domingo, 6 de julho de 2008

Algarve, anos 80

(...) Lá não há espaço para lamúrias. A única saudade concebível é a de viver o momento presente até ao limite dos possíveis, à dissolução naquele calor líquido ao qual os elementos nos convidam e que o nosso corpo, qual hóspede mal-educado, não consegue corresponder. Ah, que alegria transbordante, que diferença em relação ao recem-adquirido siso pequeno-burguês que eu pressentia em casa, correspondência etérea do guinchar dos guindastas e das linhas severas dos prédios que começavam a emergir que nem cogumelos à nossa volta. Mas é preciso lembrar que o sentido da nossa existência, a dos filhos da nova promessa de mobilidade social, era redimir os nossos pais de todo o cheiro a pasto, a mosto e a estrume que lhes tivesse ficado entranhado, se não no corpo na alma quase paranóica de medo de "voltar atrás", à "parvalheira" das aldeias, das casas térreas e da distância em relação ao mundo de maravilhas que lhes era prometido pela rádio e pela TV barulhenta do café local. Por isso, era preciso saber merecer todas essas benesses trazidas pela recem-adquirida prosperidade com uma higiene imaculada, com um exorcismo de tudo o que fossem odores corporais e quaisquer vestígios de matéria orgânica. Para merecer a verticalidade e o cheiro marmóreo dos prédios novos, para nos parecermos donos das "sedans" Japonesas que finalmente se tornavam acessíveis aos ex-filhos da miséria e do obscurantismo, era preciso mostrar um controle absoluto sobre tudo o que fosse entusiasmo, excesso, qualquer impulso que fosse sub, extra ou humano, demasiado humano em nós. O objectivo supremo, incosciente para todos e para bem da nossa saude mental, seria a quimera de transmutar o invólucro carnudo e aquoso do nosso corpo na solidez higiénica do mármore.(...)

Notas para um futuro romance

1 comentário:

  1. raramente comento sem ser para me auto-publicitar mas... porra, tenho gostado mesmo muito de todas as tuas intervenções, felicidades :)

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