sábado, 3 de janeiro de 2009

Trapo

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.


poema de Álvaro de Campos

12 comentários:

  1. "Boca bonita da filha do caseiro, / Polpa de fruta de um coração por comer..." - É tão bom, porque tão raro, encontrar erotismo em Pessoa... Mais houvera e porventura seus dias não houvessem dado em tão chuvosos...

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  2. Trespassou-me, de futurar, este verso:

    "Até amaria o lar, desde que o não tivesse."

    Ter um lar, ter uma casa e ter uma habitação são coisas, na verdade, bem diversas.

    O lar é como a pátria: está onde estejamos, como ausente, ou está saudosa ou desejosa em nós, sem nunca em nós se achar.
    Por isso, ao lar sempre pagamos o tributo da saudade.
    E nunca será ele demasiado.

    A casa é onde moramos, e onde o ser mora, a fazer fé em Heidegger, que não sabemos se tinha fé.
    Por isso, a ela sempre regressamos, duma ou doutra maneira.
    E sempre a reencontramos de porta entreaberta, para nós.

    A habitação, entretanto, é esse sempre exíguo espaço entre as quatro paredes de betão que em nós nos aprisiona: a alma
    da pátria e o ser da morada, na ausência de tudo o que neles em nós não cabe.
    Desta, apenas pagamos renda.
    E já muito dói.


    Alguém tem por aí um pouco de "sono, sem explicação"?
    E alguém me indica onde fica o "azul da manhã"...?
    É que " o dia deu em chuvoso" e, se bem que não seja elegante "ser susceptível às mudanças de luz" -"quem disse (...) que eu sou elegante?" - "hoje só quero sossego".

    Farewell, Mr. Campos!

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  3. Que seria de Pessoa sem este sentimento de eterna perda do essencial!? Apenas um tipo que escrevia bem. O mesmo se poderá talvez dizer das nossas vidas: sem dilaceramento que seríamos senão animais saudáveis?

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  4. E sem a perda e o dilaceramento dos grandes autores, quem iríamos nós vampirizar?

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  5. Gárgula, meu caro,
    isso em si deve ser defeito de fabrico ou ... será antes draculice frustrada, não?

    Bom, também pode ser apenas "pedra-de esquinice crónica"...

    É melhor ir ver isso...

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  6. Demais, vampiros são primos-irmãos dos anjos - dizem.
    Não sei acredito.
    (Nem em mim, nem em si...)

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  7. Bela escolha, como sempre... :)

    um sorriso

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  8. Qual e o problema de sermos animais saudaveis?

    Quem e que vampiriza? Os grandes autores, sendentos de vida devido as suas perdas e dilaceramentos, ou os leitores, sedentos de viverem atraves de paginas alheias aquilo que nao tem coragem de empreender na sua realidade?

    Ja agora, o que aconteceu aos posts feitos entre dia 2 e 14?

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  9. lidia, se for antes antes lembras-
    te-á de mim...

    R. Reis

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  10. ana uma bala, as fp25, gora...

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