quarta-feira, 8 de abril de 2009

Canto no Jardim de Saudades

Vieste dizer para dentro dos meus olhos que morri, e eu acreditei. Acreditei porque tudo o que tu dizias eu quis que fosse como uma Casa eterna e não o movente rio dos olhos, não o movente rio dos tempos e do esquecimento. Disseste-me que morri, mas não te ouvi dizer mais nada. E isso tinha tanta importância como a minha morte: ambos não tinham importância nenhuma. Uma morte defunta, a quem interessaria chorar? O teu silêncio nem sequer tornou mais escura a manhã. Vieste soprar para dentro do meu sorriso uma flor do vento que já tinha passado. Fiquei encostada ao canteiro das rosas, as que não havia por toda a eternidade. Não interessava. Nada do que fizesses ou fizesse me interessava. Tinha morrido para esse cenário. Já sabia que mo dirias um dia qualquer. Não exultei, nem me pus triste. Fiquei a ver-te, apreciando, de longe, os teus gestos sem sentir estranheza ou familiaridade. Desci a escada da indiferença a perguntar como poderia isso ser? Que filme seria aquele onde não reconhecia mais o meu rosto?! Olhava os teus gestos, na espiral da distância que se movia para outro lugar como uma inevitabilidade radical. Mas acreditei no que me disseste, porque sabia que há muito tinha caído no chão a rosa que um dia nasceu dos meus dedos, ao tocar-te o rosto. Teria começado a morrer nesse momento? Não era esse o tempo, nem hoje o é. Nunca é o tempo.


És talvez Saudade, a angústia de nos sabermos existentes no tempo e desde o início dos tempos. Contemporâneos do princípio mundo, à procura do nome para designar essa falta, essa perdida ou esquecida manhã em que alguém, talvez deus, nos anuncia a nossa própria morte. Vieste dizer para dentro dos meus olhos que morri e eu acreditei. Acreditei porque tudo o que tu dizes é como uma casa com fundamentos bem firmes. Acreditei no que me disseste, porque sabia que há muito tinha caído no chão a nenhuma rosa que um dia não nasceu. Teria começado a morrer nesse momento? Não era esse o tempo, nem hoje o é. Nunca é o tempo para a voz sem nome, para a duração e para a grande falta. A divina Saudade. Essa que os poetas chamam de indizível e chorada Saudade de Deus. Esse olhar voltado ao primeiro e volumoso rio da memória. Carregado de ausências, pejado de folhas, de matéria orgância das florestas avistadas do oceano; desse caldo de tudo, decomposição de tudo o que deus olhou sem ver: o que perdido era no tempo em que nascia e morto nos perdia de nós mesmos e nos arrastava na corrente. Quando as águas secavam, depositava-se nos fundos essa imagem caída na corrente. Éramos despojos. Esses que a mesma Saudade erguia em espiral de fumo saída do seu mesmo arder alquímico, em pedra e chumbo irradiados. Esses despojos luminosos que correm pelo rio e que o poeta recria e enche de luz, à maneira de um deus, na imitação do jardim e da primeira rosa, a que nunca abriu: a rosa sem nome de deus, a rosa da imortalidade. A memória da serpente e da rosa.


Essa memória é um grito lancinante que ainda hoje se ouve na floresta. Essa queda brutal do que foi criado por cima do nosso corpo não nascido, o grito que nos espreita com olhos por dentro das pedras. Nessa corrente caudalosa de gritos e despojos de nós. Lá desse fundo e largo mar de onde, em memória de peixe, nos fizemos as mais fantásticas viagens, embalados pela melodia de uma voz que vem de todas as direcções do tempo, ao espelho das mais transparentes águas que aqui nos têm.
Nesse tempo, Lai ainda não tinha asas. As escamas cobriam-lhe a pele e havia sempre mar em redor do seu corpo e, por mais que nadasse, não se acabava o mar. E no lago onde se debruçava, nesse lago ou espelho onde Lai se via, nessa lua ou delicada flor, de raizes firmes, apesar da fragilidade aparente das suas pétalas; lá, a princesa via o reflexo da sua própria face. A sua face na face do lago. Está esquecida, alheada. Lai perdeu a memória e parou de chover. E o castelo aceso a cada memória do inominado acende-se no pensamento, mas não sabe onde procurar; cada chama é sempre uma flor nova a cada ciclo da eterna mudança natural, mas não sabe o que encontrar ainda nessa catedral de si, estrangeira a si mesma, essa oração de amor.


Lai veio ao jardim e dele respirou a fragrância e a bebedeira de luz das paisagens e dos cantos. Numa catedral natural sem tectos e livre, uma catedral sem forma e sem altar; uma catedral por dentro da rocha; uma cabana no meio da floresta; uma duna no deserto onde se entoa o hino que é a Casa e a memória do canto. Canto que é um reavivar da febre do deserto para lá do entoar do canto silente que será ouvido por todos e será uma voz sem sentido para Lai. Nem uma toalha fresca havería para acalmar a febre! Dizes: Em cada poro da minha pele, em cada sopro da respiração, estás Tu que entras na minha dança e olhas o lago do jardim e dele bebes, tranquilo como uma corça sem medo, das águas puras e frescas do meu Amor. E Tu, bem amado, florirás no jardim em flor fechada e pura, a flor que nunca desabrochou e em memória nos convida a colhê-la. Tu que és o vinho dos meus lábios; a cor das minhas rosas mais vivas. Não preciso de ver dentro do lago o reflexo do lotus do meu Amor. Olho nos teus olhos e digo que a luz que entra neles me cega da tua face, alma reflectida no meu rosto. Uma chama sempre ardente por dentro da tristeza, e um canto que se derrama na noite em que te Ausentas. Essa distracção do teu amado rosto banha de luz o jardim. Para onde foram as rosas que não duram e o tempo que prendemos ao som de uma árvore alta e de um sussurro comovido e triste? Ponho as mãos no rosto e escondo-me da tua fala e do teu silêncio.


O seu amado não visita mais o jardim e deus ocutou o rosto nessa Ausência. A chama, como um sol tardio, pousou em sombra sobre os canteiros. É por isso que a tristeza de Lai esquece que tem asas e olha, abismada, a sua mesma dor. E cada dia em que a ilha tarda mais se lhe chega a forma arredondada de uma clareira, onde as rosas ainda não nasceram e a luz nada lhe diz de si ou do Jardim. Lai caminhou esquecida de si e do mundo. As florestas ainda não eram aquelas e os pássaros também não lhe falavam numa linguagem conhecida. O tocador de flauta. Ah! Havia um tocador de Flauta que no peito de Lai feria, uma flor de Fogo ou de sangue. Lai adormeceu à beira do lago e ainda hoje lá está.

13 comentários:

  1. Magnífico canto!

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  2. fiz cópia de teu trabalho para ler no campo junto da ribeira.
    não sei se deva pedir cânticos de pássaros se música de chuva sobre as ervas

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  3. Saudades,

    estão no teu canto todos e tudo :)
    O Mar, o Deserto, o Lago, as Rosas, o Amor, a Floresta e o Jardim. Estão também todos os outros que cantaste, até o tocador de flauta :)

    Foi tão bom ouvir-te cantar!

    De escamas recolho às águas transparentes, sem rebuliços maiores, hoje, ao contrário de outras correntes que há dias que me tornam dificil o marear*

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  4. bicho da seda,

    Também eu sou bicho da seda. Às vezes, bicho-de-conta, outras colar de contas, rosário onde aprendi a rezar.

    Anónimo,

    Dispõe. Que te acompanhe o meu sorriso. Se os pássaros vierem às ribeiras, acolhe-os com carinho. Se a chuva cair sobre as ervas verdes, pensa que leste o conto de Lai que não termina aqui...

    Um abraço.

    Sereia,

    Sábes que quando estava a escrever o texto lembrei-me de ti, ou o que de mim era "eu" disse: A Sereia!... como será que me acolherá no seu mar, na sua escama?
    E aqui estás, a falar-me dos elementos e do teu mergulho, sem espalhafato, como quem silenciosamente escorrega e mergulha no fundo, empurrada pelas águas.

    Um abraço grande e escorregadio. Somos peixes grandes, hoje. Eu sou!

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  5. Canto, porque tenho a mesma dança no pensar. E a dança é o nosso abraço dentro das palavras quee a cada instante podem deixar de sê-lo. Noite descansada.

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  6. Sim, Isabel, a cada instante as palavras podem deixar de sê-lo, mas o silêncio também tem voz, para quem o sabe escutar e ouvir. Porque o silêncio canta mais fundo, sabemos, no centro da alegria o oiço rejubilar. No renascer de nós em asas. A princesa Lai, mergulhada no líquido da chuva, das águas do inverno,do frio do lago, faz a sua secagem e, quem sabe, estejamos a preparar a árvore e o fruto.
    Seja divino e humano o seu sabor. Renascemos e estamos a tempo, como diz o Paulo, de nunca haver nascido.

    Um abraço, nisso.

    P.S. Contactá-la-ei provavelmente amanhã, minha amiga.

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  7. ...não, baal, não és só tu que faltas. Ninguém falta. Estão cá todos os que cá estão... pois, então!

    É tão engraçado como em três palavras se mostra um sentido de humor tão interessante. Sou fã de baal. Isto se ele se portar bem!...

    Um sorriso.

    P.S. Adivinhe qual foi a palavra para verificação... fez-me rir: "natosse".
    Bom, vou dizer que não, "já na tosse".
    Não teve muita graça, esta! nunca tem.

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  8. saudades, pior seria se fosse lactose, porque deves ter percebido para 'o meu lado´' é mais cevada (sagres). esta também não teve piada.
    abraço

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  9. Grato, Saudades, por esta Saudade. Boa Ressurreição pascal.

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  10. A flauta em que ele toca somos nós.

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  11. É evidente,"irmão" Francisco, que a flauta em que ele toca somos nós.


    Uma Santa Páscoa e também uma santa Saudade, também para ti, que és o rei do teu reino imenso...

    Um beijo

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