sábado, 11 de outubro de 2008

Não te confunda, Amigo, eu nada ver ou O Anjo da Silésia recriado pelo Anjo de Barca d'Alva

Não te confunda, Amigo, eu nada ver
pois deslumbrado estou com meu não ser.

[…]

Minha morada é onde não moramos
e convosco vivo eu onde não estamos.
Para nos vermos só lugar incerto,
talvez, além de Deus, só o deserto.

Em Deus minha grandeza, em mim seu nada,
mas sermos desiguais ideia errada.

[…]

Se te livras de tudo que é medida
é só de eternidade a tua vida.

[…]

Como podias tu herdar a Deus
se te não morresse Ele aos olhos teus.

[…]

Em Deus vivia eu antes do mundo
pois sempre Se me deu do mais profundo.

[…]

A rosa que tu vês com teu olhar
sempre assim foi em Deus, sem começar.

[…]

É Deus decerto o nada, e, quando assoma,
só em mim Ele existe se me toma.

[…]

A razão de ser rosa é só ser rosa
e bela assim surgir, silenciosa.

[…]

Meu salvador é Deus, eu salvo o mundo
se em mim entra como eu nEle me afundo.

[…]

Abandonar-se a Deus a Deus encanta,
mas abandonar Deus mais do que espanta.

[…]

Dá atenção a tudo o que vês hoje
pois, se foges ao tempo, Eterno foge.

[…]

Onde nasce esse eterno por que lido ?
Onde tu de ti próprio andas perdido.

[…]

Tão nobre sou que posso em terra ser
imperador ou rei; Deus, se quiser.

[…]

Nem chuva ou sol o são só para si,
dos outros deves ser, não só de ti.

[…]

Nunca entrarás no céu, daqui cativo,
se dentro em ti não fores tu céu vivo.

[…]

Se, na vida, tu foges ao inferno,
sem dúvida o terás na morte, eterno.

[…]

Já chega de leitura, se mais quer,
só se em si próprio escrita o ser lhe fere.

Nota final

Resumo, por enquanto: Ao que eu entendo,
só Deus existe. O resto é Ele sendo.

– Angélico Silésio [Angelus Silesius], Versos seus que, pelo Nada e Tudo, adoram Deus - Poetas de Fora em Linguagem de Dentro, versão livre de Agostinho da Silva [inédito, 1992].

5 comentários:

  1. lindo. No fulgor de não ser a desmedida. além do limite o deserto. o apêiron. Não sendo para ser sentindo "tudo de todas as maneiras". des-afio à entropia. convite à transgressão e ao transbordo. rosa que desfolha por todo o deserto tão sem porquê.
    Um abraço, Prof. Paulo Borges.
    luís filipe pereira

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  2. Amei, quero ler mais coisas dele.

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  3. Do que mais gosto é do fim:

    Já chega de leitura, se mais quer,
    só se em si próprio escrita o ser lhe fere.

    Como é que vocês entendem isto?

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  4. O Anjo da Barca d'Alva nada vê também. Os seus olhos guardam sombras e sonhos. O Anjo da Barca d'Alva não tem morada e vagueia pelas paisagens, mora nos lugares que são a distância e têm escadas até ao céu.
    O Anjo da Barca d'Alva poisou os olhos na deriva da eternidade, porque nos montes e nos vales tudo é imóvel e tudo está perto do incriado. Na verdade, não se morre, na verdade os seres humanos, como as crianças místicas, são da paisagem entre a sombra e o sonho: são fantasmas, são alegorias, são pedaços de incriado a despedir-se para o lugar da criação contínua. A paisagem por onde Deus morreu é a paisagem por onde Deus nasceu na linguagem, como uma rosa, como um cheiro silencioso e uma suavidade sedosa. E os que aqui, como o Anjo, sobem e descem são os que lêem. A ferida aberta chama pela água imóvel, pelo rio da memória e, ou o Letes. É por isso que quem lê, Amigo, chora. E toda a escrita fecha a ferida pela proximidade com a água. Obrigada Paulo!
    Leio isto depois e no entanto foi logo que o senti. A Poesia tem o dom de nos ligar à mesma mão que tem os fios da vida nos movimentos dançantes da sua criação.

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