e permaneça, se possível com todo o universo lá dentro! E sofreres terrivelmente quando explode em espaço e coisa nenhuma! E não veres que não é senão isso que a cada instante acontece! Não veres que tudo são bolas de sabão! O Infinito Esplendor! O jogo da criança que não está lá a soprá-las! Não veres que tudo é fogo-de-artifício, efémero deslumbramento de som, luz, cor e forma na festa de aldeia de todo o universo! Sem fogueteiro, no céu ou na terra.
- “Um fantasma, nas trevas, a botar foguetes, eis um desenho caricatural do Criador […]. Esse fantasma é o nosso próprio pensamento […] – Está aqui, na página 303 da primeira edição do Santo Agostinho. As coisas que escreve este Pascoaes! – comenta Fílon, reclinado numa poltrona, frente à lareira da casa do Penedo, numa noite fria de Abril, enquanto Sofia, deitada sobre o tapete, junto a ele, cruza no ar os pés e, apoiada nos cotovelos, olha para o fogo, com um sorriso vago. Lá fora chove e o vento ruge. Apenas os ilumina a luz do fogo e das velas. Fílon continua:
- Criamos o mundo e a nós mesmos sem dar por isso… Fogo de artifício que temos por real, incluindo este “fantasma” que “nas trevas” apenas fugazmente se ilumina para nelas permanecer… isto a que chamamos pensamento… que nunca escapa às “trevas” do que o transcende e engloba e raramente às da sua inconsciência… da sua ignorância... “Trevas” tem aqui dois sentidos…
-Estás a tornar-te filósofo… Estou a fazer-te mal… - diz Sofia, sempre a sorrir, vagamente, para o fogo…
Fílon, sem lhe responder, continua:
- Criamos o mundo e a nós mesmos… E porquê senão por medo?... Por medo de não haver nada… Nada a que nos possamos agarrar, para nos sentirmos existir, para podermos sentir e dizer “eu” e “tu”, “meu” e “teu”, “nós” e “outros”, “isto” e “aquilo”… Medo... Medo do que há, sem haver, antes de tudo isso… Medo da liberdade e da paz primordial… Isso de cuja perda vem a nossa civilização e a nossa saudade, como viu o Agostinho… Medo que já provém da separação e que é a raiz de toda a religião, segundo o Professor… Dele também fala Pascoaes:
“E que é o medo? É o Deus anterior aos Deuses… a última Força misteriosa…
Para fugir à sua sombra, Jeová criou a luz”
Isto é extraordinário: é por isso que quase ninguém dele fala!... Porque nos põe o dedo na ferida… na ferida do medo que nos impele na fuga para a frente a que chamamos existir… na ferida de nos desresponsabilizarmos disso com recurso à invenção de uma causa exterior… O Deus criador, os pais ou a vida… Tudo desculpas para o facto de continuarmos a ter medo do escuro e de a cada instante dele nos refugiarmos acendendo a falsa “luz” do intelecto que tudo separa e divide… desta mente que pensa “eu”, “coisas”, “mundo”, “Deus”… que em vez de se habituar a ver no escuro, a ver sem ver, supõe reais os fogos-fátuos da sua fantasia conceptual e a partir daí, por medo da luz que há na noite, por não conseguir nela repousar em sossego, não deixa de se agitar na paranóica insónia de estar sempre a acender as artificiais luzes do pensamento discursivo…
A espantosa convergência disto com Eckhart e o Buda!... Quem compreenderá que na intemporal irrupção disto a que chamamos “eu” está a intemporal irrupção do “mundo” e disso a que se chama “Deus”, visto como o seu fundamento!?... E quem compreenderá que isso não é necessário… que depende de cada um de “nós” que assim seja ou não!?... Como diz Eckhart: “No meu nascimento [eterno], todas as coisas nasceram e eu fui causa de mim mesmo e de todas as coisas, e se eu o houvesse querido eu não seria, e todas as coisas não seriam, e se eu não fosse nem “Deus” seria. Que Deus seja “Deus”, disso sou uma causa; se eu não fosse, Deus não seria “Deus””…
- “Dies zu wissen ist nicht not”… “Saber isto não é necessário”… Porque omites o final desse parágrafo ? – interroga Sofia, sempre com o mesmo olhar e sorriso vagos, mergulhados no fogo.
- …Pode isso querer dizer, julgo, que esta visão profunda não é necessária à vida espiritual mais elementar dos seus comuns auditores, podendo mesmo perturbá-los… Ou então…
- … que menos importa especular sobre a nossa saída do estado primordial do que a ele regressar ou… - continua Sofia.
- …contemplar que nunca dele verdadeiramente saímos… que não há exílio nem regresso! E que a própria saudade é ilusória!... – conclui Fílon.
- Eckhart faz sua a visão de um “grande mestre” que diz que a “ruptura”, o “trespasse”, “Durchbrechen”, a libertação de si, de Deus e de tudo no estado primordial, é “mais nobre” do que o “emanar”, o “fluir”, o difundir-se na existência…Mas talvez mais nobre ainda… - começa Sofia, acariciando a perna de Fílon, sempre com o olhar, agora mais vivo, no fogo.
- … seja ver para além desses conceitos… de existir e não existir… de ir e vir… Aqui apetece corrigir a todavia espantosa passagem de Pascoaes: “Também há-de chegar o dia em que eu próprio nunca existi. E há-de chegar também o dia em que o mundo nunca existiu: o mundo, o Sol e as estrelas…”
- Sim… meu amor… porque esse dia não há-de chegar… Ele é o instante eterno que a cada momento a tudo trespassa… Vamos praticar… Vem para o fogo!... – e, dizendo isto, enquanto um trovão ribomba e um relâmpago rasga a noite, puxa o amante para o chão, enrolando-se-lhe como uma serpente, nessa fugaz clareira de luz. No tremular das labaredas, no silêncio apenas bordado pelos estalidos da madeira, rebolam-se os dois, bocas sorvidas, línguas de fogo entrançadas e inseparáveis, para além do pensamento. Sem medo. Trespassando a si, ao mundo e a Deus. E tudo finda de jamais haver começado"
- Paulo Borges, Línguas de Fogo. Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva, Lisboa, Ésquilo, 2006, pp.199-202.
Literaloucura
ResponderEliminarPlatão dizia haver um "combate de titãs" acerca da realidade. Aqui há um titânico combate contra a realidade.
ResponderEliminarAmigo Paulo,
ResponderEliminarGostei imenso deste seu texto. Lá em cima lhe deixo um, "fresquinho", de ontem.
Um abraço
Caro Professor,
ResponderEliminarNão tenho palavras para exprimir o quão grato estou pela via que tem partilhado connosco. Se calhar, sem palavras é melhor... em silêncio.
Sempre grato.
Falam, falam, falam … De palavras é feito o mundo que nos sufoca… Quem tem coragem de realmente pôr essas palavras em práctica?
ResponderEliminarQuem pode avaliar isso? O que é pôr estas palavras em prática? E quem te impede de as praticar, se o sabes e desejas?
ResponderEliminarÀs vezes perdemos grandes oportunidades para pensar ...
ResponderEliminarÀs vezes falamos das palavras, das nossas e das dos outros, como se elas só fossem palavras sobre palavras ...
Às vezes porque não esperamos o tempo do pensamento, não comentamos o texto, os textos (o do Miguel e o do Paulo) ...
Às vezes comentamos? Quem ousa pensar estes textos?
"Vamos praticar… Vem para o fogo!..."
ResponderEliminarÉ o que gostaria que fizessemos.
Quem disse que não as pratico? Pratico sim, ó falo. E sei muito bem qual é o preço altissimo que se paga pela coerência entre a palavra e a acção. O desprezo, a traição, o ser-se acusada de se ser tudo e mais alguma coisa. O ouvir palavras horrendas e não fundamentadas daqueles que julgávamos companheiros de Estrada. O tornarmo-nos tela em que se projectam os medos, os ódios e os nojos dos bem-pensantes (especialmente daqueles que o são e se julgam o contrário).
ResponderEliminarPracticar o Caminho da Mão Esquerda é condenar-se a muita dor. Pois aquele que as praticam estão tão contaminados de egoism e desejo de “parecer bem” quanto aqueles que eles acusam de não o praticar.
Dois aspectos:
ResponderEliminar1. Estou em crer que só a prática nos possibilita o conhecimento (da realidade. Tenho de praticar.
2. O Caminho da mão esquerda?
As práticas ditas de mão esquerda, são deturpações medievais da Arte Filosófica que são as técnicas Shákta do Yoga, que investigam os antiquíssimos, fortissimos e subtis segredos da Vida e onde o adepto, Feminino e Masculino, mergulham numa fascinamte, real, mágica, artística exploração das Forças Cósmicas, com infinita Concentração e Amor.Para além do universo dual.
Muito obrigada pela lembrança, Aurora. Realmente, a chamada civilização ocidental está fundamentada em múltiplas doenças.
ResponderEliminarA forma como nos tentamos livrar dela deturpando as filosofias do Oriente para adequá-las ao nosso narcisismo e pulsão auto-destruidora é sintoma de uma doença terminal.
Os terroristas são pouco radicais. Devia-se era pôr uma bomba na própria realidade.
ResponderEliminarComo destruir o que não existe?
ResponderEliminarSim, como, se os primeiros a advogar essa destruição/libertação são os primeiros a gritar “Provocação!” quando alguém põe em causa a sua ilusória autoridade?
ResponderEliminarPrecisamos todos é de uma grandessíssima de uma bomba de neutrões nos nossos egos, isso sim!
ResponderEliminarterrorista é a realidade.
ResponderEliminartimeu é o uníco platão, porque tudo é dramaturgia.
boa, baal
ResponderEliminarboa bola