sábado, 19 de janeiro de 2008

Meu caçador, minha sombra, meu assassino: eu te amo

Arrasto-me atrás das horas para chegar às portas do sono. Quero mergulhar nas trevas do adormecer, sou um animal assustado a fugir de um animal maior que me persegue com hálito de fogo, andar elástico e pesado, sempre tão próximo que o seu bafo insone afaga as minhas costas, esse terror que me encontra até nos sonhos, e é o meu inimigo, o meu caçador, o meu assassino, a minha sombra. E sei que vou acabar por lhe abrir a porta, os braços, o coração, a alma e o corpo, a tremer de raiva e medo, de cansaço e de paixão, porque é dele que fujo desde o princípio dos tempos, e é ele que quero desde a eternidade, e é ele que procuro desajeitadamente, apalpando rostos com dedos vibráteis de antenas de insecto, tacteando às cegas o caminho dos sete sentidos, mutilando corpos e corações, a começar pelo meu, que é um guerreiro esfarrapado a caminhar sem descanso pelos campos de batalha do amor, onde nunca há vencedores nem vencidos, porque todos ganham sempre o seu quinhão de dor e asas.

Sou mil gotas de espuma. E espreito às janelas do universo, e as janelas por onde me debruço são o coração daqueles que amo, mesmo os que já se esqueceram que os amo, mesmo os que já não me recordo de ter amado.

E nestes dias, nestas noites, todas as verdades são diferentes e contraditórias, e essa contradição em si mesma é uma verdade também. E nestes dias, nestas noites, passam por nós restos de estrelas, caudas entrançadas de cometas, esfarrapadas teias de aranha de nuvens estelares, pedaços de nebulosas que ainda dançam, arrastadas para o quarto de brinquedos de um deus criança, onde se encontram todas as coisas que nunca existiram, amontoadas ao lado de mundos quebrados em brincadeiras solitárias pelos imensos corredores vazios do cosmos, onde cavalga, esquecido, um cavalinho de pau, e carcaças de sóis abertos ao meio, a pulsar docemente atrás das portas dos quartos escuros do universo.

E então danço, danço e danço. Danço como se a morte me aguardasse no fundo da rua, ao virar de uma esquina, sob as copas das árvores despedaçadas pelo vento do Inverno, ou na amurada dos Cacilheiros que cruzam o Tejo encrespado no hálito frio de Fevereiro.
Danço a tremer de alegria como se fosse viver para sempre.
Danço sobre os abismos da memória, abrasada pelo afago negro de todos os esquecimentos, embalada na maré onde se dissolvem todos os sentidos, nas fronteiras do Medo onde reencontro a minha sombra, o meu caçador, o meu assassino, o meu Amor, e o seu hálito de fogo é a minha própria respiração.

Danço embriagada de presságios de Deus.

3 comentários:

  1. ahhh a valsa ébria do romance!
    :)

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  2. Respirar o hálito de fogo do nosso caçador-assassino-Amor, a sombra que sempre nos acompanha... Porque fugir disso que mais tememos se afinal é o que mais intimamente somos ou desejamos !? Belo e profundo texto.

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  3. Vou guardar este texto para mim.

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