quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Trans-Pátria - o tempo hispânico

"Certo historiador brasileiro, Gilberto Freire, muito mais perspícaz do que a média, descobriu um importante traço antropológico que aproxima de perto os brasileiros de seus vizinhos continentais. É o sentido da temporalidade. Brasileiros, mexicanos, colombianos, chilenos, argentinos, uruguaios e paraguaios participamos todos da vivência do que Freire chama de "tempo hispânico". Em contraposição ao tempo utilitário, cronometrado, urgente, dominando os países do hemisfério norte, notadamente os anglo-saxônicos, vivemos mergulhados na fruição do tempo hispânico, que é o tempo cheio das coisas que valem por si mesmas, e não por outra coisa, a utilidade, o lucro, o planejamento abstrato da vida. O chamado tempo hispânico é o tempo que se perde (se ganha) conversando com os amigos, ou consigo mesmo, no café, na confeitaria, no bar; o tempo da fruição pura, da amizade, da conversação, da elaboração errante do que vamos fazer, da captação do acaso, do imprevisto, de modo a enriquecer nossa vida com a nota do inesperado. O homem hispânico não vive como escravo do tempo, mas goza de soberania sobre ele, única forma de fazer da vida humana a minha vida, no dizer de Marías"

- Gilberto de Mello Kujawski, Idéia do Brasil. A arquitectura imperfeita, São Paulo, SENAC, 2001, p.81

Publico isto recordando a grande proximidade com a visão de Agostinho da Silva, a afinidade dos portugueses a este outro ritmo mais contemplativo da vida e como todos vivemos hoje compelidos a perder cada vez mais este sentido da temporalidade, por pressão de paradigmas mentais e económicos produtivistas importados, para não ganharmos com isso senão stress, ansiedade e frustração, perda em vida da própria vida. Preservar este domínio do tempo, este perdê-lo para ganhá-lo, e exportá-lo, civilizando a Europa da auto-mobilização acelerada e infinita (Sloterdijk), é outra das vocações da alternativa lusófona à globalização da constante fuga para a frente dos ritmos mentais e operativos.
Claro que, em termos últimos, diria: "Perde o tempo sem perda de tempo" (A Cada Instante Estamos a Tempo de Nunca Haver Nascido, Sintra, Zéfiro, 2008)

serpenteemplumada.blogspot.com

32 comentários:

  1. então o espírito alentejano "do deixar viver com calma na contemplação da paisagem" ou o "tá-se bem" da cultura hip-hop, expressam essa postura hispanica?

    ResponderEliminar
  2. O tempo hispanico corresponde ao tempo "ocioso" da Grécia Antiga?

    ResponderEliminar
  3. Iria mais pelo espírito alentejano e pelo ócio grego, na medida em que neles há ou haja uma atenção e sensibilidade fundamentais aos ritmos do mundo e da vida, cósmica e humana, traduzidas numa sabedoria espontânea, não livresca. Do "tá-se bem" da cultura hip-hop não sei muito, mas temo que possa ser um eco disso distorcido pela falta dessa atenção e sensibilidade e tolhido pela indiferença e entorpecimento da mente e dos sentidos. Este é um juízo reservado, pois na verdade não sei.

    ResponderEliminar
  4. Não esqueçamos que "ser", em português e castelhano, vem de "sedere", estar sentado, em repouso. Porventura uma ponte também para o Oriente. Vários autores já têm notado as afinidades da cultura ibérica com a oriental.

    ResponderEliminar
  5. Entre o frenesim europeísta da fatalidade de que alguns pregoeiros querem fervorosamente convencer-nos, de havermos de ser "globais" e “uniformistas” (ou não termos futuro algum), e o pender nosso mais natural para sermos "conformistas" e alentejanamente "específicos" (para assim termos algum presente), afigura-se-me que continua ainda a ter a melhor razão Montaigne, quando diz:

    “(…)pareceu-me não poder prestar maior benefício ao meu espírito que deixá-lo em plena liberdade, abandonado às suas próprias forças, em vez de o deter onde tivesse por conveniente”.

    Ora, precisamente, entre o que, de facto, realmente nos convenha e a conveniência meramente circunstanciada das “conveniências” de que políticos, moralistas, velhos do Restelo ou simples alcoviteiros se nos façam arautos não encomendados, nisso reside a tão decisiva diferença entre viver significativamente ou sobreviver sem significado.
    Entre uma e outra coisa está, porventura, esse radical caminho do meio que faz dizer a Zenrin, poeticamente:

    “Calmamente sentado, nada fazendo,
    A Primavera chega, e a erva cresce por si própria”.

    ResponderEliminar
  6. ainda bem que esclareceu da etimologia,Paulo,de facto tem td a ver...e assim não foi disparatado ter referido o espírito alentejano:)
    ponho-me a pensar:esse mesmo espírito relaciona-se intrinsecamente com a facilidade de poetar, esse tal filosofar espontaneo.
    Agostinho da Silva o q pensa sobre isso?

    ResponderEliminar
  7. Esse tempo ausência (da busca) de tempo perdido, não é por si demissão de uma procura filosófica, de nomadismos necessários, baseados na alteração de conceitos e no encontro de novas "crenças"

    ResponderEliminar
  8. certamente não é demissão, mas comunhão,sincronização de tempo e espaço interiores com tempo e espaço cósmicos, pois contemplando a realidade de um modo fluido, quase despretensioso é possível captar esgares d'essência...

    ResponderEliminar
  9. sou alentejano. Conheço mais ou menos o meu tempo: lento- do Verão- pelo calor; lento - do Inverno - pelas temperaturas baixas que tolhem movimentos. Lentos sempre, e "sulitários", como agora, em que o grande interlocutor é o crepitar do lume.
    Não conheci o tempo índio. Que não será muito diferente do tempo áfrica. Tempo meu por mais de uma década.
    qualquer africano empreende uma viagem de 50 quilómetros a pé - sob pretexto fútil para nós - fazendo se acompanhar de uma esteira fininha de capim e de uma ligeira provisão de paus-de-mandioca. Encontra sempre uma palhota amiga onde dormir, faz neste percurso uma copiosa sementeira de amizades.
    Pode ficar de pé horas seguidas falando com as suas descobertas. Enlaçando-se pelos antebraços, como que para selar a fluidez da prosa produzida sem preocupações.

    não há tempo ibérico que se abeire da qualidade morna deste tempo

    ResponderEliminar
  10. sou africana de costela alentejana e adoro a fruição deste tempo/espaço contemplativos e percebo perfeitamente as suas palavras, Platero :)

    ResponderEliminar
  11. Caro anónimo, Agostinho valorizava muito a sabedoria natural, poética e filo-sófica, de quem se dá o tempo de olhar amorosamente para o mundo, lendo-o como um livro aberto, sem que isso implique não o ler também nos livros escritos pelos homens.

    ResponderEliminar
  12. Seria interessante que o Platero e a amiga africana de costela alentejana nos informassem mais sobre o tempo africano...

    ResponderEliminar
  13. Também gosto do tempo que corre e de correr com ele. De ir à janela de um comboio e ver o mundo a ser varrido. Que tempo será esse? O das velocidades e correrias? O dos beijos fugazes e dos amores para sempre esquecidos?

    ResponderEliminar
  14. Sim, Lorena, também aí pode haver contemplação. Diria mesmo que velocidade e imobilidade absoluta coincidem.

    ResponderEliminar
  15. não será pensar, experimentar e não, em primeiro lugar ajuizar?
    Podemos substituir alegoria-utopia por diagnóstico-experimentação?
    O caminho faz-se caminhando?
    Podemos instaurar outra acepção de elementariedades, para devir-outros-mundos?

    ResponderEliminar
  16. Isto é um elogio da preguiça ou quê!? Vão mas é trabalhar, malandros!

    ResponderEliminar
  17. eu de facto adoro este blog, é surpreendente, de td um pouco se encontra.

    qto à mix áfrica/alentejano só dá numa contemplativa que ama poesia!rs

    teorizando a questão, Lapdrey focou aspectos pertinentes.

    preciso conhecer Agostinho da Silva!!!+1 "dica" preciosa q me dá, depois de Teixeira de Pascoaes...mt obrgda, PauloB!

    Lorena...de Brito? será? se sim, um bj respeitoso de uma ex-aluna UCP.

    Baal, é esse o caminho a trilhor...não o das dicotomias, mas dos encontros nos desencontros no livre e espontaneo fruir...

    srs políticos, o q acham da "república" de Platão?

    uma feliz tarde p.tds

    ResponderEliminar
  18. "Fiquei surpreendidíssimo por ver como as vacas avançavam, uma atrás das outras, se encostavam ao robô e se sentiam deliciadas enquanto ele, durante seis ou sete minutos, realizava a ordenha."

    ResponderEliminar
  19. elas sentiam-se deliciadas pela ordenha macânica mas nós, tugas/zé povinho temos de tolerar a "ordenha" da crise - desemprego, impostos e afins...

    "deixem-me trabalhar, deixem-me trabalhar" - dá que pensar, não?!...

    :/

    ResponderEliminar
  20. Calem-se! Evolem-se! Deixem-me em paz, ainda perco o emprego com tanta conversa...

    ResponderEliminar
  21. preguiça, que produzes tu?

    ResponderEliminar
  22. Contemplo seres celestiais... anjos, e assim ...

    ResponderEliminar
  23. mas tb há anjos caídos...

    ResponderEliminar
  24. caro Paulo Borges

    tempo-áfrica?:

    tempo-Sol
    tempo-Luz
    tempo-Templo

    depois não sei explicar o resto.Templo tem alguma a ver com contemplar?
    o tempo-áfrica é de contemplação. Não é só de olhar,ou ver ou observar.
    É também de sentir. Com todos os sentidos - pelos cheiros, pelas cores, pelos sons, pelos gostos, pelo tacto.Tempo-áfrica é sobretudo extra-sensorial. O que é o suor? Como sentir uma tempestade?

    Para rir:
    o que tem o tempo meteorológico a ver com o cronológico? Como se mede o tempo? pelos relógios? qual a peça-chave de um relógio?:
    -uma mola metálica.

    pois bem, socorramo-nos da Física:
    com o calor a mola tende a encolher ou distender-se?:
    -distender-se

    - e ,distendo-se,retarda ou acelera o ritmo do tempo?

    caro Paulo Borges, esta a minha tentativa de explicação (física)
    do tempo-templo meridional, cuja matéria é tangível e audível como o pó e o som do rolar das estrelas.

    só mandar de aqui um calmo e caloroso afro-abraço

    ResponderEliminar
  25. Eu creio que o que perpassa a maioria das palavras que aqui foram sendo ditas é a procura de sentido, não diria do tempo (que é coisa que importa a um mais moroso e ruminante pensar), mas da sua vária modalidade de ser vivido.
    Um outra discussão seria ponderar como a apreensão “rectilínea” do tempo, tal como a que tendemos para fazer, pode moldar e influenciar o nosso sentir, pensar e e agir.
    Outros povos, culturas e civilizações viveram-no e vivem-no diversamente, sendo caso paradigmático disso mesmo a muito peculiar concepção do tempo que subjaz ao calendário maia.
    Ele é ali basicamente tido como decorrente de uma ordem universal sincrónica, como “ordem ‘vertical’ quadrimensional centrada no agora, que abarca tudo em relação à ordem ‘horizontal’ do espaço tridimensional” (José Arguelles, “As Dinâmicas do Tempo”.
    Eivados e, a bem dizer, reféns que estamos duma quase omnipresente matematicidade conceptual que eu chamaria de bom grado “cronocêntrica”, talvez devêssemos tê-la cada vez mais “sincronocêntrica”, assim privilegiando a melhor funcionalidade sintónica entre ambas as metades do nosso cérebro e seus modos diferentes de apreender a “realidade” e processá-la, uma em modo sequencial e a outra em modo serial.
    O texto de Kujawski, para facilidade analítica, na linha do que pensou Gilberto Freire, mostra os modos extremados de vivenciar o tempo: entre, digamos, um tempo “tenso” e um tempo “solto”, um tempo “preso” e um tempo “à solta”, um tempo” escravo” e um tempo “livre”, o que porventura nos permite aqui estabelecer algumas analogias de tais modalidades com os nossos modos mais triviais de dizer e de falar, e que talvez nos auxiliem a aclarar como cada um de tais modos esteja, ou o tenhamos, em nós.
    Assim, podemos “ter tempo” ou “não ter tempo”; “deixar correr o tempo”, “correr contra o tempo” ou “ter o tempo de feição”; podemos "dar tempo" a alguém, a nós mesmos ou a alguma coisa; dizemos que “dá tempo” para fazer alguma coisa; pode alguém “ganhar” ou “perder tempo”, pode “perder-se no tempo”, e pode “distrair-se com o tempo”; podemos, até, numa outra acepção, e sem profetismos, dizer que “fará bom (ou mau) tempo”.
    Há, portanto, nestas falsos contrários, alguma coisa que sempre em nós pende entre um tempo como vivência do fluir as coisas ou como vivência do querer dominá-las – entre, portanto, o deixar fluir (d)as coisas, e como se diz no texto, dominar o tempo; ou o (deixar-se) dominar (pel)as coisas, e ser assim por ele dominado. Como sempre acontece, as polaridades interagem e permutam-se.
    Em qualquer dos casos, é bom nunca nos “distrairmos” do que mais importa, e o que mais importa é apenas o que importa mais a cada um, em cada momento, estejamos nós a distrair-nos como, de algum modo, aqui estamos a fazer agora, quer quando estejamos atentos a quanto nos surpreenda ou entusiasme, coisa que aqui, parece-me também não é raro.
    (Amigas, amigos, acho que é de comprar mais pano para as mangas deste tema…)

    ResponderEliminar
  26. gostei da tua explanação, Lapdrey!

    ResponderEliminar
  27. foi uma castanhada metálica...

    ResponderEliminar
  28. "Quando um dia é como todos, todos são como um só; e numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos."
    Thomas Mann

    ResponderEliminar
  29. É talvez esse vislumbre, que cabe num "abrir e fechar de olhos", aquele "filme" essencial da vida, que (parece) os quase-afogados revêem: tanto passamos ou achamos que passa por nós e, todavia, é "resumível" em meros instantes...
    Dá que pensar...

    ResponderEliminar
  30. a simplicidade é companheira da sabedoria...se soubermos (d)o essencial, então seremos felizes!
    pk o filme da nossa vida resume-se ao ser/conhecer/agir na(s) sua(s) disponibilidade(s) de aprendizado...

    ResponderEliminar
  31. sou o cúmulo da preguiça: casei com uma princesa já grávida!

    ResponderEliminar