Vinha o vento da voz de Deus. Ninguém o escutava como sendo a sua ira. Mas os elementos não são nem estão desligados de Deus. A mulher avançava no areal branco da luz intensa, não contra o vento, mas para dentro da voz de Deus. Não tinha nada que levar, a mulher, na mão direita até Deus. No real encontrava apenas, mas muitas, conchas e búzios, caracóis marinhos, pequenas mas diversas pedras luzidias pela sua passagem pela morada na água do mar. Algumas partidas, não perdiam a beleza, eram até símbolo dela, uma reminiscência de uma perfeição que a vida e o tempo não conseguem destruir, desfazer na sua acção corrosiva. Algumas escondidas, semi-ocultas, na irregularidade dos pequenos sulcos da areia, numa obediência à necessidade das correntes do vento e do mar. Algumas sobrepostas, na reunião que só as criaturas afins conseguem encontrar, na unificação da diferença com que a natureza promove revelações que nunca o espírito descodificaria. Algumas irreconhecíveis, desmedidas na sua forma para a forma da Língua e das palavras; algumas surpreendentes pela sua persistência ao ritmo do mar e do vento. Como se fossem palavras antigas, muito antigas, marcas de um tempo sem diversidade de significados. Tão remotas que parecia evidenciarem que houve na Terra uma experiência de identidade entre ver e dizer. Entre matéria e som, entre visível e invisível. Talvez no tempo em que Deus andava sobre a Terra.
A mulher caminhava, afinal, para dentro do vento e vinha do mar. Desolada. Cansada. Rastejava. Os braços abriam-se e fechavam-se, marcavam os tempos, trazidos pelo ufanar das asas dos anjos; não procurava, não escolhia, não via. Como se os seus braços não tivessem mãos, os seus olhos fossem cegos, o corpo não pesasse na sua marcha pelo areal, e ela fizesse um caminho irreal. O cansaço fosse uma película com que o vento cobria o corpo, mas não os braços, quais asas, cumprindo uma promessa arrastada desde o princípio dos tempos e orlada como o fio de ouro da eternidade. Numa mulher assim não se pode falar de rosto. O rosto é sem traços. É uma declaração da noite, uma aparição da treva e da esperança. Porque uma esperança bem guardada é como um céu nocturno sem estrelas. Guarda-as para a orientação própria. Uma esperança partilhada é uma impossibilidade ontológica. Só a alma individual se orienta na escuridão e no inaudível. Nessas condições, ela nada podia comunicar que fosse visível e escutável aos que se crêem não ser surdos nem mudos.
Adentrando-se na voracidade mais audível do vento, na sua expressão não só mais intensa como rápida, diríamos na sua irritação suprema, a mulher sentiu uma breve e suave comichão nas asas. Uma picada breve, mais sentida devido à ausência de penas, do que à agressividade da mesma. As suas asas acabavam de ser travadas, o seu ritmo abrandado pela presença, pela descoberta de uma estrela-do-mar. Mínima, dir-se-ia, imperceptível aos que são videntes. A estrela evidenciava algumas dessas características que os outros seres do mar e da praia revelavam: estava escondida, sobreposta, era irreconhecível. Não estava partida. Era um signo intacto.Um signo capaz de preencher a esperança desta mulher cega e sem logos.
Arquivou-a junto ao seio esquerdo. Como se acrescentasse o sentido ao som repetido pelo coração e, depois do que apareceu num rosto nocturno ser um esgar humano semelhante ao sorriso, retomou a marcha, o seu semi-voo na vasta e imponderável indefinição de mar e praia.
A razão pela qual a arquivou não é uma certeza. Ela reconheceu-a pelo toque, pelo contacto cego. Não por uma apurada inspecção, pela consulta de algum velho compêndio de papel ou mental. Arquivou-a no corpo porque o seu corpo arcaico, sobrevivente ao Éden pensado e não ao Éden criado, o seu corpo nem humano nem angélico, era o último vestígio de um pensamento de Deus, de um esboço provável para o que viria a ser a humanidade sem mal. Nesse sentido, o seu corpo seria mais antigo do que a biblioteca de Alexandria, e não guardava livros ou folhas de papel. O seu corpo guardava todos os pensamentos de Deus, antes da criação do homem, até ao homem, depois do Apocalipse. Ninguém o sabia. Nem ela.
Suavemente erguida, mas indireccionada ora pela rebentação das ondas, ora pela reverberação inquieta do vento, a mulher perdia as pequenas penas brancas da sua velhice incontável. Os que passarem na praia, depois dela tomá-las-ão, por penas de gaivotas desavindas, alvoraçadas na declaração da tempestade. Mas os que assim pensarem são apenas criaturas do mundo visível e ignorantes da convivência cósmica entre seres e entre tempo e eternidade, entre o humano e o divino.
Ora fosse por já ter perdido muitas, ora fosse por ser, inversamente aos humanos, nua, de novo a mulher foi acometida pela mesma dor na asa. Repetiu os mesmos gestos. Não por serem formas mecânicas de reacção, mas por serem intuições esperadas, preparadas por uma sabedoria em que a eternidade a educou. Desta vez, a estrela-do-mar, pequenina mas perfeita, foi deposta no seio direito. Sem certeza desta vez, como da primeira, o seu rosto inexpressivo como a noite sem luz, suspirou. O seu corpo despediu-se do cansaço. As suas asas fecharam-se, uniram-se não para a frente, como se rezando esperassem a aparição frontal de Deus, mas para trás. O vento cessou e Deus, sem mais motivo para se perpetuar irado, abraçou-a com cuidado. Naqueles cujo poder se pensa ilimitado, o abraço é sem força. É, afinal, a carícia na qual morreu todo o poder. O amor é, por isso, como suspeitámos, a carícia sem poder.
Nesse instante o seu rosto revelou-se. Os olhos sem cor tinham e davam a ver a extensão e o fundo sem fundo do mar, do seu nariz expulsavam-se as redolências do Paraíso e da sua boca entreaberta as palavras sagradas com que Adão nomeou os primeiros seres.
Deus perguntou-lhe como se sentia, que tinha guardado. Ela retirou com um zelo extremo as estrelas. Deus disse-lhe:
-Foram as primeiras que pensei.
Ela chorou para que as estrelas ganhassem a vida em que foram pensadas. Deus indagou com ternura:
- Como te sentes?
Ela respondeu:
-Bem. – Sentindo que os que esperam voltam sempre ao lugar de onde se perderam.
E Deus, assentindo, e recebendo da mão direita da mulher as duas estrelas confessou.
-Também espero, com alguma impaciência na turbulência do vento e do mar, que as outras criaturas que descobrem na sua humanidade a divindade, na arqueologia dos elementos, descubram os seres com que preenchi, sonhando, a Terra e as ideias com que organizei a alma dos homens.
E, depois sentou-se a soprar vento e enrolar ondas no mar.
A mulher caminhava, afinal, para dentro do vento e vinha do mar. Desolada. Cansada. Rastejava. Os braços abriam-se e fechavam-se, marcavam os tempos, trazidos pelo ufanar das asas dos anjos; não procurava, não escolhia, não via. Como se os seus braços não tivessem mãos, os seus olhos fossem cegos, o corpo não pesasse na sua marcha pelo areal, e ela fizesse um caminho irreal. O cansaço fosse uma película com que o vento cobria o corpo, mas não os braços, quais asas, cumprindo uma promessa arrastada desde o princípio dos tempos e orlada como o fio de ouro da eternidade. Numa mulher assim não se pode falar de rosto. O rosto é sem traços. É uma declaração da noite, uma aparição da treva e da esperança. Porque uma esperança bem guardada é como um céu nocturno sem estrelas. Guarda-as para a orientação própria. Uma esperança partilhada é uma impossibilidade ontológica. Só a alma individual se orienta na escuridão e no inaudível. Nessas condições, ela nada podia comunicar que fosse visível e escutável aos que se crêem não ser surdos nem mudos.
Adentrando-se na voracidade mais audível do vento, na sua expressão não só mais intensa como rápida, diríamos na sua irritação suprema, a mulher sentiu uma breve e suave comichão nas asas. Uma picada breve, mais sentida devido à ausência de penas, do que à agressividade da mesma. As suas asas acabavam de ser travadas, o seu ritmo abrandado pela presença, pela descoberta de uma estrela-do-mar. Mínima, dir-se-ia, imperceptível aos que são videntes. A estrela evidenciava algumas dessas características que os outros seres do mar e da praia revelavam: estava escondida, sobreposta, era irreconhecível. Não estava partida. Era um signo intacto.Um signo capaz de preencher a esperança desta mulher cega e sem logos.
Arquivou-a junto ao seio esquerdo. Como se acrescentasse o sentido ao som repetido pelo coração e, depois do que apareceu num rosto nocturno ser um esgar humano semelhante ao sorriso, retomou a marcha, o seu semi-voo na vasta e imponderável indefinição de mar e praia.
A razão pela qual a arquivou não é uma certeza. Ela reconheceu-a pelo toque, pelo contacto cego. Não por uma apurada inspecção, pela consulta de algum velho compêndio de papel ou mental. Arquivou-a no corpo porque o seu corpo arcaico, sobrevivente ao Éden pensado e não ao Éden criado, o seu corpo nem humano nem angélico, era o último vestígio de um pensamento de Deus, de um esboço provável para o que viria a ser a humanidade sem mal. Nesse sentido, o seu corpo seria mais antigo do que a biblioteca de Alexandria, e não guardava livros ou folhas de papel. O seu corpo guardava todos os pensamentos de Deus, antes da criação do homem, até ao homem, depois do Apocalipse. Ninguém o sabia. Nem ela.
Suavemente erguida, mas indireccionada ora pela rebentação das ondas, ora pela reverberação inquieta do vento, a mulher perdia as pequenas penas brancas da sua velhice incontável. Os que passarem na praia, depois dela tomá-las-ão, por penas de gaivotas desavindas, alvoraçadas na declaração da tempestade. Mas os que assim pensarem são apenas criaturas do mundo visível e ignorantes da convivência cósmica entre seres e entre tempo e eternidade, entre o humano e o divino.
Ora fosse por já ter perdido muitas, ora fosse por ser, inversamente aos humanos, nua, de novo a mulher foi acometida pela mesma dor na asa. Repetiu os mesmos gestos. Não por serem formas mecânicas de reacção, mas por serem intuições esperadas, preparadas por uma sabedoria em que a eternidade a educou. Desta vez, a estrela-do-mar, pequenina mas perfeita, foi deposta no seio direito. Sem certeza desta vez, como da primeira, o seu rosto inexpressivo como a noite sem luz, suspirou. O seu corpo despediu-se do cansaço. As suas asas fecharam-se, uniram-se não para a frente, como se rezando esperassem a aparição frontal de Deus, mas para trás. O vento cessou e Deus, sem mais motivo para se perpetuar irado, abraçou-a com cuidado. Naqueles cujo poder se pensa ilimitado, o abraço é sem força. É, afinal, a carícia na qual morreu todo o poder. O amor é, por isso, como suspeitámos, a carícia sem poder.
Nesse instante o seu rosto revelou-se. Os olhos sem cor tinham e davam a ver a extensão e o fundo sem fundo do mar, do seu nariz expulsavam-se as redolências do Paraíso e da sua boca entreaberta as palavras sagradas com que Adão nomeou os primeiros seres.
Deus perguntou-lhe como se sentia, que tinha guardado. Ela retirou com um zelo extremo as estrelas. Deus disse-lhe:
-Foram as primeiras que pensei.
Ela chorou para que as estrelas ganhassem a vida em que foram pensadas. Deus indagou com ternura:
- Como te sentes?
Ela respondeu:
-Bem. – Sentindo que os que esperam voltam sempre ao lugar de onde se perderam.
E Deus, assentindo, e recebendo da mão direita da mulher as duas estrelas confessou.
-Também espero, com alguma impaciência na turbulência do vento e do mar, que as outras criaturas que descobrem na sua humanidade a divindade, na arqueologia dos elementos, descubram os seres com que preenchi, sonhando, a Terra e as ideias com que organizei a alma dos homens.
E, depois sentou-se a soprar vento e enrolar ondas no mar.
Este é o "Jadis pur" com que agradeço e respondo por ontem e pelo tempo sem tempo ao Paulo Borges; esta é a asa com que agradeço o Mar do Nascimento, à asa da Águia e aos golpes de asa que a Ana Margarida deseja para o mundo; esta é a asa da Pomba com que um reencontro da infância do tempo, até ontem, me levou à Luíza, é a asa da Cinda que anda sempre no voo dos pássaros selvagens que atraem pela música os da mesma espécie, é a asa com que a Ana me abraça e a asa da Etty Hillesum que o Paulo Feitais me ofertou. Esta é a asa que consigo para os que são do mundo da Serpente e da Águia e que me chegou no entusiasmo do excerto de Pascal Quignard que ontem me foi deixado: "Dans quel temps le simple fait d'appeler faisait-il venir? C'est l'enfance. C'est l'enfance indifféremment animale ou humaine. C'est l'enfance quand elle est heureuse. Comment définir l'enfance heureuse? Le crie entraîne la mère. " in Abîmes, p.161
Este é a asa em que escondo o grito, le crie entraîne la mère.
Este é a asa em que escondo o grito, le crie entraîne la mère.
3 segredos?
ResponderEliminar:)
"Numa mulher assim não se pode falar de rosto".
A pena, símbolo do Espírito Santo. o vento também...
E Deus...
E a mulher-anjo...
Que dizer?
Há momentos da nossa vida em que o universo se nos revela. Em que as máscaras com que re-velamos o mundo se tornam translúcidas e o sentido nos preenche e nos revela vazios de tudo.
Búzios de capturar o rumor instante do infinito, conchas de esquecer deus.
E nesses momentos sabemos do amor apenas que é plenitude e da vida que é o susto de estarmos onde tudo está.
E se nos demorarmos nesse instante que nunca foi nem será, a morte, a separação sem mais, é o que está fora do mundo a servir de taça ao cheio que, convulso, vário e imensurável, não tem começo nem fim.
Como conter a tua (in)vocação nas cercaduras deste dia, o primeiro da última semana de aulas?
Pelo menos, vou ficar menos assolado pela tristeza quando tiver que fingir que aqueles olhos que me olharam durante quase nove meses vão apartar-se de mim e perder-se no mundo até ao final dos tempos.
Quem me dera que voassem. Que acreditassem nas asas que têm e não nos pesadelos que lhes meteram na cabeça nestes anos todos.
Mas enfim...
Beijo!
"Uma esperança partilhada é uma impossibilidade ontológica."
ResponderEliminarSerá?
"Quem me dera que voassem. Que acreditassem nas asas que têm e não nos pesadelos que lhes meteram na cabeça nestes anos todos."
ResponderEliminarÉ essa a chave para se ser um bom professor.
Sentir, ao menos que seja nessa forma de ternura nostáliga, o desejo que os alunos ganhem asas, voem e se tornem plenamente Humanos.
Recosto-me no momento. Viro-lhe as costas, isto é, dou-lhas. Que as receba em mãos, directas do coração. E sinta que o dorso fala da frente na mesma linguagem dos segredos. Para a escutar basta não saber. Que me traga o reencontro do peso, das vértebras, da onda pulsante do sopro e da sombra, e assim poder regressar à leveza…
ResponderEliminar… e ei-la, sem tardar, já no peito para a transparência.
Agora sim, Isabel, posso avançar nas dunas, e sentir-lhes no vento a voz que o Álva.ro ouvia num poço tapado. Como ele se desprendia na escuridão, penando um caminho lunático da luz… ...Avanço nas dunas em desvios para o Mar, eu e elas, e as conchas, e as penas, na erosão do caminhar, a sermos sempre diferentes e a sempre regressarmos ao indiferenciável. Gostei tanto das algumas inclinadas, sorrio-te sem querer, inclinada à porção mágica do quase inexistente, letrinhas, como dizes,de um código de outrora, legível à primeira vista.
Fiquei com o fio de ouro nas mãos. O toque filosofal.
Abraço-te.
Acender estrelas nas asas é dar ao mar a dimensão do infinito céu. E, nesse instante, olhar o mundo é como riscar um novo fogo. Nem antes nem depois da chama. No puro instante da sua aparição é que o mundo é criado. Mas a saudade o acompanha e a recolha das estrelas já são as mãos erguidas em memória a um instante esterno.
ResponderEliminarOlá Ana,
ResponderEliminar1. Sim, penso que sim. Se por esperança entendermos o mais individual, e se o mais individual, de si e de único, for incomunicável como o pensa Wittengstein e eu com ele. O mais privado é intraduzível e fora da linguagem e do ser. Felizmente! Prefiro sempre pensar que para além de ser, há na verdadeira potência a possibilidade de não ser. Assim, há coisas que não sou, podendo sê-las. Mas não as actualizo. A esperança que é secreta e para o ser, sem deixar de o ser não quero que se realize fora do seu mundo numenal, onírico...o que se lhe quiser chamar. Essa é, quanto a mim, a grande fonte da linguagem e das Línguas. O intraduzível, o intangível. Só daí nasce a poesia.
Não será que esperança, o que se espera é apenas e só segredo e indizibilidade?! A Esperança foi a única que ficou fechada na caixa, não conheceu o seu devir no mundo.
2. Mas também creio que sim, que percebo a tua pergunta: claro que há projectos e modos de acção que podemos partilhar para mudar o mundo. Ou, sobretudo, que geram em nós a ilusão de mudar o mundo. Mas o mundo não muda...é só uma ilusão!Mas é uma ilusão geradora de...voos, penso, e partilho isso com o Paulo Feitais: acredito que vale a pensa ensinar para e porque partilho a esperança de que vão reconhecer em si, os alunos, a grande felicidade de terem sido esperados na Terra e serem manifestamente capazes do sorriso que rasgue a sua interioridade para o infinito e para fora dos estreitos e pobres padrões em que os querem formatar e a que os reduzem. Há seres lindos e incomensuráveis em beleza, em bondade, em justiça, em inteligência, em humildade, em criatividade, em fraternidade com o mundo à nossa frente. Em nome desses, toda a esperança partilhada se cumpra!Se expresse se realize.
Um grande sorriso e obrigada pela pergunta
Almas bonitas que por aqui andam !...
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