sábado, 9 de agosto de 2008

Diálogo a cores com El-Rei D. Sebastião (I)

“É O que eu me sonhei que eterno dura, / É esse que regressarei.”

Os versos vêm indireccionados. São de um poeta, são de Pessoa. São enviados por outro poeta e por uma pessoa: _______________. Quem mos enviou, nas horas terminais do sonho e do sono, enviou-mos por saber que preciso de falar com poemas e com poetas, com sombras e deuses, com mortos e incriados, para regressar; sabe que preciso da sua companhia para suportar a existência aqui e agora, sabe que nunca acordo e não me é relevante distinguir entre o sonho e a realidade, sabe que não consinto a dúvida da terceira meditação cartesiana, sabe que vou e venho, chego e parto, com a alma muito silenciosa para escutar os que me são congénitos: já me sabe inapta para o mundo e para os que falam ininterruptamente e não sabem da minha surdez, da minha cegueira, do meu estado inanimado para o tangível; sabe que sou intangível, não inatingível. Sabe como dialogar comigo, sabe trazer o terceiro incluído até nós, entre nós. Desta vez trouxe o rei. Nunca tínhamos falado, entre nós, do rei, de El-rei D. Sebastião. Mas ele já me tinha falado muitas vezes do seu rei. Tenho até para mim que o meu bom amigo é um outro rei.
Quando envia os versos penso, dadas as circunstâncias, não sei como dizer-lhe que O rei nunca me falou nem eu falei com Ele. Tenho apenas ouvido falar-vos os dois. Deambularem em torno do império e do Poema, desenharem a giz o contorno do que o não tem, citarem os versos que vos unem num ponto único e invisível, a Ilha dos Amores. Tenho-vos visto nas ruas em dias de nevoeiro acinzentado, lado a lado, e pressentido que se chamar por um, o outro me responde, indistinta e provavelmente, uma voz única. Tenho-vos surpreendido nas sombras e escutado entre os versos e as sábias meditações. E tentava confessar-te, bom amigo, que eu, que nunca desconfiei do poder dos versos nem da métrica musical que me enlouquece, nunca tinha ouvido falar dentro de mim O rei. Nesse instante, no kairos dessa confissão, na simultaneidade dessas palavras que escrevia, na verdade branca da alma, com a emergência da paisagem plana, dou comigo, nas planícies sólidas e silentes, na atmosfera constante e quase imóvel do calor alentejano, a vê-lo e a escutá-lo. O rei nobre no seu país pobre!
Não sei como contar-te, sem mistério e emoção, sem perturbação e sem tristeza, essa com que me conheces como um rosto único, que viajei com o rei até aos seus mistérios e aos seus degredos e nessa peregrinação fui para além de toda a solidão e da experiência solipsista com os outros. Sim, tu bem sabes que é, quase e só com eles, que a linguagem tem dificuldade em ser ética e religiosa. É sobretudo com os vivos que a linguagem desune em vez de unir. É sobretudo com os outros e dos outros que a linguagem é só juízo e comunicação. O teu rei, dialogante comigo, tinha-me roubado ao mundo. Os versos relembrados, evocados, e a tua dádiva inesperada tinham sido as tabuinhas com que me libertaste dos dias e dos trabalhos, da morte em vida com que nos restantes meses de estio estive amortalhada. Ah! mas os versos que me enviaste foram pombas, foram sombras, foram trigo e foram uva! Foram quentes ventos para o deserto. E, com os versos, gentil amigo, desencadeaste uma espécie de experiência não totalmente apreensível para mim desde Herberto Helder e de Photomaton & Vox. O rei aparecia e desaprecia nas ondas luminosas, também inacabadas e impermanentes, nas ondas magnéticas com que o calor se configura e reconfigura nos horizontes ilimitados para os que rumam para o Sul.
O rei, amigo, não me aparecia, à primeira vista, como o Júlio Pomar o tinha pintado na paisagem-tela: assim imperfeito, desfeito quando ele ainda está intacto, assim morto quando ele ainda está vivo, assim perecido quando ele é imperecível, assim aproximante quando ele ainda está distante. Ai amigo, como à primeira vista tudo confusamente me inquietava: o via bem a ele e tão mal o via no quadro! Até que depois percebi. Ai, amigo, o que percebi! O teu rei é o sol, o teu rei é o Bem! O teu rei não vem morto no burro, não é uma Ideia montada num jerico como Napoleão montado a cavalo. O teu rei não é deste mundo nem partiu a galope num raríssimo equídeo para fundar um império. O teu rei não é a Ideia fora de si. O teu rei é uma ideia que volta a si e o império que o chamou é desde antes do tempo, realíssimo na alma e no Poema. O Poema é o grande mar da alma, só em torno do Poema, as almas como ilhas, reúnem os que se encontram e é a esse encontro, fora do tempo e do espaço, que se chama Amor e só há Amor entre os que lêem e se lêem. Assim, como uma Ideia, como um indefinível (e Platão bem sabia que tentar definir uma Ideia mais não era do que a frustre tentativa que a todos, mesmo ao filósofo, deixava em aporia…) o via eu, ao rei, na paisagem, mas não sei que paisagem era, nem onde estava, nem de onde vinha, nem para onde ia. Não ia nem vinha, o teu rei. O teu rei, rei-filósofo, não é terrestre nem celeste, é de um Outro Mundo. Ah o teu rei que me visitou na paisagem indeterminada não vem morto de um império por haver, o teu rei está vivo no império sempre havido! Como o via e sob que forma me aparecia o rei nobre de um país pobre!?
Não sendo o morto, nem vindo montado num burro, nem como Cristo para uma gruta sendo desviado, o bom rei que me chegava, chamado pelos versos que me enviaste, vinha agora na sua real metamorfose: na luz. Feito luz! O seu sonho que eterno dura é o sol. O teu rei é um ritmo luminoso – É esse que regressarei – que a todos, incluindo o burro, alumia. Sendo Ideia, o teu rei é o que tudo contorna, a luz à volta do morto, a luz em torno dos que figuram e dos que se desfiguram, do Poema e do País. Por isso o Poeta o recebe, não como morto, mas com a deferência de quem deixa entrar, não se sabe em que portas, o luzeiro, o que resplende. Por isso também o Poeta não o esquece mas o convida, porque se um Poeta o fez partir só outro o pode fazer regressar. Por isso ainda o palhaço ri e o tambor não pára de rufar, por isso, no quadro e na paisagem-tela, há poesia e há festejar. Há um chegar, há uma forma estranha de amar. Como no Fédon, o que morre ou está morto, não parte, regressa, não deixa de falar, tem aqueles com quem dialogar. Nesse sentido, o poeta espera-o e recebe-o por ter com quem poder conversar-cantar. Sem direcção o acolhe. Este não é um corpo que se decompõe, é um poema que se compõe. E Pessoa espera-o, esperam-no os que ainda são pessoas. Porque no deserto não há problemas, há poemas., não há confrontos, há encontros. Não há eu, há Ele. Ei-lo ao Rei! E um grito de estertor infindo secou a minha voz: o rei falava-me com cor, calor e som.

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