quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

De Bosh

O mar é um bicho,
Batem as ondas
Sovam-me inteiro
Neste ringue aquático de desrazão
Fico científico, bêbado, prolixo
O mar é um bicho
E eu que sou, sem ti?

Sai bruxa desgarrada
Bruxa desmedida
Vai-te vadiar
És lua encarnada, Vénus ressequida
Feia de morrer
E de matar
Chaga ensandecida
Voa da memória
Voga na memória
Quero ser julgado no teu tribunal dos mortos
No teu amplo curral de porcos
Quero-te esventrar
Quero-te acender
Vela encimesmada
Chaga caridosa
Dóis-me, ó dolorosa,
Quero-te fenecer
Fazes-me
Fezes
Fazes-me preces por mim
Desilude-me de mim
Desincumbe-me de ti
Atira-me do teu lábio-despenhadeiro
Do teu seio
Dá-me rotas para horrorosas paragens
Para nefandos alhures
Alivia-me algures
No centro, ao meio
Faz-me devir
Devagar
Faz-me divagar matrona impudica
Afaga-me, costela espúria
Desfralda-me ebúrnea constelação
E muda-me
A mim
Odeio-te genuinamente, cara amiga
Acho-te linda, acho-te lixo
Neste inenarrável inferno indiviso
Vou deixar-te
Ermar-me
Para nunca

Ai, sou cativo
Sou lastro, lustro, um anti-luxo
Um anti-Lucho, um frustre esguicho
E embruxado, e sigo a broxar
E quanto ao mar, é bicho
(Bicho, vagalhão, montada tormentosa em líquido fatalmente vivo)
Apenas e só
Por nele
Eu entrar

4 comentários:

  1. Se me é permitida uma palavra (não gosto de comentar poetas: a poesia não o pode...), mas se me é permitida uma nota...

    Do achado ambívio do "de bosch" ao tom da fala: tanto mais me parece Brueghel quanto mais me cheira pútrido: do real deboche, porventura.

    Se bem que desgoste da linguagem e do que nela se faz dito, não desgosto, confesso,da cadência e do ritmo do texto, entre o "lascivo sincopado" e o "dar-se certos ares de..."

    (Achei, caro Tamborim, que, no deserto de comentários, tinha de deixar o meu deserto de palavras...)

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  2. Lapdrey,

    Quase me debrueghelei em lágrimas.

    Registo com algum interesse que coloca a tónica principal do meu poemeto numa dimensão lasciva que não é, absolutamente, o que tem de mais essencial. Na verdade, o grande deboche aqui é outro.

    Depois, diria que me parece curioso que qualquer estimado leitor que eventualmente já possa ter sofrido das alegrias e agruras do "agente principal da circulação do sangue", das maleitas pertinazes do "ângulo saliente na articulação do braço com o antebraço", e da afamada dor que sobrevem à ostensiva extensão óssea que certos animais apresentam em suas cabeças, entenda que este poemeta espontameamente jorrado (perdão, redigido) possa pretender "dar-se ares"...
    Contumácia irremessível, no entanto, me parece a desatenção à metafísica importância de Lucho no meu palrador textinho. Essa doeu!
    Brincadeiras e seriedades à parte, gratíssima pela atenção do seu comentário, que me honra porque o tenho achado uma delícia em algumas intervenções que tenho lido.

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  3. Cara Tamborim,

    Tal como habitualmente faço, também aqui utilizei a palavra "lascivo" no sentido mais ancorado no latim que "lascivia" como significando:
    "1.Acção de brincar pulando, 2.feitio folgazão, génio galhofeiro, jovialidade, brincadeira,
    3.capricho, excesso,
    e só depois
    4. lascívia,libertinagem, devassidão, falta de pudor
    e ainda um quinto sentido
    5.Exuberância de estilo."

    Por isso, quando me referi ao seu poema (poemeto, como lhe chama, modestamente) como "lascivo sincopado", eu queria significar que a Tamborim utiliza esse "saltito" de certas linhas de sonoridade que vão pulando de palavra em palavra, de verso em verso, criando um fluxo e um fio fónico (por via de consonâncias, aliterações e coisas afins) ao longo de quase todo o texto, assim se pode dizer.

    Esse processo, largamente utilizado, por exemplo por Eugénio de Castro e levado ao extremo do excesso,e até por vezes do "ridículo" em Rodrigo Emílio, cria um "agarrão" no leitor, que faz este ir atrás da melopeia, mais do que do sentido do texto.

    Cabe deixar registo do meu rasgado agrado quanto ás saborosas metáforas bem hiperbólicas quanto ao ""agente principal da circulação do sangue", às "maleitas pertinazes do "ângulo saliente na articulação do braço com o antebraço", e à "afamada dor que sobrevem à ostensiva extensão óssea que certos animais apresentam em suas cabeças": deveras bem escrito.

    A minha vénia e respeito - se bem que vénia não muito pronunciada pois, apesar do bom persistir do meu yoga, as cruzinhas já apitam em certo lá sustenido bemol.

    Muito mais haveria a dizer... mas... sempre isso poderá ser dito.
    Grato.

    (Vou ficar curioso quanto ao que traga da próxima ...)

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  4. Caro Lapdrey
    (Muito rapidamente porque creio estar a minha mão a tornar-se bloco inoperante de puro gelo com este frio...)
    Ainda que entendido no sentido que com aprumo aqui nos expande (pela forma como inicia o 3º parágrafo da sua primeira intervenção, associei-o muito mais ao outro significado), não é realmente o lado lúdico, se bem que indissociável do resto, ou o berreiro estilístico, que esgotam o textinho, mas é sempre maravilhoso ver que tiveram o seu efeito.
    Por devida honestidade intelectual, só reforço e explico as aspas contidas no meu texto que lhe mereceram formosa adjectivação: é mesmo obra do Priberam (dicionário de Língua Portugesa disponível on-line).
    Mais uma vez, gratíssima pela sua astuta pluma (ou dígito astuto) ao serviço da sua instigante mente-batuta.
    Vénia incontida.

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