domingo, 18 de setembro de 2011
a dança de ícaro
dias de luz fria. ícaro cai no chão duro da realidade no preciso momento em que parecia aproximar-se do núcleo do sol. as suas asas de cera derreteram súbita e inesperadamente. nenhum anúncio prévio ou sinal premonitório e daí a impossibilidade de ter preparado um pouso suave e macio. ei-lo estendido no piso agreste de um lugar comum. quando por fim abriu os olhos tudo tinha mudado. o sol arrefecera e soprava um vento frio e cortante. fazia-se sentir um odor a fogo extinto e tudo parecia repousar numa nudez invernal. ainda assim, o espaço abria-se preciso e silencioso. quando se tentou erguer sentiu-se invadido de um desconfortável pesar e desalento. andou vários dias a arrastar-se pelo chão sem esperança. parecia não haver mais lugar onde chegar apesar de todas as portas parecerem abertas de par em par. mas foi quando este jovem de cabelos revoltosos com fios de ouro e um olhar de luz singular, começou a entrar destemidamente nas reentrâncias desse desconsolo, que quase num lapso descobre uma estranha capacidade para dançar e a qualidade volátil dos seus pés, assim como as infinitas potencialidades de um mundo cheio de aberturas por todos os lados, propenso a infinitas correntes de ar. foi assim que começou a correr ao lado do vento com incrível leveza e a trocar-se de invisibilidade com o “devir”. agora ícaro desenha o céu debaixo dos pés. por vezes, quando se vê dançar, fica-se com a nítida sensação que um mar em fúria se levanta, uma revoada de aves rasga os céus e a primavera desperta, mesmo que não se esteja na primavera.
“all changed, changed utterly:
a terrible beauty is born:” ( w.b. yeats)
“all changed, changed utterly:
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1 comentário:
Apolo observa-o e ri. Ícaro era, ainda há breves momentos, o mais miserável dos homens e ei-lo agora a girar e rodopiar como uma serpente encantada! Apolo já conhecia, desde há muito, a condição humana. Sabia que os homens eram capazes das mais profundas contradições.
“Quantas tentativas fizeste para alcançar o sol? Qual o valor do teu esforço? Bem vejo como trocas facilmente o simples e o verdadeiro pelas loucuras dionisíacas! Eu sou o rosto da sabedoria e da justa medida. Todos me veneram porque sou o verdadeiro Deus e tu sempre foste, até hoje, o meu maior seguidor: Ícaro, o conquistador do sol!”
Imune aos pensamentos de Apolo, Ícaro prossegue com a sua dança. E com ela abraça o mundo! Ícaro sabe que a vida está cheia de altos e baixos, ora se cai, ora se levanta… Este momento é de ascensão! Ícaro eleva-se nos céus com Pégaso e as bacantes, acima dos campos e dos rios, e das âncoras dos homens… E à medida que sobe cada vez mais alto, observa as casas, com os seus jardins e cercas, as estradas e as pontes. E como nunca compreendeu o seu lugar nesse mundo, sorri por o ver tão pequeno e distante. Recorda o momento em que o sol sobre as asas de cera parecia ter ditado o seu fim. Frágil e exposto, caiu dos céus em rodopio de pena solta. Após o embate do corpo na terra seca, seguiu-se um longo período de silêncio que tocou a eternidade. Depois, o coro gritou em uníssono: “Ícaro, o irrealista!”; “Ícaro, o ambicioso!”; “Ícaro que queria chegar aos deuses!”; “Ícaro que caiu dos céus e se desfez em mil pedaços!”; “Ícaro!”… “Ícaro!”… “Ícaro!”…
Mas ao Ícaro que dança não pode ser atribuída nenhuma designação. Até porque não se sabe bem se ainda pertence a este mundo. O Ícaro que dança não segura nenhuma máscara e, por isso, perde o seu lugar na comunidade dos heróis trágicos!
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