quinta-feira, 6 de março de 2008

Cartas de Amor ao Século XXI: III - Baptismos de Sangue

Como é possível viver quando se dá de caras com o Mal, o supremo Mal, em todo o seu poder, eficácia e suprema brutalidade?

Volto de novo do cinema. Desta vez de ver a abertura do Festival de Cinema Brasileiro aqui em Providence. O filme que abriu o festival foi "Baptismo de Sangue", baseado no livro com o mesmo título de Frei Betto (http://www.batismodesangue.com.br/).

O livro e o filme são uma autobiografia que narra as experiências de Frei Betto e de vários outros seus Irmãos Dominicanos na resistência contra a ditadura no Brasil. Aviso-vos já que o filme é brutal, supremamente brutal, um retrato acabado de como o Mal e a violência por vezes parecem tão mais poderosos, céleres e eficazes do que o Bem.

É um filme ao qual custa assistir. Principalmente porque acaba mal. O personagem central do filme, Frei Tito, é sistematicamente destruido, no corpo e principalmente no espírito, pela máquina de tortura do regime ditatorial Brasileiro. O resultado é que Frei Tito, como muitos resistentes á ditadura que foram torturados, perde toda a fé em si mesmo, em Deus e no mundo. Tudo lhe aparece como o supremo absurdo no qual a única lei é a da brutalidade do poder. Tito acaba por cair numa depressão profunda que o leva ao suicídio.

Algumas cenas são dignas dos piores filmes de horror ao estilo de Kubrick ou Haneke. Ainda por cima porque se baseiam em factos verídicos. Há imagens muito explicitas do que era a tortura no "pau-de-arara" e na cadeira eléctrica. Tenho amigos muito queridos no Brasil que passaram por estas torturas e que continuam vivos, actuantes e capazes de relacionar com os outros pelo único facto de que têm estado num processo terapêutico desde que saíram da prisão. Mesmo assim ainda carregam, no corpo e no espírito, as chagas abertas do horror que viveram. Chagas estas que nunca se hão de fechar completamente. Já foi perturbante ouvir os relatos dos meus amigos. Mais perturbante ainda é ver a representação fiel desse horror em filme.

O pior de tudo nem eram os electrochoques, as queimaduras de cigarro, a brutal violação das mulheres ou o uso de cacetetes. O pior de tudo era a destruição sitemática da personalidade, de uma forma em que os torturadores incarnavam os seres ou os símbolos que eram mais queridos e sagrados aos torturados e assim os torturavam, dando a ideia de que nada nem ninguém no Universo se importa com eles, que o Amor, o Carinho ou a Fé não fazem sentido pois a realidade profunda do Universo é o poder do mais forte.

A cena que mais me chocou foi aquela em que um dos torturadores se vestiu de padre para fazer que ia dar a comunhão a Frei Tito. No entanto, essa comunhão não era mais do que abrir-lhe a boca para lhe administrar choques eléctricos fortíssimos na língua - sim, na língua! O que fez com que Frei Tito nunca mais conseguisse receber a comunhão.

Mais uma vez meditei sobre a natureza do Mal. É incrível: Construir alguma coisa demora tanto tempo ... Horas, dias, anos ... É preciso tal investimento de tempo, recursos e energia para construir alguma coisa que ... paff ... pode ser destruida em menos de um segundo. Julgo que deve demorar várias horas para construir um copo de vidro, mas no entanto ... paff ... é só descuidarmo-nos que esse copo se parte numa fracção de segundo. Demora-se meses, senão anos a construir uma casa, que pode ser destruída em minutos num incêndio ou desastre natural. É preciso 20 anos ou mais para construir uma personalidade humana, que pode facilmente ser destruída numa hora de tortura.

Mais perturbante ainda era observar o rosto dos torturadores, o quanto o clarão dos seus olhos e o afluxo de sangue e suor aos seus rostos se assemelhava ao clarão orgásmico a que o Casto Severo se referiu no seu último post ... Que por sua vez se parecia tanto com o clarão, o respirar ofegante e a vermelhidão do rosto dos torturados ...

Ah, a volupia do poder absoluto ... Do poder absoluto de destruir ... Ainda mais do que matar ... Matar é por fim á obra de destruição, é fazer a presa encontrar a paz. Ao destruir alguém em vida, o carrasco sabe muito bem que a sua presença ficará indelevelmente marcada no rosto da presa para o resto da eternidade ... Que o seu rosto, as suas palavras, os seus actos e as sensações provocadas serão revividas vezes sem conta, que serão mais nítidas na memória e nos sentidos e que terão mais efeito do que anos de dedicação da parte de pais amorosos, amigos fieis e devotados, mestres generosos e amantes carinhosos. Saber que, no espaço de pouco mais de uma hora, todas as esperanças e belos sentimentos cairão por terra e nada mais restará do que a ideia Hobbesiana de que a essencia da realidade éde que tudo não passa de uma cadeia alimentar, que o homem é lobo do homem e que ao mais forte é dado um poder absoluto que nenhuma lei ou sistema de valores alguma vez conseguirá verdadeiramente domar. Que toda a ordem, todos os direitos, todas as protecções civis, todos os bons sentimentos não passam de uma maquilhagem hipócrita que esconde esta dura realidade.

Era incrível ver o como os excelentes actores incarnavam a volúpia do poder absoluto e a completa falta de empatia ...

Os membros das polícias políticas dos regimes ditatoriais da América Latina foram todos, ou quase todos treinados na "School of the Americas" http://www.amazon.com/School-Americas-Political-Encounters-Interactions/dp/0822333929) um centro de formação criado pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria para treinar militares implacáveis no combate a tudo e todos os que fossem percebidos como ameaça á hegemonia política de Washington e á hegemonia económica das multinacionais. O treino era feito á base de métodos de manipulação mental destinado a extrair dos militares todo o pingo de empatia e compaixão que pudessem ter por seres humanos que fossem percebidos como "comunistas" ou "terroristas". Esta escola continua activa e há muito boa gente que afirma que o que se passa actualmente na prisão de Guantanamo, em pleno ar durante os famosos "voos da CIA" e nas prisões secretas que há por essa Europa fora em muito se assemelha ao que se passou no Brasil, na Argentina, no Chile e em países vizinhos.

Não julgem que saí do cinema a sentir-me moralmente superior aos torturadores. Muito pelo contrário: Dei-me conta do quanto a sua brutalidade e a sua falta de compaixão estão vivas e bem vivas em mim. O quanto eu sou cúmplice de toda esta brutalidade, de toda esta obscena destruição. Essas técnicas de destruição sistemática continuam a ser usadas. mais cedo ou mais tarde, podem voltar a bater-nos á nossa porta. Um dia poderão ser os nossos familiares, os nossos amigos ou até nós mesmos a ser torturados ou, quem sabe, a se juntar á fileira dos torturadores.

Há mais: É nessa tortura e nessa destruição que se baseia o nossos bem-estar. Os "tupperwares" onde guardamos comida e a gasolina com que enchemos os tanques dos nossos carros são feitos do petróleo que tem ceifado a vida a centenas de milhar de pessoas pelo Médio Oriente fora. Muitas das nossas roupas são feitas por crianças exploradas como mão-de-obra barata, futuros ceifados para que nos possamos vestir de forma comfortável, elegante e acessível ao nosso bolso. Exploração esta que é possível em grande parte devido á repressão policial e militar e ao assassinato sistemático de líderes sindicais e activistas de movimentos comunitários pelo "Terceiro Mundo" fora. Muitas das nossas casas foram construídas por imigrantes explorados e acossados pelo medo das máfias, sob o olhar indiferente do governo ao qual convém manter as coisas como são, para que os contrutores civis que o apoiam continuem a lucrar como têm lucrado. Muitas das nossas casas são limpas por imigrantes mal pagos, silenciados pelo medo não só das máfias, mas da miséria, da fome e da morte.

Não é só isso: Quero que saibam que o salário que recebo na minha Universidade é em parte fruto de doações feitas por empresas de armamento. Doações feitas a uma Universidade que é conhecida como um centro de pensamento progressista e orientado para causas sociais, onde muito dos seus líderes dizem ser pacifistas e estarem contra as guerras onde as empresas que pagam parte do seu salário têm feito tantos lucros. Por isso, posso muito bem afirmar que recebo dinheiro sujo. Que as minhas mãos estão sujas do sangue de vítimas de guerra e de opressão por esse mundo fora.

Não quer isso dizer que não hajam muitas organizações dignas e honradas e muitas pessoas de bem a financiar a minha universidade. Há concerteza e muitas.

Tenho a certeza que também há muitas pessoas de bem e quem sabe, alguns santos ou seres iluminados a trabalhar nas empresas que vendem armamento.

Podem ter a certeza que a bolsa que em breve começo a receber do nosso governo não é mais "limpinha". O Fundo Social Europeu, como todos os fundos de todos os orçamentos de todas as organizações internacionais e todos os estados á face da terra é financiado pelos impostos de empresas que vendem morte, destruição e opressão, assim como por empresas e cidadãos que provem a paz, o bem-estar e a felicidade.

Enquanto formos prisioneiros do Samsara, nenhum de nós estará inocente. Todos nós seremos cúmplices do Mal e do horror que existe. Nem que seja de forma muito indirecta. Isso porque tudo o que existe está "contaminado" pelo Bem e pelo Mal que existe em qualquer ser do Cosmos.

Sendo assim, como é possível acreditar que vale a pena tentar minorar o sofrimento dos que nos rodeiam e melhorar as suas condições de vida? Como é possível acreditar e dar sentido a alguma coisa quando damos de caras com o tenebroso esplendor e o poder célere e brutal do Mal absoluto? Principalmente quando nos damos conta que esse Mal vive em nós e que somos cumplices dos seus efeitos? Que todo o mal e toda a violência do mundo vivem em nós, assim como toda a bondade, toda a alegria, toda a beleza e todo o prazer? Principalmente quando o Mal parece ter efeitos mais rápidos e duradouros do que tudo aquilo a que aparentemente se lhe opõe.

Vista a essencial imoralidade do mundo, não será mais inteligente nos tornarmos nós mesmos num ser predador, numa máquina de destruição sistemática para não sermos destruídos e vivermos o gozo orgásmico do poder absoluto?

Espero sinceramente que não. Mas quem sabe se não estarei errada?

PS - O Frei Betto foi preso, mas escapou a tortura por ter um tio general. O poder, novamente o poder. E esta, heim?

PS1 - Dizer a vítimas de tortura que o horror que elas passaram nunca aconteceu porque, segundo o Budismo, elas nunca existiram pode ser considerado como uma séria ofensa.

PS2 - Desculpem o tamanho deste post. É que o filme mexeu mesmo comigo ...

8 comentários:

  1. Olá Ana,
    Gostava de te dizer que também vivo as angústias que tu vives. No entanto acho que a humanidade samsárica não tem uma essência comum. A essência comum a todos os seres vivos é aquela que recusamos , a mente iluminada ou a do Caos como eu lhe chamei lá atrás. Para sermos de novo Caos temos que ir além de Deus, além do Paraíso, além do Nirvana, além de todos os conceitos (o caos existia antes da ordem, logo nunca será sinónimo de desordem). Segundo o Budismo nenhum ser é inocente, desde o berço até à morte estamos a colher os frutos do que plantámos, e continuaremos a colher vida após vida até nos saciarmos pelo despertar da visão da vacuidade e da união perfeita da sabedoria e compaixão. Espero ter ajudado...

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  2. Não passa pela cabeça de ninguém dizer a vítimas de tortura que nunca existiram, por mais verdade que isso seja, mas pode-se sugerir-lhes, caso estejam em condições de o compreender, que, em vez de odiarem os seus carrascos, os considerem como preciosas oportunidades que a vida lhes dá de desenvolverem o grande amor e a grande compaixão, aqueles que incluem todos, mesmo os que nos fazem sofrer mais... sobretudo porque quem faz sofrer vai sofrer as consequências disso. Assim o têm feito, por exemplo, muitos tibetanos torturados nos campos de concentração chineses. Assim o ouvi da boca do Dr. Tenzin Chodrak, antigo médico de SS o Dalai Lama, que foi torturado durante 30 anos pelos chineses. Segundo ele, os seus algozes foram Budas vivos na sua vida, sem os quais ele jamais haveria evoluído tanto... Claro que não é fácil, mas é possível quando se treina a mente para isso, como acontece na tradição budista e como acontece em todas as tradições espirituais autênticas. Neste sentido, será que o sofrimento, assumido como factor de evolução espiritual, será um mal ou um bem ? O problema ou o mal não está em haver sofrimento, que é uma consequência natural dos nossos actos negativos, mas em não haver treino da mente para o converter num factor de evolução espiritual. É preciso ver tudo nesta dimensão mais ampla. Mas é claro que uma coisa é dizê-lo, outra fazê-lo. Por isso temos de nos exercitar diariamente para sermos capazes disso com os pequenos (ou grandes) sofrimentos e adversidades quotidianos. Um Abraço.

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  3. Ana,
    para refletir sobre estas questões há um trabalho muito interesante do psicólogo alemão Bert Hellinger. Não disponho de muito tempo. Deixo-te uma ligação na que podes encontrar informação.
    Tal e como dizem os mestres budistas, é necessário harmonizarmo-nos com a compreensão da "via" para ter verdadeiras perguntas e respostas

    http://www.hellinger.com/international/english/hellinger_lectures_articles/index.shtml

    Um abraço

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  4. Felicito-vos pelos vossos comentários Ana e Paulo ! Excelente !


    A ti também Margarida pelo texto... mas diz-me: porque escreves sempre "á, á, á" em vez de à, à, à ?!
    Desta vez escrevias de casa, certo ?
    Desculpa o reparo... mas são muitos "ás" !

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  5. Algumas ideias básicas sobre o desenvolvimento da abordagem de Bert Hellinger tiradas da sua página web. Acho muito inetressante muitas das suas maneiras de trabalhar, se tivermos em conta que não é uma teoria mas uma experiência prática

    Em julho de 1999 Bert Hellinger descreveu em tópicos a sua abordagem e seu respectivo desenvolvimento.

    1. A idéia de Eric Berne de que existem scripts pessoais segundo os quais uma pessoa organiza inconscientemente a sua vida teve um papel muito importante para mim. Berne acreditava que isso vinha das instruções recebidas dos pais na infância. Eu vi que isto tem a ver com emaranhamentos nos destinos de outros membros da família, freqüentemente em uma ou duas gerações anteriores.

    2. Já durante o meu trabalho prático de muitos anos com a terapia primal pude observar que muitos sentimentos, também os violentos, nada tinham a ver com a vivência pessoal. Tornou-se evidente para mim que são sentimentos freqüentemente assumidos através de uma identificação com uma outra pessoa.

    3. Além disso, vivenciei sempre que a consciência que sentimos tem funções que conservam o sistema. Trata-se, em especial, do vínculo ao grupo, da regulamentação do intercâmbio através da necessidade de equiparação entre o dar e o receber, das vantagens e perdas e a imposição das normas do grupo.

    4. Mais ainda. Existe uma consciência inconsciente que liga os membros de um sistema e impõe dentro dele as seguintes ordens ou leis:

    a. Cada membro da família e estirpe tem o mesmo direito de pertinência, também os que faleceram precocemente ou os natimortos, assim como os deficientes e os maus.

    b. A perda de um membro através da exclusão ou esquecimento será compensada por um outro membro da família. Freqüentemente em uma geração posterior este representa ou imita inconscientemente aquele que foi excluído ou esquecido.

    c. Vantagens às custas de outrem serão compensadas muitas vezes somente em uma geração posterior.

    d. Os membros anteriores têm precedência sobre os posteriores . Por isso quando um membro posterior se eleva sobre um anterior ele paga muitas vezes através do fracasso ou queda.

    5. Finalmente, existem muitas indicações que os mortos atuam sobre os vivos , ou de um modo maléfico, se são excluídos ou temidos, ou de modo benéfico, se são chorados, honrados e depois deixados em paz.

    A Constelação Familiar como a entendo e pratico, traz então à luz, no sentido das idéias básicas aqui apresentadas, onde estamos emaranhados e quais são os passos que conduzem ao desenredamento e solução. Todos estes passos têm a ver com o respeito pelos outros. Os assassinos são uma exceção. Devemos deixá-los partir do sistema para que possam juntar-se às suas vítimas. Ali eles encontram a paz.

    http://www.hellinger.com/international/
    portugues/sobre_bert_hellinger/index.shtml

    Espero que te ajude.Um abraço

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  6. Olá a todos,

    Muito obrigada pelos vossos excelentes e muito úteis comentários. Irei concerteza buscar tanta informação quanto puder sobre o Dr. Tenzin Chodrak e o Dr. Bert Hellinger.

    Paulo, se hourver algum curso de introdução á meditação Budista em Junho vais ter de me aturar por lá;-)!

    Quanto à "intrigada": Muito, mas muito obrigada por me chamares à atenção sobre a forma como acentuo os meus "às". Errinhos típicos de "emigra";-)!

    Um forte abraço para todos.

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  7. Não vi o filme, não li o livro e são 4:30 da manhã... Este blog não serve café, ou mais um gin? :)

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  8. só um pormenor, se em vez de olharmos para os nossos pais, avós e bisavós, olharmos tb para os tetravós e etc etc, começamos a perceber que, há uns milhares de anos atrás, só sobrevivia quem fosse bastante agreste. Um tipo que tivesse nojo em dissecar um animal ou comê-lo vivo ia dar-se mal. É natural que muitos desses genes tenham passado para nós. A nossa história deu-nos uma vertente altamente sádica. Enfim, como dizia o Carl Sagan, a nossa espécie é capaz dos actos mais bárbaros e de criar os mais belos paraísos, vamos ver onde o futuro nos leva!

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