Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
domingo, 2 de novembro de 2008
2 de Novembro - Homenagem a Teixeira de Pascoaes, na fronteira aberta entre mundo e trans-mundo
Embora o registo de nascimento mencione o dia 8 de Novembro, Pascoaes parece haver elegido o dia de hoje, 2 de Novembro, Dia de Finados, como dia simbólico para o seu nascimento, o nascimento de alguém saudoso do antes de haver nascido e em perene abertura para o outro mundo ou o trans-mundo, a dimensão invisível e ignota dos seres e das coisas. Republicamos aqui este curso ensaio em homenagem ao Director da revista "A Águia" e eminente poeta e pensador visionário, autor de uma obra vasta e abissal, ainda largamente desconhecida em Portugal e no mundo.
A Loucura de Pascoaes
Quando Abel Salazar publicou um sarcástico e jocoso artigo sobre a pretensa demência de Leonardo Coimbra e Pascoaes, estava decerto a uma distância infinita de compreender quão longe e perto passava da verdade no respeitante ao estranho génio do Marão. Num Ocidente e mesmo num planeta onde a loucura, expulsa do divino e do universo pela racionalidade teológico-filosófica dominante, foi progressivamente exorcizada do homem e confinada aos ghettos da patologia e da santidade, do irracional e do meta-racional - tão abusivamente contrapostos como confundidos - , a vida e obra de Pascoaes constitui uma sincera e desinibida assunção do que a aparentemente triunfante mediania excomungou como subversivo dos lugares comuns da cultura domesticada. Dramatizada em O Doido e a Morte, contemplada nos irónicos auto-retratos dos dois O Pobre Tolo, mas sempre emergente em motivos e lances capitais da obra poética e em prosa, Pascoaes não faz da "loucura" alegoria ou metáfora apenas duma absoluta Razão divina, ou seja, imagem nos limites humanos da Sabedoria e/ou Lei supremas que a tudo possibilitam, ordenam e justificam. Instaurando a irracionalidade no Princípio ou na Origem, quer na figura de um Deus imperfeito em si mesmo ou no acto criador, que neste a si e a toda a criação sepulta nos limites da realidade que lhe é possível, quer na de um delírio divino cuja paixão heteronímica igualmente o plurimorfiza num universo-casa de alienados de Si mesmo, mas que tornando-se Homem e pelo Homem expia a sua hybris maligna - o Satã que, mesmo-outro de Si, o fere na ordem do mundo real - , convertendo-se no Deus-Cristo, cósmico redentor da mínima forma de vida, mediante uma Loucura agora libertadora que incendeia as formas do possível realizado na trans-realidade do Impossível sempre Ausente, Pascoaes furta-se ao terreno onde se digladiam como irmãos gémeos do mesmo conformismo o optimismo e pessimismo, que nos asseguram ser este o melhor ou o pior dos mundos possíveis (Leibniz/Schopenhauer), para entrever na Loucura a potência de Liberdade e Criação que, excedente de qualquer Princípio, Fundamento, Razão ou Ordem ontológica, mesmo divinos, ambiguamente tanto possibilita toda e qualquer forma de determinação existencial como a sua infinita transcensão. Patente no excesso da imaginação sobre o ser e o real, da poesia sobre a ciência e a filosofia e nessa complexa síntese de memória e desejo criador, votada à transfiguradora superação de todo o existente, a que chamou Saudade, a Loucura, tal como Pascoaes a experimentou e traduziu em livros gritantes de singular experiência interior como Verbo Escuro, O Bailado, O Pobre Tolo e Duplo Passeio, sugere-se como o que antecede, possibilita e excede, redimindo-os e deles a tudo redimindo, o Deus criador e os Deuses revelados nos quais positiva e negativamente se fundam as religiões e ateísmos planetários. Não é assim desprezível que, na história da sua evolução espiritual e cósmica, a tenha assumido incarnada no delírio ibérico e predominantemente lusíada, simultaneamente quixotesco e saudoso, vindo o declínio e morte do sol apolíneo no elegíaco crepúsculo do finisterra oceânico a marcar o simbólico contraponto do seu advento helénico, constituindo-se a Grécia, como pátria da Razão, da Beleza e da Deusa, e a Lusitânia-Portugal, como pátria da Loucura, da Fealdade transcendente e da Bruxa, como os paradigmas e pólos mais significativos, antinómicos em sua mesma complementaridade, da história do Espírito, ante os quais tudo o mais se reduziria a vulgaridade: Europa, América e Indústria. Não esqueçamos o exagero como forma de sublinhar a verdade mais remota e dificilmente apreensível...
Se em Pascoaes aflora uma experiência da vida - de arcaico sabor popular e oriental - que poderíamos chamar carnavalesca, na qual realidade e ilusão, verdade e falsidade, se confundem num universo em que tudo só o é sendo simultaneamente o seu outro, o seu visionarismo abre sempre para um sentido de redenção universal pela conversão e potenciação extremas da energia do próprio delírio originário. Convertendo a messiânica busca de instauração terrena do Reino de Deus - emblemática da nossa cultura na mitogonia e hermenêutica quinto-imperial que procede de Gil Vicente e Camões para Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva - na tarefa de redimir o imperfeito Deus criador e criar um "novo Deus Infante", concebido no homem pelo ventre virginal da Saudade, ou de assumir no Deus anterior e posterior a tudo o "único ateu perfeito" - o que José Marinho considerou a sua mais profunda intuição - , Pascoaes é hoje, na transição da teologia para a teurgia e o "ateoteísmo" a-teológico, o mais genial e profundo dos nossos poetas metafísicos, o mais poderoso demiurgo da história secreta, onírica e mítica de Portugal e um dos mais desassossegantes desestabilizadores de consciências que visita este mundo de aborrecida gente razoável. Até ao momento ofuscado pelos modismos literários das vaidades urbanas e cosmopolitas, que, sentindo as armaduras intelectuais a romperem-se aos golpes do estro selvático, fizeram de Pessoa repasto dos academismos pessoanos, está por desvelar o fundo nexo entre as obras dos dois grandes poetas, apurando para além da diversidade formal a profundidade essencial das convergências e divergências. Decerto então surgirão um Pessoa e um Pascoaes que se acompanham e separam em muito mais e muito menos do que actualmente se crê, mas, justiça se faça, difícil será encontrar um grande tema pessoano - a começar pela denúncia da ficção da unidade e identidade do ego onto-psicológico - que não tenha sido antecipado e até excedido em profundidade, não em diáfana e perfeita expressão, pelo “pobre tolo” do Marão, com a nítida vantagem de na poesia deste perpassar a vertigem do Infinito cósmico, graça concedida pelas rústicas Musas ao enamorado calcorreador de penedos e fragas e que as Tágides não lograram fazer romper através das densas paredes mentais dos quartos e cafés lisboetas...
in Paulo Borges, Pensamento Atlântico, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2002, pp.155-157.
Pascoaes, o xamã do Marão! Sabem que foi visto a deitar fogo do cabelo?
ResponderEliminarGrande Pascoaes! Adormeci alta madrugada a lê-lo...que expressão bela, que visão desvairada, poderosa...mas era de ser do Marão, do alto e do vento, "esse Jeremias da solidão nocturna...", tanta analogia, tanto rasgão que fez em tudo...porque ele tinha a ideia fixa de descobrir a alma das cousas...
ResponderEliminarA funda beleza do Teixeira de Pascoaes e do que escreveu a apoderarem-se dos meus membros: tolhe-os e liberta-os. Logo, um grito desmesurado rompe como uma vontade de nada mais fazer do que ler e ler e ler e não voltar mais às paredes das salas em que as cousas não têm alma e as janelas não deixam ver senão que o Marão fica tão longe.
É só malucos!
ResponderEliminarSer louco não é ser maluco e muito menos doido...
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarPaulo,
ResponderEliminar"está por desvelar o fundo nexo entre as obras dos dois grandes poetas, apurando para além da diversidade formal a profundidade essencial das convergências e divergências. Decerto então surgirão um Pessoa e um Pascoaes que se acompanham e separam em muito mais e muito menos do que actualmente se crê(...)" Anoto sobretudo esta ideia que tando anda a surgir no meu pensamento.
Tivesse eu o fôlego e o génio necessários e seria por aí a minha tese de doutoramento. Quem sabe mesmo sem eles... Por aqui mesmo...
Seria necessário que os pessoanos e os pascoalinos ultrapassassem as suas mesmas divergências.
Um sonho de loucos e poetas?
Um abraço.
PS. O comentário anterior(o meu comentário) foi por mim apagado por engano.
Pascoaes e Pessoa, o poeta-xamã e o poeta-intelectual...
ResponderEliminarAi, Paulinho, Paulinho, quem te viu e quem te vê!...
ResponderEliminarSaudades, interpretar comparativamente a obra de Pascoaes e Pessoa é um dos maiores serviços que se pode prestar à cultura portuguesa e humana! Exorto-a vivamente a dar esse passo, que daria uma magnífica tese de doutoramento!
ResponderEliminarGraças a si, Prof Paulo Borges, descobri Teixeira de Pascoaes, que tanto prezo!
ResponderEliminarMt obrigada