quarta-feira, 4 de junho de 2008

"O amor está marcado por um mundo cujo reino teve lugar antes da desunião do nascimento"

"Dizer: O que os humanos mais amam não é reconhecível, isso quer dizer: É sempre o perdido que reina.
É sempre o amor experimentado, enquanto se ignorava qual era a sua natureza, que devora os humanos.
O amor está marcado por um mundo cujo reino teve lugar antes da desunião do nascimento"
- Pascal Quignard, Les Paradisiaques. Dernier Royaume, IV, Paris, Gallimard, 2007, pp.71-72.

19 comentários:

  1. "[falando da saudade:] [...] e é legítimo argumento da imortalidade de nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra coisa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir; sendo esta tal a mais subida das saudades humanas, como se disséssemos: um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apetecemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e temporalmente, o que está de nós remoto e incerto; mas um e outro fim, sempre debaixo das premissas de bom e deleitável. Esta é em meu juízo a teórica das saudades, pelos modos que, sem as conhecer, as padecemos, agora humana, agora divinamente" - D. Francisco Manuel de Melo, "Epanáfora Amorosa", III, 1660.

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  2. As metáforas judeo-cristãs afrancesadas são uma filigrana de vazios semânticos. Antes da expulsão do Éden não há amor nenhum; apenas sexo em «estado de graça», como o da bicharada. Nem considero que esse antes fosse inocência, porque não acredito que exista inocência no mundo - ainda que a demande -, nem nas pedras do chão: se cair sobre elas aleijo-me. Nem há pureza, porque tudo é a (al)química mistura de tudo; nada é formado por um só elemento.

    Depois a maçã: o conhecimento; a perturbação da carne com a vã tentativa de explicar os seus apegos e prazeres.

    Não há perdido nem achado. Há um termo - o amor - como uma das mais tirânicas ideias de místicos e filósofos, na tentativa de conferir forma ao caos infernal em que vive a Alma dentro da carne.

    Para mais é uma ideia prescritiva e moralista. O pé coxo da civilização que temos - e não deveríamos ter tido.

    Abraço, Paulo.

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  3. Amigo Lord, como pode ser metáfora judeo-cristã falar da desunião do nascimento !? Haverá algo menos criacionista ? Na verdade, se lermos Quignard com atenção, aquilo de que ambiguamente fala é da saída do útero e do estado de intemporalidade pré-existencial e, ao mesmo tempo, do exílio de um estado de supra-temporalidade sempre instante. Sou mais sensível a esta segunda perspectiva: neste preciso instante in-ex-istimos, habitamos a encruzilhada entre a in-timidade do eterno e a ex-cisão temporal.
    O amor de que fala transpira no sexo e nos afectos, mas é mais do que isso: vejo-o afim a um "caos" anterior à distinção entre isto e aquilo, divino e demoníaco, paradisíaco e infernal, não moral nem imoral, amoral.
    Quanto ao resto, concordo que no fundo não há perdido nem achado, mas talvez haja mesmo inocência e pureza em tudo... Se as virmos como o que são as coisas para além dos nossos conceitos e juízos, desejos e aversões, para além do puro e impuro.
    Devolvo-te a provocação: pareces-me ser tu que moralizas, ao dizer que algo que é não deveria ter sido. Em vez de amaldiçoar o mundo, mesmo a civilização que há, não poderemos aprofundar a sua experiência e visão até encontrar neles um inefável e infinito esplendor !?

    Um Abraço

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  4. Toda a história que ficou por contar antes do Génesis... antes de Deus e do Paraíso, antes da criação das bestas, do Homem e da maçã. Antes das metáforas Judeo-Cristãs que vos impregnam, Senhor:
    O Génesis relata o nascimento que provoca a desunião.

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  5. Será que toda a criação ou manifestação implica desunião, cisão ? Não será possível pensar a novidade sem ruptura, uma emergência sem quebranto, um indiferenciado em diferenciação, uma matriz tanto mais virgem quanto mais exuberantemente fecunda ?

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  6. O estado d’Amor surge-me.

    O estado e a origem são a mesma coisa. É o amor que se reconhece a si próprio, e eu reconheço a experiência, na parte que me humaniza, de amante. O amado é o que se manifesta no amar d’Amor. Como o andar na rua, o brilho do sol, o jejum da palavra, a escrita d(i)amante, a rosa no peito, o mergulho no mar, o tempo dourado, a eterna idade. Sem antes nem depois de nada.

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  7. Certo, Luiza, mas quando se perde a experiência desse "sem antes nem depois de nada", isso fica ou recorda-se como um "antes"... E do Amor fica apenas uma imagem e uma saudade... Que se anulam na reemergência desse "estado d'Amor" de que tão bem falas. E que regressam, pois ele parece ser intermitente...

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  8. o que exisre é "antes", o que não podemos pensar, para quê tentar? O amor é nem poder dizer o que perdemos. A ausência eis a condição humana.

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  9. Só não podemos pensar o que existe, o que é "antes", porque pensar é sempre um "depois"... Mas podemos regressar ao "antes", ou seja, à pura presença do que é, sempre que abdicamos de pensar ou sempre que, mesmo pensando, não deixamos que toda a vida mental se esgote nesse "pesar" e "avaliar" o que é dado. Falo aqui de "pensar" no sentido derivado do latino "pendere", que significa "suspender", no caso suspender objectos nos pratos de uma balança, para os pesar.

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  10. "Vens de antes de Deus e de tudo. A cada instante."

    (...)

    "De adulto criança. De criança recém-nascido. De recém-nascido incriado. Assim se inverte e anula o tempo."

    "Ó meu Amor de antes de haver tempo, amo-te no esplendor dos nossos filhos: o céu e a terra, todas as coisas!"
    Todas citações, sopros de "A cada instante...."
    Re-unem-se não por serem autores, Paulo Borges e Quignard, mas por serem de antes do tempo no mesmo suave fumo do fogo com que um mesmo sopro os reaproxima de "Lá-bas je ne sais pas où..." e ardem na mesma chama que os chama. E suavemente se aproximam na direcção que os escolhe, os inclina. São sopros e vão para a morada, morada "não-morada" onde sem nomes deixarão de ser. Como uma estátua os escutarei, atenta escutante dos sopros.

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  11. Dalila,
    falo dos outros tempos...
    "...eu devia ter percebido logo que era isso que pensavas...mas fiquei cego!
    Podias ter dito há mais tempo..."

    Mas depois olha para ela, do outro tempo e não pode deixar de pensar:

    "Mas...deixa lá! És linda à mesma..."

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  12. Of course, dear Joana Dalila ! How could there be some-thing as love !? How could love be a "thing" !? It's a no-thing and, by that reason, nothing can avoid it !

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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  14. Paulo,
    Tinha pensado em referir precisamente essa intermitência. Gostarei de elaborar sobre ela, oportunamente… (neste agora não quero escrever de cabeça o que me pede presença ou, posto de outra forma, o que me impede de estar presente neste agora d’Amor)
    Há também a considerar o que não chega a ser uma intermitência mas uma concomitância.

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  15. Tens razão, Luiza, não há só intermitência, mas também concomitância desse Amor que é sem antes nem depois e do seu velamento no sentimento de antes e depois, de perdido e achado.

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  16. Tudo está contaminado de judeo-cristianismo, não pelo antes e o agora declinado e nihilista, mas por 1000 anos de cristianismo feroz (séc. V - séc. XV).

    Todo o útero é um éden de onde se é expulso.

    Concordo em parte com a segunda perspectiva; mas não, não é amoral, é imoral desde o antes de tudo (o tudo de que falo é a expulsão e o Mundo - e não o Uno), porque resulta do desvio de Deus para o Mundo como alvo de desejo. O amor, em todas as formas, é desafio à ordem divina e dispersão do espírito no Mundo.

    A pureza que acreditas encontrar na pura presença das coisas e dos entes, «prévia a qualquer conceito» (e sabemos que há aqui uma contradição gnosiológica que gera um paradoxo ontológico, mas passemos por cima), chama-se beleza - e a beleza é o maior logro do Mundo; admito que pode conduzir ao bem, mas isso não é regra, depende de quem caminha. Por trás da beleza do Mundo, devoram vermes.

    Com a tua objecção final concordo inteiramente, mas não em relação ao que escrevi: porque não sou eu que moralizo, o cristianismo, sim, moralizou a imoralidade do amor, roubando-lhe potência (e como tal acto); mas isso fizeram-no quase todos os místicos e a grande maioria dos filósofos.

    Abraço, Paulo.

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  17. P. S. Vim com o casaco errado, mas fica assim - nada que também não saibas já.

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  18. "Bem-aventurado o silêncio das palavras e das coisas" - Nagarjuna

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