terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O anjo do Ocidente


“No topázio mais triste da minha clarividência, apareceu-me o anjo do Ocidente. Tropeçava de sombra em sombra e a espada com que guardava os jardins com buxos de livros da Europa despedaçara-se em números que espavoridos fugiam uns dos outros. Um horizonte de canções blindadas cantava a parábola das cidades brancas cobertas por noites laboriosas de formigas. As estátuas cambaleavam no alto de temerosos pensamentos. As catedrais eram levadas por um vento de elevadores endemoninhados. Mulheres a arder em revistas ilustradas faziam strip-tease para latas de conserva boquiabertas. E a Europa fugia para trás. Fugia parada na louca pulsação do seu movimento estático. E a Europa era a triste viuvinha no meio de uma roda de crianças que matavam índios num filme americano.
Desatei então a correr para o sítio onde se chora. O sítio onde se chora é na penumbra pensativa. No quarto de estalactites da alma onde se fazem poemas. Mas notei que no meu pranto faltava uma lágrima e essa lágrima era Portugal. Percebi finalmente que Portugal era eu a chorar trevos de cinza pela Europa.”

Natália Correia, “O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro”, in “Poesia Completa”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, 2ª edição, pág.361.

10 comentários:

  1. Caro Lapdrey, muito, muito obrigado pela partilha deste poema! Deste magnífico poema.

    Tão-somente, um abraço, amigo!
    ´
    E brindo, à "luz" do Ocidente!

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  2. O Anjo do Ocidente é a morte
    de mãos postas a cobrir
    o rosto ausente

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  3. Magnífico texto, Lapdrey, magníico, não conhecia: "Percebi finalmente que Portugal era eu a chorar trevos de cinza pela Europa.”; "As catedrais eram levadas por um vento de elevadores endemoinhados"; "desatei então a correr para o sítio onde se chora..." senti um arrepio. Suspiro e aspiro estas palavras, como se fossem vapor e água e ar puro. Que triste o anjo do Ocidente! Como me doem as "canções blindadas" da nossa cegueira. Ainda nos falta decerto, uma idade... para cumprir. Mas continuo a ver, ultimamente, Portugal a chorar "trevos de cinza" por si, ou já nem isso...
    Tristeza!

    Grata pela, como sempre, pertinente oferta deste texto ao nosso pensamento.

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  4. adorei este excerto:

    "O sítio onde se chora é na penumbra pensativa.

    No quarto de estalactites da alma onde se fazem poemas.

    Mas notei que no meu pranto faltava uma lágrima..."

    grata pela partilha :)

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  5. será por isso a redescoberta do oriente pelo ocidente?

    cada vez mais o saber milenar se difunde e é aplicado, com mais regularidade, na prática quotidiana...interpreto como sendo, de certo modo, um regressar à(s) origem(ns)...

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  6. "trevos de cinza", claro, teve que cá postar quem adora Cinza!rs

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  7. Algum de voces leu o livro de Natalia Correia "Descobri que sou Europeia", que ela escreveu depois de ter passado um ano nos EUA?

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  8. “Há uma fronteira intransponível entre o povo descobridor e o povo
    conquistador. O primeiro é levado à descoberta pela inquietação e pela virtude sublime
    de criar. O último é impelido pelo orgulho e pelo espírito de dominação que
    afunda as suas raízes nas regiões sombrias do sadismo. Temos exemplos flagrantes
    desta atávica aberração nos nossos dias"

    Natália Correia

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  9. Quando era pequena ouvia a Natália na televisão e temia aquela voz. Uma saber incontido, uma força telúrica brotava daquela voz e daquela forma de colocar a palavra à altura do que pensava. Como se a Terra fosse um lugar para plantar pensamentos que fruticariam nos leitores, nos ouvintes. A minha mãe dizia-me: "não a temas, ela traz uma voz que ressoa para dentro de ti."

    O anjo deste texto, Lapdrey, faz-me lembrar o de Benjamin, o "anjo da História", de asas caídas, impotente, olhando para os destroços da História. O anjo do Ocidente só pode, com efeito, olhar para os livros esquecidos, preteridos; a espada do anjo não está como a de Tristão lascada, está partida e as estátuas balançam porque a Ideia as abandonou e o homem contempador foi afastado dos jardins; as catedrais desmoranam-se porque tudo é vil e subterrâneo, nada é do Alto e os pássaros não têm asas, como ontem lembrava a Fragmentus. A Europa sempre em busca de si mesma e da sua identidade está parada, exposta à mais perigosa aliança,é uma viuvinha mas só para quem leu o mito e, quem na Europa aprende ainda os seus mitos fundadores...?
    Neste topázio que é o pensamento da Natália e onde o anjo se manifesta, deixo a minha dor e a minha culpa como professora. A Natália, como os autores,
    é como o Príncipe de O. Wilde, estátua numa praça por onde ninguém conduz o pensamento a passar. Eu própria me atraso na travessia desse largo amplo que são as praças e cidades fundadas pelo pensare pelos autores. Nessa memória dos livros juntaria este excerto a um outro que o encontra pelo que este excerto, que nos deu a pensar, diz no final sobre as lágrimas e Portugal: Eduardo Lourença, "Nós a Europa ou as duas Razões."
    E lágrimas para quê em tempo de indigência? Dá também vontade de parafrasear o Grande Holderlin...sobre os poetas...

    Muito lho agradeço este excerto. A culpa e a tristeza são em mim produtivas de respostas.

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  10. Belíssimo texto, cheio de múltiplos significados e belíssimo o comentário da Isabel; sem dúvida que a voz da Natália Correia ressoou para dentro de si. A alma lusitana é um barco. Estamos aqui, de olhos no mar, sempre à espera de zarpar. Um barco pode ser muita coisa.

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