Leitora
Abro os livros que escreveste e tenho as pregas do teu sorriso e das tuas mãos entre as minhas. Leio-te com bondade e com amor. Sinto o calor que trazes à escrita pela proximidade que tens com a pira onde ardem os imortais. Tu, que os conheceste por intuição e por seres a mais inocente das leitoras, tu que escreveste em intertexto e para eles, em inocência e devir, tu que irradiavas a beleza última da humildade e habitavas nas árvores e nos quintais junto às fontes e às vezes cobrias os ombros com um casaco castanho que a terra te emprestava como se tudo em ti fosse marca dessa concessão pela tua passagem entre os seres, digo, com esse casaco cobrias o pudor de passar por entre humanos, tu não morreste! Tu que nunca falaste para nós, os vivos, ruidosos e apressados, e sempre falaste com os mortos e com as suas sombras errantes e habitavas o seu reino, eras com eles Ideia e fazias do tempo um círculo em que se entretinham na descoberta do centro e vocês eram o centro, tu não morreste! Tu, tão leve por entre a matéria suspeita da literatura, inventaste as nuvens na continuidade azul do texto, por tudo em ti ser fundido na água condensada da escrita, e soubeste – oh…mulher de simplicidade desarmante - traçar contornos ainda mais imateriais do que as palavras: inventaste o traço porque para ti, pintora de nuvens, a escrita é a comunidade das Ideias e dos idiotas. Desses que dão até o que ainda estão a procurar para criar o mundo, para o recriar desde o Longínquo e desde Outrora. Tu, que não eras humana, trais hoje a nossa ilusão de que o eras, e dizem-me que não podes escrever mais, mas que importa (!), se tenho as tuas páginas entre os dedos e o teu corpo é como o corpo da escrita: Ideia e fumo e tu acendes a mais violenta vontade das fontes e das lágrimas no meu peito e na minha mão… Tu não estás morta! Tu, cadenciada de vento e ondas, eras a presença mais sublime dos elementos indeterminados e profundos. Nem sequer cabias nas imagens e não as criavas: a tua escrita é uma composição de sons e sons, por onde andamos perdidos para atravessar a paisagem por onde descobriste a passagem. Tu, que não eras uma escritora nem escrevias, eras a Abertura, a morada dos que passam e estão em trânsito entre aqui e nenhures. És com eles agora nesse não-lugar e nesse não-tempo, mas hoje mesmo estarás face a face com os Amigos e as Amigas e receberás na despedida nocturna uma elegia rilkeana e, ou holderliniana que entretanto eles compuseram para te embalar do cansaço que foi encontrares o difícil e o belo, e com que em silêncio te amámos e guardamos no mais fundo da alma.
Neste dia em que não morreste, visto a minha alma de branco e imploro aos do meu tempo que tenham, como fizeste uma das tuas personagens dizer, a generosidade da memória e que aí te inscrevam como a mais indelével e a maior borboleta que escreveu na nossa língua. Tu, que tinhas uma alma azul e divagavas nas florestas mais inóspitas onde se escondem os tesouros mais raros da matéria e dos sons, tu não estás morta! Na ascese, a tua alma sorrirá, porque te serão mais próximos os sons do que dizem com mais justiça o teu nome, Maria Gabriela LLansol.
Lacrimosa
Partes no Mar(ço) porque vais chegar nas ondas e com ritmo junto daqueles que são do ritmo e a quem ofereceste uma arte: a de entender com o coração o que escreveram sob o efeito de uma visão. Que foram, Regard, Parole et Musique para dentro da tua alma. Não vou parar de te chorar: acredito que as lágrimas me emprestarão o cristal com que aprenderei a arte de ler na transparência o que só pudeste escrever sob o manto do difícil e do belo. Porque foste a mais alada das escritoras e isto mais não é do que um beijo dado, não mais tarde, mas tarde de mais. Mas mando-o com as mãos juntas para a Terra que te cobrirá de flores e outros hóspedes que sabem o requiem que não sei compor.
Abro os livros que escreveste e tenho as pregas do teu sorriso e das tuas mãos entre as minhas. Leio-te com bondade e com amor. Sinto o calor que trazes à escrita pela proximidade que tens com a pira onde ardem os imortais. Tu, que os conheceste por intuição e por seres a mais inocente das leitoras, tu que escreveste em intertexto e para eles, em inocência e devir, tu que irradiavas a beleza última da humildade e habitavas nas árvores e nos quintais junto às fontes e às vezes cobrias os ombros com um casaco castanho que a terra te emprestava como se tudo em ti fosse marca dessa concessão pela tua passagem entre os seres, digo, com esse casaco cobrias o pudor de passar por entre humanos, tu não morreste! Tu que nunca falaste para nós, os vivos, ruidosos e apressados, e sempre falaste com os mortos e com as suas sombras errantes e habitavas o seu reino, eras com eles Ideia e fazias do tempo um círculo em que se entretinham na descoberta do centro e vocês eram o centro, tu não morreste! Tu, tão leve por entre a matéria suspeita da literatura, inventaste as nuvens na continuidade azul do texto, por tudo em ti ser fundido na água condensada da escrita, e soubeste – oh…mulher de simplicidade desarmante - traçar contornos ainda mais imateriais do que as palavras: inventaste o traço porque para ti, pintora de nuvens, a escrita é a comunidade das Ideias e dos idiotas. Desses que dão até o que ainda estão a procurar para criar o mundo, para o recriar desde o Longínquo e desde Outrora. Tu, que não eras humana, trais hoje a nossa ilusão de que o eras, e dizem-me que não podes escrever mais, mas que importa (!), se tenho as tuas páginas entre os dedos e o teu corpo é como o corpo da escrita: Ideia e fumo e tu acendes a mais violenta vontade das fontes e das lágrimas no meu peito e na minha mão… Tu não estás morta! Tu, cadenciada de vento e ondas, eras a presença mais sublime dos elementos indeterminados e profundos. Nem sequer cabias nas imagens e não as criavas: a tua escrita é uma composição de sons e sons, por onde andamos perdidos para atravessar a paisagem por onde descobriste a passagem. Tu, que não eras uma escritora nem escrevias, eras a Abertura, a morada dos que passam e estão em trânsito entre aqui e nenhures. És com eles agora nesse não-lugar e nesse não-tempo, mas hoje mesmo estarás face a face com os Amigos e as Amigas e receberás na despedida nocturna uma elegia rilkeana e, ou holderliniana que entretanto eles compuseram para te embalar do cansaço que foi encontrares o difícil e o belo, e com que em silêncio te amámos e guardamos no mais fundo da alma.
Neste dia em que não morreste, visto a minha alma de branco e imploro aos do meu tempo que tenham, como fizeste uma das tuas personagens dizer, a generosidade da memória e que aí te inscrevam como a mais indelével e a maior borboleta que escreveu na nossa língua. Tu, que tinhas uma alma azul e divagavas nas florestas mais inóspitas onde se escondem os tesouros mais raros da matéria e dos sons, tu não estás morta! Na ascese, a tua alma sorrirá, porque te serão mais próximos os sons do que dizem com mais justiça o teu nome, Maria Gabriela LLansol.
Lacrimosa
Partes no Mar(ço) porque vais chegar nas ondas e com ritmo junto daqueles que são do ritmo e a quem ofereceste uma arte: a de entender com o coração o que escreveram sob o efeito de uma visão. Que foram, Regard, Parole et Musique para dentro da tua alma. Não vou parar de te chorar: acredito que as lágrimas me emprestarão o cristal com que aprenderei a arte de ler na transparência o que só pudeste escrever sob o manto do difícil e do belo. Porque foste a mais alada das escritoras e isto mais não é do que um beijo dado, não mais tarde, mas tarde de mais. Mas mando-o com as mãos juntas para a Terra que te cobrirá de flores e outros hóspedes que sabem o requiem que não sei compor.
Grato, Isabel, por haver dado palavras, tão belas e fundas, ao que nem de perto saberia dizer ! Estejamos com ela na Luz além de vida e morte.
ResponderEliminara obra dela é uma presença terrífica na escrita portuguesa. Llansol era uma grande leitora de misticismo, e foi a única (que eu conheço na literatura portuguesa)a referenciar-se a Hadewijch.
ResponderEliminarvou sentir a falta dela. Mas, felizmente, deixou-nos bastante. Há que (re)ler.
a obra dela é uma presença terrífica na escrita portuguesa. Llansol era uma grande leitora de misticismo, e foi a única (que eu conheço na literatura portuguesa)a referenciar-se a Hadewijch.
ResponderEliminarvou sentir a falta dela. Mas, felizmente, deixou-nos bastante. Há que (re)ler.
Nós, os mortos, que palavras teremos para a Viva !?
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