Não te confunda, Amigo, eu nada ver
pois deslumbrado estou com meu não ser.
[…]
Minha morada é onde não moramos
e convosco vivo eu onde não estamos.
Para nos vermos só lugar incerto,
talvez, além de Deus, só o deserto.
Em Deus minha grandeza, em mim seu nada,
mas sermos desiguais ideia errada.
[…]
Se te livras de tudo que é medida
é só de eternidade a tua vida.
[…]
Como podias tu herdar a Deus
se te não morresse Ele aos olhos teus.
[…]
Em Deus vivia eu antes do mundo
pois sempre Se me deu do mais profundo.
[…]
A rosa que tu vês com teu olhar
sempre assim foi em Deus, sem começar.
[…]
É Deus decerto o nada, e, quando assoma,
só em mim Ele existe se me toma.
[…]
A razão de ser rosa é só ser rosa
e bela assim surgir, silenciosa.
[…]
Meu salvador é Deus, eu salvo o mundo
se em mim entra como eu nEle me afundo.
[…]
Abandonar-se a Deus a Deus encanta,
mas abandonar Deus mais do que espanta.
[…]
Dá atenção a tudo o que vês hoje
pois, se foges ao tempo, Eterno foge.
[…]
Onde nasce esse eterno por que lido ?
Onde tu de ti próprio andas perdido.
[…]
Tão nobre sou que posso em terra ser
imperador ou rei; Deus, se quiser.
[…]
Nem chuva ou sol o são só para si,
dos outros deves ser, não só de ti.
[…]
Nunca entrarás no céu, daqui cativo,
se dentro em ti não fores tu céu vivo.
[…]
Se, na vida, tu foges ao inferno,
sem dúvida o terás na morte, eterno.
[…]
Já chega de leitura, se mais quer,
só se em si próprio escrita o ser lhe fere.
Nota final
Resumo, por enquanto: Ao que eu entendo,
só Deus existe. O resto é Ele sendo.
– Angélico Silésio [Angelus Silesius], Versos seus que, pelo Nada e Tudo, adoram Deus - Poetas de Fora em Linguagem de Dentro, versão livre de Agostinho da Silva [inédito, 1992].
Muito interessante.
ResponderEliminarlindo. No fulgor de não ser a desmedida. além do limite o deserto. o apêiron. Não sendo para ser sentindo "tudo de todas as maneiras". des-afio à entropia. convite à transgressão e ao transbordo. rosa que desfolha por todo o deserto tão sem porquê.
ResponderEliminarUm abraço, Prof. Paulo Borges.
luís filipe pereira
Amei, quero ler mais coisas dele.
ResponderEliminarDo que mais gosto é do fim:
ResponderEliminarJá chega de leitura, se mais quer,
só se em si próprio escrita o ser lhe fere.
Como é que vocês entendem isto?
O Anjo da Barca d'Alva nada vê também. Os seus olhos guardam sombras e sonhos. O Anjo da Barca d'Alva não tem morada e vagueia pelas paisagens, mora nos lugares que são a distância e têm escadas até ao céu.
ResponderEliminarO Anjo da Barca d'Alva poisou os olhos na deriva da eternidade, porque nos montes e nos vales tudo é imóvel e tudo está perto do incriado. Na verdade, não se morre, na verdade os seres humanos, como as crianças místicas, são da paisagem entre a sombra e o sonho: são fantasmas, são alegorias, são pedaços de incriado a despedir-se para o lugar da criação contínua. A paisagem por onde Deus morreu é a paisagem por onde Deus nasceu na linguagem, como uma rosa, como um cheiro silencioso e uma suavidade sedosa. E os que aqui, como o Anjo, sobem e descem são os que lêem. A ferida aberta chama pela água imóvel, pelo rio da memória e, ou o Letes. É por isso que quem lê, Amigo, chora. E toda a escrita fecha a ferida pela proximidade com a água. Obrigada Paulo!
Leio isto depois e no entanto foi logo que o senti. A Poesia tem o dom de nos ligar à mesma mão que tem os fios da vida nos movimentos dançantes da sua criação.