Contraditoriamente, é também a partir do século XIX que os estudos clássicos foram passando gradualmente, até aos nossos dias, de lugar de honra dos currículos universitários e escolares até à sua presente situação em que são votados, sem qualquer sombra de dúvida, a um conhecimento superficial e à marginalização. O estado actual dos estudos clássicos, segundo Salvatore Settis, pode ser compreendido através de um interessante paradoxo:
À medida que se sabe (ou se está disposto a aprender) cada vez menos sobre a antiguidade grega e romana, mais se consolida na nossa paisagem cultural a imagem das civilizações “clássicas” (especialmente a grega) como a raiz última e única de toda a civilização ocidental, como o depósito dos valores mais garantidos e mais altos (por exemplo, a democracia). Tal imagem, de forte poder operativo pois tomada como um dado adquirido, vai resistindo, e até se tem consolidado, precisamente na mesma medida em que vai aumentando, no Ocidente, o desinteresse pelo mundo “clássico” por parte da cultura geral e dos percursos educativos mais difundidos. Quanto menos se estuda grego e latim, quanto menos se lê (mesmo em traduções) essas literaturas, mais se fala dos Gregos e dos Romanos, mas de um modo cada vez mais esclerosado, convencional, morto. Quanto mais, inclusive, os intelectuais, os filósofos e os ensaístas perdem (por sua própria escolha) a capacidade e a vontade de controlar criticamente e em primeira mão a densidade e o sentido original dos textos da cultura “clássica”, mais dedicadamente procuram nela uma vaga e incontrolada inspiração, que toma quase sempre a forma do mais arbitrário florilégio, de citações feitas ao acaso, e todavida com valor legitimador.
Mais grave e insidioso é um outro aspecto deste processo (deveras imparável?): quanto mais genéricos e menos cultos são esses exercícios, mais os mesmos se arriscam a colocar a cultura “clássica” sobre um pedestal inalcançável, retirando-a da história para projectá-la num plano pretensamente universal, mas dela fazendo, na realidade, armas e bandeira de uma civilização ocidental que possa reivindicar mais ou menos cobertamente a sua própria superioridade em relação a outras culturas. Porque uma possível resposta às ansiedades da globalização cultural, ao pânico da perda da própria identidade (por homologação e absorção numa qualquer “globalidade”) é a reivindicação de identidades locais “fortes”, capazes de competir com essa temida e mal definida globalidade. A “civilização ocidental” é certamente uma delas (tão mais forte porque transnacional), e o risco de se apelar a ela, sem serem especificadas coordenadas e implicações, torna-se maior em tempos (como o nosso) em que se confrontam tradições culturais muitas vezes apresentadas como naturalmente e fatalmente opostas: por exemplo, Oriente e Ocidente; por exemplo, cristianismo e islamismo (Settis: 2004, pp.4-5).
De facto, verifica-se que a uma diminuição cada vez mais acentuada do conhecimento da cultura clássica corresponde um aumento da utilização superficial e acrítica da mesma como agente legitimador dos valores contemporâneos da cultura ocidental. Na nossa opinião, este processo é completado pelo seu movimento inverso, ou seja, quanto mais se toma como um dado adquirido, e sem um verdadeiro conhecimento de causa, que o Ocidente dos nossos dias tem o seu berço na tradição greco-romana, menos necessário se torna conhecer essa mesma tradição, por se partir do princípio de que os mais importantes valores do presente, considerados como garantidos e indiscutíves, são, na sua essência, praticamente os mesmos da Antiguidade clássica: identifica-se a tradição com e na moderninade, dispensando-se assim o conhecimento da própria tradição.
Baseada excessiva e exclusivamente num critério de identidade com os valores ocidentais contemporâneos, esta relação com a cultura clássica, que prescinde de um conhecimento crítico e científico, impede-nos sobretudo de reconhecer a origem não-grega de muito do que se nos apresenta, à primeira vista, como tipicamente familiar na cultura grega; ou seja, impede-nos de reconhecer e de explorar não só a nossa alteridade em relação aos Antigos, como também a nossa identidade com outras culturas. Tal como iremos desenvolver mais abaixo, é precisamente nesse equilíbrio entre identidade e alteridade que a cultura clássica deixa de ser uma fortaleza etnocêntrica, passando a ser uma porta de abertura para a compreensão e a exploração de outras tradições culturais. A esta relação exclusiva de identidade, que se revela hoje em dia improdutiva, corresponde a imagem – da tradição hegeliana – idealizada e «a-histórica» da cultura clássica, fora do tempo e do espaço, eternamente perfeita, imaculada e coerente, onde se encontra o reservatório dos mais altos valores universais.
O suposto carácter atemporal da civilização e da arte “clássica”, e mais especialmente a grega, ganha tanta mais força quanto mais se remove a consciência do processo histórico que determinou as formas do “clássico”, e que nas suas mil facetas poderia relativizar e delimitar o seu significado. É precisamente em nome do pretenso carácter imutável e paradigmático do “clássico” que a antiguidade greco-romana acabou por ser identificada como a raiz comum da civilização que aprendemos a chamar de Ocidente, exactamente no sentido em que Hegel pôde dizer que «Ao nome Grécia o homem culto europeu se sente imediatamente na sua pátria». O “clássico” surge aqui com um significado fundador não só de resultados ou de acções ou de memórias, mas de valores ainda actuais, a serem legitimados (de um modo tão mais eficaz quanto menos explícito) declarando-os idênticos ou próximos aos “clássicos”. (ibidem, pp.103-104).
No nosso actual contexto histórico, como já referimos, de grande relativização e descentralização culturais, a tradicional imagem atemporal e universal, e cada vez mais superficial, da cultura clássica – isolada do resto do mundo e colocada num pedestal inalcançável como o fundamento indiscutível de uma visão eurocêntrica da civilização humana – necessita, a nosso ver, de uma reavaliação. Omitindo acriticamente a imensa complexidade das relações e dos contactos inter e transculturais que se encontram na génese e no desenvolvimento da cultura greco-romana, o Ocidente contemporâneo criou uma auto-imagem de universalidade hegemónica com a qual insiste – com resultados que por vezes atingem a barbaridade – em reinvidicar uma superioridade exclusiva e infundada sobre outras culturas. Se em 1859John Stuart Mill ainda podia afirmar, com tranquilidade, que a Batalha de Maratona era parte integrante da história inglesa (e que no caso de uma hipotética vitória da Pérsia os bretões e os saxões estariam ainda a viver na selva), tal tranquilidade já não é de todo aceitável para o caso de uma obra cinematográfica publicada em 2007 sobre a Batalha das Termópilas (300, Zack Snyder), exemplo por excelência de tudo o que afirmámos até aqui: tal como outras obras congéneres, esta obra, camuflada de um pretenso rigor histórico e cultural de teor pseudopedagógico, aproveita a ignorância generalizada acerca do mundo clássico, transformando aquele episódio da história da Grécia antiga num modelo virtuoso dos valores ocidentais actuais, tais como, por exemplo, uma mulher espartana a dirigir uma assembleia de homens... E assim assistimos à irresponsável vitória ideológica de um Ocidente moderno e dinâmico sobre um Oriente obscuro e indeterminado. Embora seja um exemplo extremo, este uso grosseiro e distorcido da Antiguidade, identificada e confundida com a actualidade, revela o estado em que se encontra a «moribunda classicidade» denunciada por Salvatore Settis. Iremos pois, já de seguida, mostrar a mais recente perspectiva da ciência da Antiguidade, sobretudo a importância fundamental do cosmopolitismo helenístico, a nosso ver mal compreendido e, por isso mesmo, tradicionalmente estudado como um período decadente e relegado para um plano secundário.
Talvez o grande "milagre grego" tenha sido Alexandria, paradigma de encontro inter-cultural e inter-religioso, sem fusão nem confusão, que hoje importa reactualizar, diz-nos Jean-Yves Leloup. O que se terá perdido no incêndio daquela biblioteca!...
ResponderEliminarJoão Beato,
ResponderEliminarGostava de o ouvir continuar, aproveitando o comentário do Paulo Borges, nesse diálogo ou encontro inter-cultural e inter-religioso que porventura houve e, então, seja possível, ao mais ocidente do ocidente, realizar esse "duplo milagre", para onde penso que se caminha.
É verdade, Paulo, devemos voltar a nossa atenção para a Alexandria ptolemaica. Os estudos que tenho seguido falam precisamente em relações inter e transculturais, sobretudo inter e transreligiosas. É lá que se encontra o paradigma orientador, na minha opinião, para a Renascença portuguesa.
ResponderEliminarSaudadesdofuturo, o discurso continua precisamente nesse sentido, mas para realizarmos esse "duplo milagre" temos todos que nos aplicar muitíssimo, sobretudo no desenvolvimento de um modelo académico de excelência e verdadeiramente universal.