domingo, 23 de março de 2008

Quase todos se acomodam

Quase todos se acomodam: os que buscam despertar tornam-se religiosos, os visionários devêm artistas, os poetas escritores, os revolucionários políticos, eu crítico e até tu leitor…

48 comentários:

  1. Todos os papeis que assumimos, mais cedo ou maid tarde, se tornam camisas de força que podem acabar por nos asfixiar. Há que ter a lucidez e a coragem de os colocar sempre em causa.

    ResponderEliminar
  2. Por fim, limitamo-nos a ser humanos - olhamos para a casca de carne ao espelho, os que há e os do Outro, e até nos sentimos confortáveis...

    Abraço.

    «Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.»

    J. L. Borges

    ResponderEliminar
  3. Lembrança vaga dos passos no deserto

    ResponderEliminar
  4. Até eu torno ao que não sou, para me lembrar de como era...

    ResponderEliminar
  5. Há sempre uma pequena aldeia gaulesa que resiste, algures...

    ResponderEliminar
  6. Os que buscam despertar a si próprios ou os outros?
    Os visionários de qual realidade? Os poetas não escrevem. Os revolucionários de que ponto da evolução?
    Críticos de quê?
    Quase todos os que se acomodam não se incomodam.

    ResponderEliminar
  7. O que quero dizer é que os poetas, escrevendo ou não, se degradam em escritores. E eu em crítico...
    Despertar é sem eu nem outros, para os visionários não há realidade e na revolução finda a evolução (que nunca há).

    ResponderEliminar
  8. De facto, tudo o que é deixado entregue a si mesmo, sem ser cuidado, acaba por se degradar. É uma "lei" física que vale para a natureza humana, para as coisas com duração e para os desejos limitados do ser humano.
    A sociedade organizada em instiutições formais e não formais, acaba por devorar-nos a todos...
    Existir ou não existir nem sempre é uma opção...

    ResponderEliminar
  9. A pior das acomodações é ser...

    ResponderEliminar
  10. Ser. Não sei se "a pior das acomodações"... Talvez das constatações mais inquietantes...

    "Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." F.Pessoa

    ResponderEliminar
  11. Sim. Como posso deixar de "Ser" ? Estou aqui ... vou sendo alguma coisa mesmo que não queira e disso tenha consciência ... sou um produto de mim, bem sei. Mas ...

    ResponderEliminar
  12. "Mas..."

    Oremos.

    "Nossa Senhora
    das coisas impossíveis que procuramos em vão,
    Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
    Dos propósitos que nos acariciam
    Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
    Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
    E que doem por sabermos que nunca os realizaremos..."

    "Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!" FPessoa

    ResponderEliminar
  13. Pois, continuemos orando...

    "Vem, e embala-nos,
    Vem e afaga-nos,
    Beija-nos silenciosamente na fronte, que não saibamos que nos beijam
    Senão por uma diferença na alma
    E um vago soluço partindo melodiosamente
    Do antiquíssimo de nós
    Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
    Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
    Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida."

    A. Campos

    ResponderEliminar
  14. "O que me dói não é
    O que há no coração
    Mas essas coisas lindas
    Que nunca existirão...

    São as formas sem forma
    Que passam sem que a dor
    As possa conhecer
    Ou as sonhar o amor.

    São como se a tristeza
    Fosse árvore e, uma a uma,
    Caíssem suas folhas
    Entre o vestígio e a bruma."

    FPessoa (agora, ele mesmo)

    ResponderEliminar
  15. A ti "Oriana" ...

    "Sorriso audível das folhas
    Não és mais que a brisa ali
    Se eu te olho e tu me olhas,
    Quem primeiro é que sorri ?
    O primeiro a sorrir ri.

    Ri e olha de repente
    Para fins de não olhar
    Para onde nas folhas sente
    O som do vento a passar
    Tudo é vento e disfarçar.

    Mas o olhar, de estar olhando
    Onde não olha, voltou
    E estamos os dois falando
    O que se não conversou
    Isto acaba ou começou ?"

    F. Pessoa

    ResponderEliminar
  16. :)
    "Com duas mãos - o Acto e o Destino-
    Desvendamos. No mesmo gesto, ao céu
    Uma ergue o facho trémulo e divino
    E a outra afasta o véu."

    F. Pessoa

    ResponderEliminar
  17. "Fosse a hora que haver ou a que havia
    A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
    Foi alma a Ciência e corpo a ousadia
    Da mão que desvendou."

    F. Pessoa

    ResponderEliminar
  18. "Todo o começo é involuntário.
    Deus é o agente.
    O herói a si assiste, vário
    E inconsciente.

    À espada em tuas mãos achada
    Teu olhar desce.
    "Que farei eu com esta espada?"

    Ergueste-a e fez-se."

    F. Pessoa

    ResponderEliminar
  19. Que digo ? Que sou ? Das duas uma: quem uma duas ficou ?

    ResponderEliminar
  20. Bom Dia Oriana !
    Ainda estás por aqui ?


    "Pai, foste cavaleiro.
    Hoje a vigília é nossa.
    Dá-nos o exemplo inteiro
    E a tua inteira força !

    Dá, contra a hora em que, errada,
    Novos infiéis vençam,
    A benção como espada,
    A espada como benção !"

    F. Pessoa

    ResponderEliminar
  21. Bom dia! Ainda estou...

    Ah! A estética da coerência... Ser só uma...

    "Eu não sei como isso se faz."

    "Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
    Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
    Sou isso, enfim..."

    "Ainda assim, sou alguém."

    "Eu, eu mesmo... (...)
    Eu..."

    FPessoa

    ResponderEliminar
  22. Ah ! Ainda estás ...

    "Quantas horas tenho passado em convívio secreto com a idéia de si! Temo-nos amado tanto, dentro dos meus sonhos! ..." B.Soares

    "Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
    Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
    É um universo barato." A.Campos

    "Ainda assim, sou alguém.
    Sou o Descobridor da Natureza.
    Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
    Trago ao Universo um novo Universo
    Porque trago ao Universo ele-próprio." A.Caeiro

    "Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
    Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
    Arredores irregulares da minha emoção sincera,
    Sou eu aqui em mim, sou eu.
    Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
    Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
    Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade de mim."

    F. Pessoa

    ResponderEliminar
  23. Não há maneira de fugir ao ser e à palavra que o diz. Nenhuma religião ou ópio desvendará o milagre de ser. Pessoa tentou...esvaziou-se, enchendo-se de muitos, para ver se a dor parava, para ver se pensar parava...Andavam todos a bailar na sua cabeça(na nossa cabeça)... e nunca deixou de ser... só a pequenos intervalos, mas esses também ardiam na febre e no absinto de tudo ser...Sofreu menos, sofreu mais?...(Nalguns momentos de pura lucidez, vejo cristo na cruz, sorrir da evidência da morte)...Porque se acomodou Fernando Pessoa a ser? Não se incomodando?Incomodando-se? Conformando-se e desconformando-se? construindo-se e desconstruindo-se? Não há receitas... e ainda bem. Cada um é um a sós, mesmo conversando com os seus fantasmas, ou deixando-os morrer de inanição.«O maestro sacode a batuta». É um teatro, um baile de máscaras que dá para todos os atlânticos da alma... É uma cena sonhada por um outro sonhador a Ser... Não tem importância porque tudo deixa, breve, de o ser...Mas o ser que não vemos nem sabeos o que é, não pára. Somos muitos, somos milhões a ser e a imaginarcomo será verdadeiramente ser, ou de que ser falamos, quando falamos...ou mesmo quando estamos calados. - Fausto, não há maneira de fugir ao conhecimento, o amor, à vida, ao prazer, há dor. Álvaro de Campos sabia-o e mesmo do alto da sua arrogância de ser incómodo, como se acomodou rapidamente à doce vida de aposentado... E continuou a haver o ser na língua que o diz, no modo como o diz.
    Saber demais, ser demais/ É o mesmo que estar muito tempo quieto/ no mesmo lugar/ e não ter vontade de sair de lá/ Nem sequer na ideia/Como uma mão dormente... E mesmo asssim, a ser plenamente, miseravelmente, em grandeza de alma, em ridículo de si. Assim somos nós todos os que temos febre e não bebemos absinto, porque já não o há de qualidade... daquele que entra na garganta como uma bola de fogo e nos torna religiosos, visionários, artistas, poetas, escritores, políticos, críticos, leitores...budistas de todas as vias; fantasmas de todas as existências e inexistências... todos todos... como uma imensa bola de fogo a ser... a pensar ser a cada gesto,a degradação e o fim de cada gesto...parece que o ser não se desmancha nem se desmonta e é, mesmo como Caeiro vê a coisa no retrato...fenómeno desligado de si mas que o pastor do ser guarda em pensamento...Não há remédio para o ser... ele não deixa prisionar-se, nem definir-se, nem limitar-se...
    E quando fazemos um gesto... esvoçamos uma ideia... escrevemos uma palavra, por mais fraca de luz, ou iluminada por dentro que seja...unca deixamos de ser repetição do mesmo. Viajantes numa roda que gira sempre a ser e a não ser.Ela mesma acomodada a ser roda, porque esse é o seu modo de ser.Não há nada a fazer. Há ser.

    «Oriana» e «inquieta» a serem duas
    com as máscaras de Pessoa... a ser muitos a ser ao mesmo tempo.Sejam!

    ResponderEliminar
  24. Somos duas, caro Obscuro Pensador !

    Espero desassossegadamente por Oriana ...

    "E lânguida e triste a música rompe ...

    Lembra-me a minha infância, aquele dia
    Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
    Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
    O deslizar dum cão verde, e do outro lado
    Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ... "

    ResponderEliminar
  25. E o que dizem as vossas palavras, para além dos diálogos pessoanos?
    Qual é a vossa voz?

    ResponderEliminar
  26. Não tenho voz Caro Obscuro !
    Acomodada só empresto a voz...

    " Como uma voz de fonte que cessasse
    (E uns para os outros nossos vãos olhares
    Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
    De sonho, a voz que do meu tédio nasce

    Parou... Apareceu já sem disfarce
    De música longínqua, asas nos ares,
    O mistério silente como os mares,
    Quando morreu o vento e a calma pasce..."

    F. Pessoa

    ResponderEliminar
  27. Calha bem, porque eu não tenho boca, só voz...:)

    ResponderEliminar
  28. Obscuro pareces não passar de um acomodado.....

    É fácil ter voz sem boca, sem rosto....

    ResponderEliminar
  29. "Nunca tive alguém a quem pudesse chamar Mestre. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou o caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceram para que me iluminassem a alma." Pessoa

    Que interessa de que voz venho? Escolhi Pessoa por cantar "a cantiga de Infinito numa capoeira".
    Indiferente? Só por fora.

    Não passamos de esboços, de rabiscos aleatórios que não são mais do que "rabo para aquém do lagarto remexidamente" a tentar febrilmente redesenhar a existência dentro da ilusão de monólogos a vários por entre espelhos penhorados e palavras emprestadas...

    Eu que nem sou de Filosofia, decidi parar nesta "terra de ninguém" e espreitar-vos, espreitar-me... Levo acrescentado o meu álbum de viagens com mais umas quantas fotografias de fantasmas a eternizar a legenda:
    "A vida é a busca do impossível através do inútil."

    ResponderEliminar
  30. Essas palavras da boca de um anónimo...?
    Onde está essa boca?... onde está esse rosto?
    A tua voz, ouvi-a...
    Mas para dizer o quê, exactamente?
    «É fácil ter voz...» Porque não experimentas?

    ResponderEliminar
  31. E o amor, meus amigos, e o amor? O entregar-se, o esquecer-se de si mesmo no outro?

    ResponderEliminar
  32. Oriana,
    E escolheste muito bem!:)

    ResponderEliminar
  33. Olá, Ana Margarida,

    «E o amor...»
    Tem boca e voz, alma e corpo, mas só alguns o sentem e o sabem dar e receber...

    ResponderEliminar
  34. Para ti, Obscuro:)

    "Mas fala tu, espectro vagabundo,
    Ó sombra estranha!
    Que a tua voz abale este profundo
    Silêncio, que me cerca e me acompanha!
    Eleva a tua voz. Que possa ouvir-se
    Em mar e serra.
    Que, de eco em eco, vá repercutir-se
    Pela formosa imperfeição da Terra..."

    Teixeira de Pascoaes

    ResponderEliminar
  35. Retribuo:)

    Olho os astros e o meu olhar de terra
    Faz sementeira de asas no polimento escuro.
    Que palavra de voo ágil e leveza eterna
    Dará no chão do céu reflexos de poema?




    A quem importa
    O estremecimento que sentimos
    Diante da luz viva
    Que habita no verde de uma folha de árvore?
    Para o pensamento, não se despem os ramos.
    A árvore é a ciência que nos traz vivos
    Os ramos do Inverno que nos chega à lareira,
    À hora do cansaço animal.
    Estamos prontos para o sono.
    Para a noite, guardamos o tronco maior,
    Para contar a história que alguém sonhou por nós.
    «Era uma vez uma princesa que vivia
    Na casca de uma árvore branca e fria…»
    E a noite adormeceu, enfim, mesmo sem nós,
    Cansada de ser vento, a árvore verde,
    Chiou a noite inteira a dureza dos nós.

    ResponderEliminar
  36. Deixo-vos porque ...

    "Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    "Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?"

    "Serei sempre o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga de Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado."

    "Fiz de mim o que não soube,
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara."

    Álvaro de Campos

    ResponderEliminar
  37. Inquieta, não te retires, ainda...
    Ouve a pontuação:

    Pontilemas

    Reticências


    Não nomeies nem prendas o pensamento
    Apenas ao rumor de uma frase…
    Deixa que te leve o vento de uma ideia
    Até ao coração oculto na palavra,
    Até essa ilha dobrada sobre uma palmeira
    Sob um céu de chumbo amarelado;
    Metáfora suspensa no seu voo,
    Como uma águia de asas abertas
    Vigia o estrume da dor
    Que a terra guarda no seu peito nu.

    Não te canses nem fales alto,
    Guarda a mente livre
    Para quando tiveres de enfrentar
    A suspensão do fôlego
    Que o silêncio acaricia na sua morna boca.


    Ponto Final


    Não existe senão na circunstância
    De uma mudez sábia.
    Ponto de silêncio
    Provocando o destino
    Temporal da fala,
    O limite dos dois rios
    Por onde circula a alma humana.
    Branco ou negro sobre o pano do tempo
    O ponto é a espiral onde todos giramos.
    Não existe final onde o ponto se abrigue
    Só passagens,
    Sinais e corredores de luz branca.

    Onde o ponto crepita
    É que as palavras ardem.


    Vírgula


    Respira sobre a página
    A pausa do poema,
    A superfície lisa da palavra,
    Redonda, na sua ontologia universal
    Ou antes maleável como a água cantante
    Sobre a face azulada dos mares
    Respiração profunda e breve,
    O retomar da voz.
    Como o tempo flui
    Inexorável e eterno,
    Como o ritmo escondido
    De um poderoso sopro.

    ...

    ResponderEliminar
  38. "Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.

    Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objecto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém. Há, algures, um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida."

    "Estou liberto e perdido."
    Bernardo Soares

    ResponderEliminar
  39. ...
    Quando, entre as árvores,
    O dia empurra o baloiço do sol
    A minha tristeza põe-se, naturalmente,
    A ocidente.
    Quando ainda são verdes os nós e as nervuras
    Da árvore do dia.

    A luz amarela do Verão
    Cobre de pó de oiro
    As paredes brancas da casa.
    À volta do limoeiro
    Os insectos enchem o ar
    Um ou outro pássaro
    Já roça as suas asas na brisa fresca
    Da noite nascente.

    A minha vida devia valer só isto:
    Um balançar entre um dia e outro dia
    No baloiço das árvores
    Que giram à roda do Sol.


    Noite


    Fecho as portas à noite
    E dou ao vento a distância.
    A casa habita a intimidade de um gesto.
    Um passo à roda do jardim
    E um gesto de olhar
    Vê se as plantas têm no verde
    A água que o sol parece pedir.


    Fecho com cuidado maternal o grito
    Dentro das persianas;
    Ato à roda dos cabelos da noite
    Uma grinalda de estrelas;
    Uma franja de riso no negro do céu:
    Fecho, com cuidado, o tempo,
    Dou um nó ao dia, e atiro-o,
    Como uma bola em fogo pela encosta abaixo.

    Peço à noite, a dos gestos sossegados,
    A serva humilde,
    Que leve nos cabelos a poeira de luz
    Que ilumina a janela do outro lado.
    Quero o silêncio até onde se ouve
    O último som de um pássaro mais afoito.

    Fecho as janelas e a luz continua sol dentro da casa.
    Faço baixar a alma das coisas
    Até ao coração da prece.

    Ó noite, mágica princesa, fada do oriente!
    Ó melodia adormecida nos meus ouvidos!
    Ó mão que afaga, ó colo que se oferece,
    Ó noite equilibrista do mundo
    Na luz quente de um círculo de lona
    Uma campânula, uma bolha de água morna
    A querer fugir pela janela.

    Noite, amante, irmã, riso dos meus lábios!
    Curva do meu sorriso, alma do meu mundo!
    Enlaça-me, como uma brisa leve nos cabelos
    Uma brisa morna que traz o sal para ao pé do rio
    O rio que a noite interrompe no seu sábio deter.
    Fecha, ó noite, o meu coração às coisas que se agitam
    Senhora mãe da paz, abre os teus braços
    Ao meu sonho acordado.

    Devolve-me ao meu país do mar
    E deixa-me dormir no coração das ondas
    Que embalam o meu quarto
    E o levam para o bojo dos navios;
    E o empurram para a pedra lisa de uma ilha
    Tão distante da geografia dos homens
    Que a fala que se escuta tem o alfabeto
    Mágico das pedras falantes;
    Dos risos que as deusas oferecem aos anjos.

    Depois, abre as portas ao mar atormentado
    E deixa que a chuva caia dos meus olhos
    Até ser de novo dia
    Até que a água toda seque
    E eu que já lá nem estou
    Sinta isto por um vinco de lua no lençol.

    ResponderEliminar
  40. Caro Obscuro,

    "...
    Em aberto, em suspenso
    Fica tudo o que digo.

    E também o que faço é reticente...

    .
    Depois de mim maiúscula
    Ou espaço em branco
    Contra o qual defendo os textos

    ,
    Quando estou mal disposta
    (E estou-o muitas vezes...)
    Mudo o sentido às frases,
    Complico tudo...

    !
    Não abuses de mim !

    ?
    Serás capaz de responder a tudo o que pergunto ?"

    Alexandre O'Neill

    Pronto.
    Quantas falam contigo se são reticências ?

    ResponderEliminar
  41. Oriana,

    "Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me aprofundando-me. O mais pequeno episódio - uma alteração saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro ou os passos de quem a diz juntos aos de quem a deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar - todas estas coisas, que me não pertencem, prendem-me a meditação sensível com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida.
    Vivo de impressões que me não pertencem, perdulário de renúncias, outro no modo como sou eu."

    Bernardo Soares

    ResponderEliminar
  42. Adorei o «pronto»:))
    Belos diálogos

    P(r)onto de Interrogação



    Interrogamos desde que existimos
    E é sempre a mesma a pergunta:
    “O que é existir?”
    E é sempre o mesmo eco/resposta:
    “O que é existir?
    “O que é existir!?...”
    Existimos e perguntamos.
    Ao mar, perguntamos porque respira fundo a maré que enche
    E não se apaga;
    À noite, perguntamos porque cobre as coisas de irrealidade
    E as afaga;
    Ao Sol, não perguntamos nada
    Não é preciso.

    ResponderEliminar
  43. "Lá fora estava já completamente escuro. (...) Reinava um grande silêncio. Bastian contemplou fixamente as chamas das velas.
    Mas, de repente, estremeceu, porque o soalho tinha rangido.
    Pareceu-lhe que ouvia alguém a respirar. Susteve o fôlego e pôs-se à escuta. Para além do pequeno círculo de luz difundido pelas velas, o enorme sótão estava agora envolto em trevas.
    Não se ouviam passos leves na escada? E o fecho da porta do sótão não se movera lentamente?
    O soalho rangeu novamente."

    "O relógio da torre bateu as 10 horas."

    Michael Ende

    ResponderEliminar
  44. Bom Dia Oriana !
    Não li o livro. Talvez possa falar dele mais tarde se, hoje, o conseguir roubar tal como Bastian ... Essa ideia de roubar livros é fascinante ... tem um não sei quê de mistério ... risos ...
    Ah ! Queres saber se roubava livros ? !
    Não. Não podia. Não tinha onde os esconder ... raramente me "acomodava" num casaco ... Agora, com estas modernices electrónicas o Bastian estava arrumado ... risos ... perde-se todo o mistério toda a "Fantasia".

    Obrigada pela dica, Oriana.

    ResponderEliminar
  45. Bom Dia Obscuro !

    Continua a escrever ... gosto de te ler. Sempre.

    "Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
    Não: vou existir. Arre! vou existir.
    E-xis-tir...
    E-xis-tir...
    Dêem-me de beber, que não tenho sede!"

    Álvaro de Campos

    ResponderEliminar
  46. Oriana,

    Sejamos a Imperatriz Criança ! Sempre !

    Vi o filme há já alguns anos ... mas hei-de ler o livro, um dia ... se o conseguir roubar ... risos ...

    ResponderEliminar
  47. Risos? Contra quem?

    "Depus a máscara e vi-me ao espelho.
    Era a criança de há quantos anos.
    Não tinha mudado nada...
    É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
    É-se sempre a criança,
    O passado que foi
    A criança.
    Depus a máscara, e tornei a pô-la.
    Assim é melhor,
    Assim sem a máscara.
    E volto à personalidade como a um términus de linha."

    A. de Campos

    ResponderEliminar
  48. Risos por roubar a voz que habita os livros ... A voz que o Ricardo escuta, a voz dos deuses

    "Tão cedo passa tudo quanto passa !
    Morre tão jovem ante os deuses quanto
    Morre! Tudo é tão pouco!
    Nada se sabe, tudo se imagina.
    Circunda-te de rosas, ama, bebe
    E cala. O mais é nada.

    Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
    O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
    Já que o não sou por tempo,
    Seja eu jovem por erro.
    Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
    Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
    É verdadeira. Aceito,
    Cerro olhos: é bastante.
    Que mais quero?"

    Ricardo Reis

    ResponderEliminar