quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Quarto Centenário do Nascimento do Padre António Vieira e Novo Ano Tibetano

Passam hoje quatrocentos anos sobre o nascimento do Padre António Vieira e comemora-se esta noite a passagem do novo ano tibetano, o Losar, ao qual todos são bem vindos (cf. a notícia em "Actividades"). São duas pontas do emaranhado desta vida que se convenciona chamar "minha": uma liga-se a Camões, Vieira, Pascoaes, Pessoa, Natália Correia, Agostinho da Silva e tantos outros e desemboca na Ilha dos Amores, no Quinto Império, no Império do Espírito Santo; a outra vincula-se ao Buda primordial, a Guru Rinpoche e Yeshe Tsogyal, Guesar de Ling, Longchenpa, ao VI e ao XIV Dalai Lamas e tantos outros, confluindo para o Kalachakara e Shambhala. Por mais diversas que sejam e pareçam, sei que na "minha" vida são as mesmas.
Em homenagem a Vieira publico aqui a Introdução que escrevi para a Agenda 2008 da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, bem como, hoje e nos próximos dias, parte dos trechos que seleccionei para a mesma. Faço-o com o sentimento de que Vieira foi um dos grandes precursores da aventura hoje chamada Nova Águia e Movimento Internacional Lusófono, que visam, com a sua proposta de um novo Portugal, uma nova Comunidade Lusófona e um novo Mundo, actualizar e depurar a sua aspiração a uma vida mais plena e total. Sinto hoje bem próximos os finisterras do extremo-ocidente atlântico e dos Himalaias e o que de um e outro se divisa: Shambhala e a Ilha dos Amores, o nosso próprio Coração, sem tempo nem espaço em todo o tempo e todo o espaço.
Emaho ! Saúde !

Padre António Vieira

Vindo ao mundo no coração da Lisboa imperial, perto do local de nascimento de Santo António, o Padre António Vieira é uma das figuras mais complexas e singulares da cultura luso-brasileira, quinta-essência do seu espírito, mas também personalidade de dimensão universal.
Dotado de um fervor religioso cuja pulsão mística se distende na inquietação visionária e apocalíptica, pregador de palavra, acção e vida exuberante, teólogo e pensador que desconcerta pelo jogo do discurso barroco ou do dizer aforístico a evadir-se da lógica escolástica, exegeta das profecias que se volve ele mesmo profeta e poeta do melhor mundo possível, missionário movido pelo amor do próximo e destemido defensor dos perseguidos e oprimidos – judeus e índios - , patriota apaixonado até à hipérbole e homem que abeira a morte em constante congeminação política, Vieira é bem o paradigma desse génio português arrebatado pela viagem no mundo e no espírito e pelo abraço à totalidade das coisas que tão incarnado viu no santo lisboeta morto em Pádua como peregrino universal: “Para nascer, Portugal: para morrer, o mundo”.
Fruto dos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e do profetismo bíblico e laico, a visão de Vieira é uma rara síntese daqueles “altíssimos desenganos” místicos “em que o tudo e o nada são da mesma cor” e nada importa senão a santidade do amar só a Deus, pois “[...] tudo o que não é ser Santo, é não ser [...]”, e da esperança de que o mundo possa vir a transfigurar-se como teatro dessa santificação universal, humana e cósmica, que designa como Quinto Império ou Reino de Deus na terra consumado: plena expressão do excesso da graça do Cristo redentor sobre o pecado de Adão – origem do tempo dos quatro impérios profanos – e apogeu do crescimento do seu Corpo Místico nos homens, na natureza e na história, pelo qual Igreja e humanidade se fundirão num Paraíso renovado e “esta grande casa de Deus, que é o Universo, será toda santa”.
Herdeiro da visão de Joaquim de Flora e do joaquimismo, que tenta conter nos quadros da ortodoxia sem deixar de os romper, as eras do Pai, do Filho e do Espírito Santo dão em Vieira lugar aos três estados do Reino de Deus na terra, desde o início da pregação evangélica até à consumação antes da vinda do Anticristo e do Fim dos Tempos. Exceptuado o tempo da vida terrena de Cristo, momento ímpar de perfeição, todo o restante tempo histórico e da Igreja é assumido como a providencial e progressiva dispensação, pelo Cristo invisível e pelo Espírito Santo, de “aquelas ocultas e altíssimas verdades que, por menos capacidade dos seus discípulos, deixou Cristo de lhes dizer, quando por si mesmo os ensinava”. A revelação divina não está pois concluída, o tempo da profecia não está encerrado e, neste sentido, os Modernos estão mais perto do desvendamento do sentido último da história do que os Antigos. As profecias, as antigas e as novas, como as do Bandarra e de outros homens simples e inspirados, não se cumpriram todas no passado e na vinda de Cristo, mas apontam sobretudo ao tempo presente e iminente e ao que Vieira entende que nele é fundamentalmente chamado a anunciar e presenciar: o estabelecimento do Reino de Deus na terra ou Quinto Império. Lendo e estudando as profecias, é assim possível escrever história, a verdadeira história, não a do que foi, mas a do que vem a ser: a História do Futuro. O exegeta torna-se profeta.
Todavia o profeta não fica apenas à espera que se cumpra o que anuncia. Converte-se também em poeta, fazedor disso mesmo que profere e proclama, participando activamente na realização dessa suma possibilidade que à comunidade dos homens desvela e que apela o seu consentimento e adesão para que plena e concretamente se inscreva na ordem do mundo. Daí uma acção - pela oração mental e verbal, pela palavra intrépida que inquieta, denuncia e exorta, pelo conselho, influência e manobra política - que não visa senão o descentramento individual e colectivo para o advento de Deus e do seu Reino e que, se bem que dirigida a todos os homens, convoca com particular veemência Portugal, nação que acredita providencialmente destinada, desde a sua fundação na profecia de Cristo em Ourique (que para Vieira é realidade original e não mito, no sentido comum do termo), a ser um novo povo eleito para o cumprimento dessa plenificação de Deus e do mundo, desse crescimento do místico e cósmico Corpo divino, desse escatológico ser Deus tudo em todas as coisas que visiona como o sentido mais fundo da sua visão-paixão quinto-imperial.
Teólogo da infinidade do possível divino, teólogo-filósofo da maior razoabilidade de que isso se expresse no melhor mundo possível (num optimismo quanto ao fim último que precede duas décadas o de Leibniz quanto à origem primeira) e filósofo do necessário excesso, loucura ou “doidice” da santidade humana para que tal se efective, Vieira não poupa nem os poderes político-religiosos, nem os interesses, as paixões e a prudente razão dos homens que a tal se opõem, remando muitas vezes solitariamente contra os ventos e marés de um mundo e de uma história persistentes em frustrar as suas todavia inquebrantáveis esperanças de uma iminente transfiguração apocalíptica da ordem das coisas, anunciada nas profecias e precedida dos sinais prodigiosos que avidamente perscruta.
Missionário inspirado na opção de São Francisco Xavier por cuidar mais do bem do próximo do que da própria salvação, protector dos índios contra a cruel ganância de colonos e governadores, pregador que não furta a verdade mais inconveniente aos ouvidos dos poderosos, conselheiro agraciado ou desvalido de reis e príncipes, expulso do Brasil pelos esclavagistas e, acusado de judaísmo, queimado em efígie num auto-de-fé pela populaça coimbrã, crítico da Inquisição portuguesa, que desafia e afronta com destemor, agindo e movendo sempre influências a favor de judeus e cristãos-novos, incansável estratega político, congeminando casamentos, alianças e planos comerciais, patriota ardente que rejeita a glória fora do país embora saiba que a pátria o enjeita como seu profeta, patriota inconsolável com a decadência do Portugal que visionava mediador do cumprimento do sentido divino da história, patriota cuja espiritualidade lhe revela ser o próprio e imoderado patriotismo uma paixão que o desvia do “último fim”, mas que, disso “muitas vezes convencido”, não o vê todavia “vencido” – eis Vieira, como um Heraclito-Demócrito que de tudo chora e ri mas, sobretudo, da “comédia” da sua vida, nesse barroco claro-escuro do mundo que viu como teatro, jogo e “grande casa de loucos”.
“Insaniendum est, si vis esse perfectus: Hás-de te fazer doido, se queres ser santo”: assim resumiu o ensinamento que, vindo de São Paulo, colheu de Santo Inácio de Loyola e São Francisco Xavier. E de facto muito nele houve dessa assumida loucura que Pessoa porá na boca de D. Sebastião: “Louco, sim, louco, porque quis grandeza / Qual a Sorte a não dá. / Não coube em mim minha certeza; / […] Minha loucura, outros que me a tomem / Com o que nela ia. / Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria ?”. Muito nele houve dessa loucura, nem sempre necessariamente santa, mas sempre tocada do sentido de um possível maior que toda a razão, como a de anunciar que D. João IV haveria de ressuscitar para ser o imperador universal, só aparentemente por demonstração silogística: o Bandarra foi verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou que D. João haveria de ressuscitar; logo D. João vai ressuscitar. Muito nele houve dessa loucura ambígua, por um lado inflamada pela centelha do divino, por outro ofuscada pela demasiado humana confusão desse divino com a instituição dos poderes deste mundo: pois carecerá isso a que se chama Deus de reinar, como se desde sempre não fosse o Reino e, mais, o Real ?
Também a loucura e a certeza de Vieira nele não coube, dele extravasou e outros a tomaram: Pessoa e Agostinho da Silva, entre os mais conhecidos e notáveis, persistentes em serem poetas, mais no ideal o primeiro, mais no concreto o segundo, de um Portugal bem maior e mais profundo do que os portugueses adormecidos e acomodados percepcionam, admitem e desejam. Com efeito, visões como a que perpassa em Vieira e nos da sua estirpe parecem não ter lugar na história comum dos homens, sempre demasiado estreita e prudente para acolher a genialidade, com todas as suas maravilhas e perigos, mas afinal sempre demasiado ampla para se fazer o palco de toda a mais grosseira e cruel barbárie. Se por um lado não deixa de ser um paradoxo que haja esperado o contrário, que possa haver uma redenção histórica da história, por outro, sem isso, nem sequer teríamos a possibilidade de reconhecer, no espelho do contraste de um possível tão excelente e excessivo, a “apagada e vil tristeza” em que Portugal e o mundo soçobram na ausência de ideais e aspirações que movam à transcendência e nos façam ressuscitar em vida.
Comemorar hoje os quatrocentos anos do seu nascimento não pode ser menos do que deixar enraizar-se e crescer em nós a ampla generosidade do seu coração, a sublime inquietação do seu espírito e o fundo incómodo de por(des)ventura em nada sermos hoje diferentes disso que do alto do púlpito da sua vida mais impiedosamente desencobriu, denunciou e flagelou.

1 comentário:

  1. Os seres humanos que se trancendem muitas vezes acabam por ser imolados, de modo real ou simbólico, pela "populaça" que tem medo de si mesma e por isso vê a autoridade como um "porto seguro" que estrutura a sua vida de modo aliviá-la do fardo de pensar e escolher.

    Ai de quem ameaçar esse "porto seguro" ...

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