Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
´"É Natal, ninguém leva a mal!" - I
Intitulado com um dito de um mascarado de Trás-os-Montes inicio aqui a publicação da parte final de um estudo já editado, em homenagem ao espírito arcaico, esquecido e encoberto desta época natalícia, o da Folia caósmica e metamórfica, hoje transformado no da folia consumista, festiva e desvairada emergência ainda da Festa da liberdade primordial e da saudade de tudo-nada ser.
...
É a mais que divina transgressão do divino, a trans-religiosa transgressão do religioso, a transcendência do transcendente, que encontramos, já não no contexto da cultura erudita, mas no da cultura popular, na arcaica tradição ritual e festiva que desponta, em pleno seio do medievo cristão e nas camadas mais baixas do clero, nas Festas dos Loucos, do Burro e dos Inocentes. Parecem constituir-se estas como novas formas das arcaicas e cíclicas festas de renovação e fecundação cósmica, por recriação do Caos primordial ou da originária Idade de Ouro, nos períodos de fim e início do Ano, nesse intervalo de doze dias, por vezes prolongados, que se crê não terem lugar no calendário temporal. Neles se suspende a ordem cósmica, reemergindo a liberdade primordial, anterior à constituição do universo das determinações, com a aparente solidez das diferenciações e formas ônticas, instituídas, funcionalizadas e hierarquizadas em supostos lugares naturais, e com a lei que estabelece as suas medidas e relações no plano cósmico e social. Tais festividades consistem assim na vivência do “sagrado de transgressão” que, neste período, se substitui à do “sagrado de respeito”, violando os interditos e as regras que normalmente asseguram a conservação da ordem do mundo e das mentes, mas que agora importa ultrapassar e destituir para que a realidade se recrie na a-cósmica liberdade do Infinito primordial. É que a diferenciação, determinação e fixação dos entes em seus limites implica uma privação, quer da primordial liberdade da ausência de forma, quer da plasticidade e imprevisibilidade das metamorfoses criadoras, transitando-se do tudo ser simultaneamente possível para o confinamento das possibilidades à sua actualização apenas parcial, exclusiva e sucessiva, com o inevitável sacrifício e aprisionamento do excesso de energia vital na ordem de um mundo de formas que, também inevitavelmente, acabam por temporalmente se desgastar e sucumbir no processo da sua cristalização e erosão recíproca, na imanente tensão em que se inter-dissolvem reintegrando-se no infinito primordial, como o sugere o conhecido fragmento de Anaximandro. Nas festas a que nos referimos emerge então a sacralidade da subversão e inversão de todas as formas supostamente normais de ser, pensar e agir, traduzida na religiosa vivência do riso, da paródia, da blasfémia, do sacrilégio, da desmesura e do intercâmbio, metamorfose, fusão e indistinção das formas, por via do mascaramento, do travestimento, do jogo, da fantasia, da licença e do excesso sexual e alimentar, da inversão e suspensão das funções sociais, num paroxismo orgiástico que faz da loucura a regra num autêntico e carnavalesco mundo às avessas.
Celebrações como a dos Loucos, do Burro ou dos Inocentes, moldando a exaltação evangélica da divina loucura de um Deus e de um Reino às avessas da normalidade mundana à continuidade da tradição pagã das celebrações do solstício de Inverno, das Crónia gregas, das Saturnalia romanas e das Calendas de Janeiro, entre outras, fazem do período que se estende da segunda metade de Dezembro até à Epifania, a 6 de Janeiro, “um contínuo carnaval”, tradicionalmente designado como a “libertas Decembrica” e vivido num singular misto de elementos pagãos e cristãos. “Mascarada” que, como diz Jean-Paul, “sem nenhuma intenção impura, interverte o temporal e o espiritual e transtorna a ordem social e os costumes, na grande igualdade e liberdade da alegria”. Vejamos as mais significativas características e simbolismo desses festejos cuja descrição se imortalizou literariamente nalgumas páginas célebres de Victor Hugo e, mais recentemente, no cinema, com o Corcunda de Notre-Dame, da Walt Disney.
- "Da Loucura da Cruz à Festa dos Loucos. Loucura, sabedoria e santidade no cristianismo", in Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp.148-151 (as notas de rodapé foram suprimidas).
Interessante.
ResponderEliminarMost interesting...
Fico-me pela introdução, em si, uma lembrança se não mais que um aviso.
Há muito tempo que a sociedade europeia (para não falar da global) se esqueceu, verdadeiramente de, o que é, simplesmente por um dia, viver a metáfora!
Informação adicional... Os caretos são de Vila Boa de Ousilhão... não pelas máscaras, mas sim pela "fatiota". Com isto endereço o convite à visita desta aldeia transmontana próxima de Vinhais, zona remota do mais profundo Portugal, mas onde, por sinal, ainda se vivem estados de pureza de alma, fechados e bem, à busca desenfreado do consumo cavalgante às preteleiras de metal!
Um abraço Paulo.
Votos de Feliz Natal e caósmico Ano Novo! :)
Saúde!
Aos que veneram estas festividades deixo-vos a minha receitazinha de todos os dias:
ResponderEliminarTrês gotas de calor sobre a raiz
daquela esperança ténue,quase morta,
pesadelos submersos na alma absorta,
raivas pisadas no almofariz
Juntam-se a mil desejos imbecis
a cavalgar uma alegria torta
e aguarda-se que a sorte bata à porta
transportada num cântico feliz...
Disfarça-se o rancor à opulência,
coberto com farrapos de tristeza num
forno brando de miséria solta.
Sorrisos mendigados à consciência distribuem-se, em cacos, sobre a mesa enquanto a fome baila a toda a volta.
Feliz Natal!
Ora aí está! :)
ResponderEliminarRecebo o teu sorriso e...
ResponderEliminarSorrio.
Hossana!
ResponderEliminarQue soberba receita, mendicante amiga!
Assim, até eu vou conseguir ser mendigo: pedinte peregrino já eu sou!
Saudações na "alegria torta", com um "sorriso (mendigante)"
Hurra!
Ai, ai, mendigante de mim, para ti também sorrio, mas não trouxe receita para aqui. Nunca imaginei!... Além das pessoas bonitas nos blogs também há "mendigas", nos blogs! Dá para acreditar! Só mesmo no Natal é que um sorriso não faz mal.
ResponderEliminarPS. De uma fome "bailante" é que eu também precisava! Não sei. Dava-me geito!
Pois mendiga, ide entregar mais receitas diárias, que é quase Natal e os transportes "renais"(risos...) devem estar todos ocupados.
Muito movimento no Jardim Zoológico! Sim senhor!...
ao Paulo
ResponderEliminarum abraço de felicitação pelo trabalho.
e outro de votos de Bom Natal
Caro Paulo, reservando-me a uma mais detida leitura desta importante passagem do seu texto, que aqui nos propõe, estou de todo em todo concorde em que a "vivência do 'sagrado de transgressão' que (...) se substitui à do 'sagrado de respeito'" é condição sine qua non para uma permanente vigilância e (re)vitalidade de qualquer re-ligião, posto que só ela, a um tempo, des-constrói e re-constrói, em élan de sangue de espírito sempre novo, a inevitável tendência para a estagnação naquele re-ligar "instalado" nas próprias auto-defesas, salvaguardas e limitações, tendencialmente aceites ou auto-impostas, em que hierarquia e praticantes de qualquer uma dessas vias re-ligantes facilmente cai, muitas vezes sem disso sequer se darem conta.
ResponderEliminarFoi disso mesmo também que grande parte do cristianismo que temos foi em certo momento amputado, eu diria, "castrado" (pese embora o “caquestro” de utilizar aqui tal verbo), mutilado assim do elemento "feminino" no seio da sua mesma Divindade, sempre fugidia ainda quando Um dela (para quem tal creia) haja vindo ser Um como nós, connosco, em nós e para nós, qual no Natal que alguns celebram.
Pois, se a união à mesa eucarística se faz n'Esse mesmo que veio e foi, para que Outro Consolador viesse, não parece menos verdade que Esse - que, enviado, desceu (como fogo) sobre todos, conferindo assim a cada um a capacidade de plena floração “hesicasta” e “apateica”, "álmica" e “noética”, de quanto se é no que se seja para vir a ser -, Esse (que é, não igual e o Mesmo, mas o diferente sempre o Mesmo) ver-Se-á assim paradoxalmente "limitado" pela própria liberdade inerente ao homem, qual imperfeitos a temos e o somos, na “doença” de sempre querermos de-limitar-nos, para apenas nossa (aliás despicienda) garantia.
Só o rasgo, pois, que atravessa tudo e todos os mundos, e além-mundo mesmo, sem limite de modos ou de maneiras de sê-lo - seja como "loucura em Cristo" (em que por vezes tem eclodido, incontrolada e incontrolável, no seio da Ortodoxia cristã dita "oriental"), ou como loucura no que seja, no que seja sagrado para o homem, - esse jorro de folia primordial, 'litúrgica' "recriação do Caos primordial" (como o Paulo tão bem diz) é o feixe axial paradoxalmente sem eixo situável que, só ele, permite (como também o diz) libertarmo-nos da lei do “desgastar e sucumbir no processo [de] cristalização”.
Nesse sentido, em certa linha crowleiana de viver isto de que aqui falamos, a figura cósmica e ritual (à primeira e desprevenida vista, escandalosa) de Babalon, simultaneamente Virgem e Prostituta, consegue restituir a essa tensão anterior a toda a pulsão primordial, a raiz feminina de cujo Ventre todo o existente e inexistente se gera e de cujo Útero cósmico tudo nasce e tudo morre, para renascer, em toda a maravilhosa contradição contrapolarmente manifesta em todo o lugar e nenhum onde possamos estar ou haver lugar.
Há que repensar, firmemente o creio, os danos que, a ocidente, causou o síndrome “escolástico”(que ainda hoje latente subjaz e permanece no nosso viver, sentir e pensar) e, a oriente, o síndrome que eu denominaria “urobórico”, por sempre indiferenciar no próprio indiferenciar o indiferenciado, num fluxo circularmente e, quiçá sem remédio, fechado na mesma abertura que propõe como via de “saída” libertadora.
Algo há que suscitar-se, que tudo isso agregue, congregue e congrace, para que a grande Casa cósmica seja o “lugar” de toda divina travessura, “contínuo carnaval”, nessa intérmina “grande igualdade e liberdade da alegria”.
Abraço na “libertas Decembrica” e no mais que nos intersecta! Até!
Sim, sou uma mendiga no blogue
ResponderEliminarque nem PC tenho...
Passo só para distribuir sorrisos,e
se vós quiserdes... volto p'ro ano!
P.S. Desculpa lá, Paulo
ter poisado aqui a receitazinha
mais adequado seria
se tivesse ficado lá em baixo
com a Joaninha!
Belo texto! Parabéns!
ResponderEliminarDizem por ai que é natal, é pena é que entre as nossas gentes o natal seja cada vez mais sinónimo de prendas, gastos e agitação a todos os níveis!
o natal ideal seria indefinido, para tudo poder ser!
Se dizem por ai que é natal e se assim o é desde que nos conhecemos, desejo boas festas para todos!
Como presente, fica aqui um poema que gosto muito, do David Mourão Ferreira:
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito!
Um bem haja :)
Folias literárias!... Se ao menos perdessem realmente o juízo e tivessem um vislumbre que fosse da verdadeira loucura... Como já disse, são só maluquinhos, não chegam sequer a malucos.
ResponderEliminarNum vislumbre de loucura lhe digo
ResponderEliminarQue não posso mais esconder o amor que sinto: Se a menina ceitasse esta maluquice...enfim...se me promovesse a maluco... : "Maria da Conceição, quer casar comigo?"
ups! lapso outra vez. Deve ler-se em lugar de "ceitasse"...Já não sou capaz... Já passou o rasgo de loucura e lá se foi o meu sonho, tudo por causa dum erro! Já é azar!
ResponderEliminarOhh, que pena, amiga Saudades!
ResponderEliminarQue desapontamento o meu!
Sabe? Estou triste, por si.
E triste também pela nossa boa Maria da Conceição, claro.
Mas, agora desculpem-me ambas, tenho de... tenho ir chorar...
(só tenho de decidir é lágrimas de quê...)
Vivam os loucos, a loucura é que está a dar, os malucos e os maluquinhos são os mesmos! Somos nós!
ResponderEliminarE vivam as lágrimas!
Pois é, amigo Lapdrey, para ver como as coisas são: o Paulo Borges perde (e nós, claro, também, a oportunidade de um pedido de casamento "ao vivo e a cores" em plena época pré-natalícia entre dois seres que dir-se-ia talhados um para o outro. E pelas condições deveras caricatas: Ele que é Ela ia de louco para maluco e ficava a ganhar, e Ela que é Ele, como prémio, ganhava a obra completa de Fernando Pessoa ortónimo e os outros todos (e já lá vão, segundo especialistas - uma mais que os outros - em mais de 70, a contar com alguns irmãos gémeos, é evidente...) Eta família natalícia, mais grotesca!
ResponderEliminarPS. Por isso não chore! É Natal e a Maria da Conceição depressa resistirá ao choque. Do aspirante a maluco(a), também não tenha pena,
o "CarNatal" há-de passar-lhe.
Pronto, Saudades amiga!
ResponderEliminarFiquei mais reconfortado!
Eu direi mesmo que fiquei mais consolado, pois estava inconsolável, de ralação, não é?
Tudo está bem, afinal, quando acaba mal!
Eh eh!
N.B. Se esta saga aqui continua, estou já a ver-me na contingência de ter de levar o calcorreante portátil para o jantar de Consoada...
Hope not...
Se a saga não continua vou ficar tão desconsolada na consoada!...
ResponderEliminarGrato! Um Abraço pessoal, trans-pessoal e impessoal a tod@s, por tudo!
ResponderEliminarmendiga te arrenego... lembrate-me o manel alegre
ResponderEliminarse no meio da neve, reparares numa carteira de fosforos, lembra-te do manel alegre
ResponderEliminar