Instantes há em que, desprevenidos e sem intenções, livres dos hábitos mentais e emocionais, subitamente nos surpreendemos trespassados de um inefável sentimento de infinito, plenitude, felicidade, potência, luminosidade e liberdade. Não somos senão isso que sentimos e sabemos então, pela mais simples evidência, ser essa a realidade e verdade primeira, última e eterna de tudo. Porque nesses instantes a plenitude que sentimos é a plenitude, não a nossa irreal plenitude, mas a plenitude de todas as coisas. A plenitude que se sente sem cisão sujeito-objecto, a plenitude que se vê sem conceito, a plenitude em que corpo, sentidos, mente e consciência são tudo a testemunhar e celebrar a sua eterna infinidade, perfeição e esplendor. Uma plenitude sem centro nem periferia, sem interior nem exterior, sem proprietário nem destinatário. Uma plenitude sem porquê nem para quê. A plenitude.
Então somos e sabemos tudo, sem nada ser nem saber. Vemos tudo, sem em nada pensar. E também vemos, quer no âmago desses instantes, quer já na sua memória reflexiva e saudosa, que não somos e nada é como antes o concebíamos. Vemos que não somos e nada é como nos dizem. Vemos que nada é, nunca foi e nunca será realmente separado disso que nos sentimos. Vemos que nada, nós, os outros, a totalidade do que antes pensávamos como seres, coisas e fenómenos, separados, finitos e limitados, com entidade, substância, forma e características próprias, com origem, duração e fim, com nascimento, vida e morte, jamais em verdade assim existiu, existe ou existirá. Tudo se revela simultaneamente inseparável, osmótico e irradiante de um não sei quê, numa glória irredutível a todo o conceito e palavra. Tudo é vazio de limites e pujante de esplendor e intensidade. Nesses instantes exultamos e o mundo é Festa. Sem porquê nem para quê. Sem quem nem quê.
E doravante se sabe que nada mais tem plena realidade, sentido e valor senão experimentar, fruir e celebrar tal plenitude. E, manifestando-a ainda, a ela logo reconduzir toda a consciência que dela se distraia, destinando se ao sofrimento, pelas vias mais adequadas à natureza da sua distracção. Por pura sensibilidade, amor e com-paixão. Sem esforço. Espontaneamente. Com a contagiante espontaneidade de ser sempre em Festa. A única Festa autêntica: aquela que tudo é, sem excepções, sem convidados.
É desses instantes, uma vez interrompida a sua não-duração, é dessa plenitude, uma vez interrompida, velada ou diminuída a fruição dela, que há a mais funda saudade, ou, melhor dizendo, a saudade, memória-desejo de perfeição e absoluto, de um Bem para além de o ser, pois sem conceito, contraste ou oposição. Porque, embora referida a pessoas e seres, experiências e estados, tempos e lugares – os encantamentos da infância, o primeiro ou um grande amor, uma amizade ou comunhão com vislumbres de eterno, os entes queridos que partiram ou se ausentaram, uma imagem, um odor, um sabor, os lugares desses deslumbramentos –, a saudade que deles havemos é afinal a saudade da glória que neles e em nós então, consciente ou inconscientemente, em maior ou menor grau, vivemos, vislumbrámos ou pressentimos. A saudade da fugaz dissolução das opacidades do mundo convencional. A saudade de rasgos para além de estarmos aquém. A saudade de um encontro íntimo. De um estar mais perto do que não sabemos. Da graça de um Bem imaculado por medos, defesas, anseios e expectativas. A saudade da realidade-verdade plena, irredutível a sê-lo.
A saudade, como indicam possíveis etimologias do seu surgimento na experiência galaico-portuguesa, da saúde primordial de todas as coisas, trocada pelo consciente ou inconsciente anelo do que a sente haver perdido, do que se sente cindido da comunhão primeira, sentindo e padecendo assim o isolamento e solidão seus e, por ventura, dos outros seres, e que por isso aspira a reintegrá-la, buscando a sua salvação ou, numa melhor possibilidade, a salvação de tudo: o comum regresso à saúde dessa plenitude primordial e sempre instante. Pois a saudade que fundamos no passado para a projectar no futuro, no anseio de um futuro onde reencontremos o bem havido, é afinal a saudade do eternamente presente, a saudade de haver vivido, momentaneamente, a plenitude do agora, de um agora que se desvendou porque, naqueles deslumbramentos, se suspenderam os nossos condicionamentos habituais e habitámos mais próximo da infinita intimidade dos seres e das coisas. A saudade que desses instantes havemos, a nimbá-los da difusa mas doirada aura do ideal, é pois a saudade dessas efémeras coincidências com o, ou tão só tangências ao, profundo coração do mundo, em que súbito nos surpreendemos integrados, acolhidos e embalados no seio de um Agora sem antes nem depois.
- pré-publicação de um excerto de Da Saudade como Via de Libertação, Lisboa, Quidnovi, 2008.
"Não somos senão isso que sentimos..." como seria de supor, o nosso sentimento é o mesmo, só estas palavras invisíveis ainda nos confundem. ;) Até ver... eheh
ResponderEliminarOcorre-me pensar que se a Saudade remete para a revelação de uma glória irredutível de tudo, então a Saudade guarda rostos. Diz Agamben que o rosto compossibilita a ideia de glória. Mas a Saudade guarda muitos. Tem tantos rostos quantas as experiências incondicionadas que leva consigo no seu silêncio e na sua cegueira. A Saudade não organiza a visão do mundo a partir do olho. Agamben diz: "Ele [o olho] organiza a visão à volta desse centro invisível - o que significa, também, que toda a visão é organizada para que não vejamos esta cegueira." A Saudade organiza a direccção do seu olhar para o que rodeia o visível e só sente a glória dos rostos com os quais conheceu na intimidade a experiência de glória, mas é na mais íntima treva que os guarda e os aprisiona. Só é saudoso aquele que ama o que não mais se pode dar a ver e é na treva unidade connosco. Deus e os Amantes. Os judeus, parece-me, têm uma relação mais saudosa com Deus do que de "futuridade", [enquanto olharem só para a frente não o poderão receber ou reconhecer] Magritte também sabia isso muito bem. Por isso, pintou os Amantes sem rosto e sem olhos. A visão gera proximidades que são contiguidade e na Saudade a proximidade é coincidência. A visão vê a semelhança, a Saudade o idêntico. A Saudade é ritmo. É por isso que ela mora tão bem na Poesia e com ela coincide tão divinamente. Não é prosa...é dionisíaca (música), ou mora ainda mais na poesia dionisiana como sabe Pascoaes. E ouve-se ou ecoa discretamente nos cálices açucarados dos licores com que Pascoaes distinguia a prosa da poesia.
ResponderEliminarA este ensaio sobre a Saudade, prometo, brindarei com álcool!
Caríssimo!
ResponderEliminarPoucas palavras, porque está tudo dito.
:)
Eu acho que a treva é comburente (é claro que isto não tem sentido).
E para mim o futuro dá-nos o passado. E há por aí, entre passado e futuro, ou aquilo que assim designamos, um espalhamento vivenciável como um colapso, a catástrofe do sentido.
A saudade dá uma pele a tudo isso. E quando passamos por ela a faca do sofrimento, ou do amor, ou da vontade de transcensão, levamos com as entranhas do mundo bem na cara. Há, claro, um sacrifício, mas a saudade, esse ritmo dançarino e inapreensível, anula o porquê e o para quê disso.
Todo o ensaio, Paulo, todo o seu texto é uma saudade vivida… É ele mesmo um daqueles momentos de plenitude e de «Tangência ao mundo» que traz viva a saudade em beleza e pensamento. Momentos em que poesia e a filosofia trazem saudosos os rostos, e o canto se eleva em glória, na treva em nós. Do sublime futuro em que poesia e saudade se fundem numa negrura que não tem nome. Uma visão transcendida que perpetua uma eternidade fugaz. Como um sino que chove e cresce em nós e ao seu bater são as Saudades de ter Saudades. Se puder, hei-de ter saudades desse lançamento. Ergo o meu copo e deixo-o cair. Bebo esse aroma.
ResponderEliminarIsabel,
A visão compara e vê as semelhanças, a Saudade é o sentimento divino de uma coincidência. Mas também, no mais fundo de nós, de uma distância que afasta e aproxima o mundo, num movimento que, vejo-o de olhos fechados, é ritmo e poesia.
Um abraço para os dois
PS. Vou ter Saudades da imagem que em cima vou colocar. Talvez porque nunca a verei.
Que responsabilidade, escrever algo que leva a Isabel Santiago a brindar com álcool !...
ResponderEliminarQue belas, as imagens que as Saudades do Futuro nos trouxeram !
Abraços para tod@s.
"A Saudade é ritmo", um múrmúrio drástico e aveludado como uma cascata que nos sulca ao silêncio.
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