"Sentir é criar.
Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o Universo não tem ideias.
- Mas o que é sentir?
Ter opiniões é não sentir.
Todas as nossas opiniões são dos outros.
Pensar é querer transmitir aos outros aquilo que se julga que se sente.
Só o que se pensa é que se pode comunicar aos outros. O que se sente não se pode comunicar. Só se pode comunicar o valor do que se sente. (...) O sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento fecha a alma.
A lucidez só deve chegar ao limiar da alma. Nas próprias antecâmaras é proibido ser explícito.
Sentir é compreender. Pensar é errar. Compreender o que outra pessoa pensa é discordar dela. Compreender o que outra pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica. Deus é toda a gente.
Ver, ouvir, cheirar, gostar, palpar - são os únicos mandamentos da lei de Deus. Os sentidos são divinos porque são a nossa relação com o Universo, e a nossa relação com o Universo Deus.
(...) Só sentir é crença e verdade. Nada existe fora das nossas sensações.
(...) Não há critério da verdade senão não concordar consigo próprio. O Universo não concorda consigo próprio, porque passa. A vida não concorda consigo própria, porque morre. O paradoxo é a fórmula típica da Natureza. Por isso toda a verdade tem uma forma paradoxal.
(...) Pensar é limitar. Raciocinar é excluir.
(...) Substitui-te sempre a ti próprio. Tu não és bastante para ti. Sê sempre imprevenido por ti próprio. Acontece-te perante ti próprio. Que as tuas sensações sejam meros acasos, aventuras que te acontecem. Deves ser um universo sem leis para poderes ser superior. (...)
Faz de tua alma uma metafísica, uma ética e uma estética. Substitui-te a Deus indecorosamente. É a única atitude realmente religiosa (Deus está em toda a parte excepto em si próprio). (...)"
Fernando Pessoa, "Sobre «Orpheu», Sensacionismo e Paulismo"
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Parva Naturalia
ResponderEliminarJosé Blanc de Portugal, 1960
«A sua poesia, que é a de um espírito dramaticamente católico e de uma vastíssima cultura em todos os campos de conhecimento, caracteriza-se por uma dignidade de tom, uma severidade austera da expressão, um fôlego contido, os quais, do fundo de uma humildade angustiada, através de um humor quase negro ou de uma ternura discretíssima, repercutem, como em raros outros poetas contemporâneos, uma áspera consciência trágica das contradições do mundo moderno. Poesia da mais alta categoria, sem quaisquer concessões de factura ao leitor ou a si própria, sempre ameaçada de efectiva destruição pelo poeta, é na sua linguagem densa e rude, de uma originalidade muito peculiar». Assim apresenta a poesia de José Blanc de Portugal quem foi seu grande amigo e – acima de tudo – o maior crítico literário do século vinte português, Jorge de Sena.
A estreia de J. Blanc de Portugal (1914-2001) em volume de poemas deu-se no ano de 1960, com este Parva Naturalia, galardoado, no ano anterior, com o Prémio Fernando Pessoa, numa altura em que os prémios literários recaíam em obras com qualidade e em autores que, notoriamente, sobreviveram ao rude teste do tempo. Como sucedeu com muitos poetas – e como é pena que não suceda hoje em dia –, os seus poemas passaram, em primeiro lugar, por revistas (as quais viriam a ter enorme repercussão no panorama literário do nosso país): «Muitos seus poemas importantes foram primeiro publicados em Cadernos de Poesia, Aventura, Litoral, Tricórnio, A Serpente e Graal.» (J. de Sena)
O título de Blanc de Portugal não ostenta qualquer insulto – visto que «parva» significa em latim, simplesmente, «pequena» –, antes remete para o tratado de Aristóteles. Uma tradução possível da sua abertura seria: «Depois de definitivamente considerada a alma, por si própria, bem como as suas várias faculdades, devemos agora inquirir os animais e todos os seres vivos, de modo a perceber que funções lhe são peculiares e que funções lhe são comuns. O que já foi determinado acerca da alma (por si própria) deve ser assumido em toda a linha. As partes restantes (os atributos de alma e corpo, conjuntamente) do que nos ocupa deverá ser agora abordado, e podemos começar pelos que surgem em primeiro lugar. Os atributos mais importantes dos animais, sejam eles comuns a todos, ou peculiares a alguns, são, manifestamente, atributos de alma e corpo, em conjunto, por exemplo, sensação, memória, paixão, apetite e desejo, de uma maneira geral, além do prazer e da dor. Porque estes se podem dizer pertencentes a todos os animais.»
Será, talvez, este o inviável desígnio deste livro de poemas. O investimento poético no corpo e na alma é, como no Estagirita, conjunto. O próprio rosto de Deus – se tal faz sentido (claro que não faz) – é referido de um modo que arreda qualquer subserviência, qualquer maniqueísmo – «Deus pode existir ou não/ Mas se existir só de ti depende que tenha ou não razão» (p.12). E não se espere, além disso, o mínimo de blandícia, mera placidez. A fé – melhor: a relação com o divino – é um estágio convulso, temeroso, crítico, humano, em suma – «Julgo eu que de mim mais já não posso/ Que mil novos infandos esperar desvios/ Fadário meu não é este, Deus,/ Pois que, humanos, todos, covas abissais/ De maldição abrirmos cada dia.» (p.19) A postura do sujeito poético perante a entidade divina mostra-se fruto de uma vivência reflectida e joeirada, que dá conta de uma proximidade com o transcendente que acaba por rasurar a distância e a reverência – «Dizem que os deuses morreram:/ Sou da raça deles/ à espera de Deus.» (p.33) «Será Deus a alegria que foge?/ Deus dos prazeres, do sol e da Razão?» (p.57), interroga uma elegia que cruza versos ficcionalmente atribuíveis a diversas personagens, como Jesus, São João, ou Rilke, e no qual assomam mesmo colagens de ditos ou excertos destas personae.
A paixão (do latim passio, «sofrimento») é outro dos caminhos de que se faz esta poesia – «Cravo os pregos do amor por todo aquele armazém dos desperdícios/ Que nenhuma vassoura limpará do pó das glórias mortas./ Fixo as dobradiças que me unirão pra sempre a tais memórias/ Experimentando com cuidado e sem saber a serventia dessas portas» (p.85), um poema cujo cruzamento entre concreto e subjectivo me parece um achado; sem o histerismo que caracteriza tanto do metaforismo da nossa poesia, os versos de J.B.P. alcançam um ponto verbal digno de nota. O sentimento que, segundo Dante, move o sol e as outras estrelas, é, aqui, confronto, diálogo buscadamente tenso, diria – «Como perdoar-te ter’s-me querido/ fosse como fosse e por que tempo?/ Como agradecer-te o sequer apetecido/ que não sabe quanto alcança e esquece/ deveria afundar em sonho branda/ o que foi inesquecido por nós dois?» (p.39)
E a poesia? Encenada a sua interpelação na elegia já mencionada, surge a voz que a faz, na reflexão textual – «Poesia por grande que sejas/ não voas da terra para o céu/ e cais de novo/ no chão pisado/ a buscar novas forças?» E também a poesia dá testemunho da relação, que diria fecundamente tensa, entre o divino e o temporal – «Poesia! Sem esperar voltei meu canto que é teu/ Às coisas de meu pai que são as pobres criaturas/ caminhando a par de mim pelas ruas da amargura/ Disfarçando mais do que eu a certeza que as leis tuas/ Nada têm que ver com a piedade de evitarem/ Cada maior dor segundo à menos dura.» (p.91)
Não gostaria, no entanto, de deixar aqui a ideia (e errada seria ela) de que a poesia de José Blanc de Portugal se afasta irremediavelmente do humano, do corporal, apenas porque o divino nela ocupa um lugar de relevo. Na verdade, parece-me que não, e que, mais, os seus poemas adquirem maior interesse porque o autor faz parte desses que, por pensarem Deus, não deixam de ter os pés fincados na terra que são, no pó que serão (não o diz a litania?) – «Ó doce visão do mundo não bastante/ Manto esburacado de janelas por onde vejo os barcos/ Pura claridade, névoa sobre o rio,/ E uma espécie de insectos a correr na água/ Que sobe e se esconde na nuvem de luz rasteira!» (p.78) Não, o mundo não morre, na sua poesia, antes se amplia, de sentidos, de direcções, embora seja, também, cantado no seu concreto – «A música, identicamente falsa,/ Vai voltar aos sulcos de plástico negro/ Como poderia ficar no alcatrão das ruas/ Gretado pelo tempo de calor.» (p.80)
O último livro de poemas – um escasso opúsculo, na verdade – publicado por José Blanc de Portugal, pelo menos, que eu saiba, Quaresma Abreviada (1997), saiu dos prelos por mão da Black Sun, uma editora marcada por uma atitude de subversão cultural, por assim dizer, e por uma certa heterodoxia, o que não deixa de encerrar uma curiosa ironia, dado o percurso editorial do poeta, cujas obras poéticas foram publicadas por casas como a Ulisseia, a Ática, ou a Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Que José Blanc de Portugal seja tão pouco conhecido que pouco (ou nada) diga mesmo a quem é habitual dos terrenos pobres da poesia portuguesa é eloquente exemplo, ou apenas triste confirmação, de que o que resta quase nunca é o que importa. O que se mantém visível, entre as cotoveladas apressadas destes nossos enlameados dias, não é, o mais das vezes, a grande poesia de que este país é capaz, mas, tão frequentemente, o fraco versejar dos que se agarraram, a tempo, ao poder, à musculatura torpe da finança, ao aparelhómetro mediático. Mas leiam-se os poetas – soterrados, ou não, pelo pó da ignorância, pelo peso dos energúmenos – que possam ainda interessar. Talvez parte do mal se remedeie.
Hugo Santos, 2007
É atentamente que o leio, um tão original comentário.
ResponderEliminarÉ sem surpresas que desconheço este autor... entre tantos outros...
O incrível é que mesmo Pessoa continua ser desconhecido para muitos... mas é sempre o mesmo... como conhecer o Outro quando se não conhece a Si - ou se não concede a si mesmo essa possibilidade, abertamente.
O último parágrafo é o meu preferido, mas...
ResponderEliminar"o que resta quase nunca é o que importa."
Hmmm... há o que restou de ontem, e o que restará de amanhã...
ver-se-á Amanhã.
Saúde à Natureza!
A Nós.
(ou, o que restará de Hoje,
ResponderEliminarver-se-á Amanhã)