terça-feira, 30 de abril de 2013


O Plantador de Palavras
Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.
João Cabral de Melo Neto


Terra e Poesia – duas realidades feitas de uma materialidade que António Saias explora mergulhando incansável em suas potencialidades modeladoras. Isso significa serem esses dois vetores os responsáveis pela dinâmica que alimenta os poemas de (H)ortografias (2012), constituindo sua razão maior: escrever a terra, plantar o poema, cultivar as palavras como sementes e abrir a terra/página à consciência do fazer. São tendências entrecruzadas, não paralelas, mas tecidas conjuntamente no arado arejado a que se entrega o Poeta.
É a “Gen-Ética” (título de um dos poemas) a permitir, por exemplo, a fabricação de produtos inusitados ou a transformação insólita de elementos, como Nenúfar em Flamingo; é a aproximação num mesmo espaço da VÊNUS DE MILO e os parasitas da Hortelã; é igualar o papel à terra suada; é o suor servir-se de tinta e usar a enxada como caneta; é o movimento simultâneo de junção e disjunção no corpo da terra-escrita, “lavras com pa-lavras”; é o alimentar as palavras como as cabras, com grãos e pastos, ordenhando-as para dar bom rendimento.
Acontece que a ligação intrínseca com a terra ou o solo (o baixo, raízes, sementes, água) coexiste com outra: a aspiração ao alto (o céu, o voo, o ar). Alto e baixo, tal jogo dialético já vem anunciado no primeiro poema (ou epígrafe?) de (H)Ortografias:
feijão-de-trepar
:
raízes em terra
e ânsia de voar
Notemos como a verticalização se iconiza nos dois pontos – verdadeiras raízes no solo da página, em contraste com as rimas abertas das alturas /ar/. sugeridas pelos verbos “trepar” e “voar”. Enraizamento e liberdade, imanência e transcendência, apego e desapego – tais tensões perpassam toda a obra de Saias, desdobrando-se em ampla significação. Do corpo entranhado da escrita à materialidade do real, da consciência poética ao posicionamento sócio-político, a poesia de Saias amalgama distintas matérias em seu fazer, tendo como propósito maior a desacomodação de condicionamentos alienantes.

Nesse sentido, chama-nos a atenção a diversidade de formas de composição dos poemas, como se a poesia, terreno fértil à germinação múltipla, resultasse num campo propício a concepções distintas do fazer. Assim, não apenas a moldura/estrutura textual como também as fontes e motivos operacionalizados pelo poeta, bem como sua consciência crítica, revelam uma sensibilidade antenada à cultura literária de que faz parte.
Desse modo, a irreverência à La Alexandre O’ Neill, o espírito breve e sintético dos haicais, o engajamento crítico de cariz neo-realista, lampejos surrealistas à Cesariny, essas matrizes se complementam no percurso poético de António Saias. Sem dúvida, de todo esse caldo cultural o que mais engrossa a textura de suas poesias é a presença de O’ Neill. A série de poemas como “Ponto de Interrogação”, “Ponto Final”, “Acento Circunflexo”, “Cedilha”, instauram em nossa leitura um diálogo com as “Brincadeiras Ortográficas” de O’ Neill. Em ambos os poetas, o espírito lúdico conjuga-se à lucidez crítica no trato com a palavra e o real nela implícito. Por isso, não se trata de uma metalinguagem encerrada nos limites da funcionalidade linguística, e sim de um código estético atento às relações tensivas entre palavra e realidade, representação e traição.
Nos versos “cada um manifesta-se como pode / ou pôde?” (2012, p.86), o pretexto de falar sobre o acento circunflexo abre-se a uma indagação que ultrapassa a questão gráfica para transformar-se num dilema maior: a liberdade do sujeito para sua manifestação é presente ou um gesto do passado? Ou melhor, que convenções ainda pautam as atitudes humanas? A arbitrariedade do signo e leis que o regem tem algo a ver com o arbítrio do ser humano?
Percebemos que a leveza da brincadeira tem a sua contraface, pois torna visível outra via de leitura em que desponta o senso crítico, como no poema “Pragma (para poeta contra novo AO)” (2012, p.81):
SOL
quando está frio apareces
isso me apraz

e sabes
quão pouco me faz
saber

quando me aqueces
se aquecer
se escreve com um C
se com mil SS

No diálogo com o sol desvela-se uma lição que extrapola os muros do academicismo ou do purismo vernacular. Por isso, para além das discussões infrutíferas em torno de acordos ortográficos, o poeta se manifesta como alguém capaz de acolher o que a natureza oferece para ser usufruído sem questionamento. Sentir-se aquecido ou confortado pela realidade natural parece muito mais prazeroso do que aceder às obrigações ou arbitrariedades das injunções institucionais, portanto, pouco importa a ortografia correta de aquecer, o que conta é o SOL maiúsculo que figura no alto do poema.
Evidentemente tal atitude não está a negar a seriedade das convenções, mas sim coloca sob suspeita o radicalismo ou cegueira que cerceiam as ações quando estas se pautam exclusivamente por condicionamentos inoperantes.
A burla, gesto saudável para inverter as posições habituais e categorias preestabelecidas, justifica-se como procedimento poético porque nele está contido o conhecimento ou saber. Ao poeta cabe o papel de investir numa aprendizagem que se desfaz do que se cristalizou, para recuperar o frescor e a originalidade roubados pela institucionalização. Antes cultivar o exótico que o pragmático usual, eis o que nos comunica um poema como “O Grego → O Latim → O Inglês → O Mandarim” (2012, p.80):
não tarda
quem quiser
mandar
em mim

não mais em
inglês

inglês
chegou
ao fim
ordens só vou
passar
ou aceitar
em
mandarim

O próprio trocadilho entre “mandar em mim” e “mandarim” revela a habilidade de quem manipula a língua como objeto que se esquiva aos grilhões da seriedade gramatical, tronando-a maleável ao único “idioma” que interessa – o da aventura poética. O poeta dribla, assim, a visão pragmática geralmente associada à língua inglesa, sugerindo atender a outras possibilidades idiomáticas ou alternativas linguísticas, como o mandarim.
É também o jogo verbal, próprio de quem gosta de tomar as palavras como brinquedo, que leva o poeta a criar um diálogo com o poeta brasileiro Manuel Bandeira: “o menino que gostava / de brincar com as palavras / viu uma lagarta às listras // e lembrou-se de chamar-lhe / LAGA_ARTISTA” (2012, p.74). Um outro poeta-criança, também manipulador das palavras, Manoel de Barros, certamente assinaria o jogo inventivo de Saias.
Por outro lado, o gracejo que brota do uso crítico da língua com o propósito de subversão das normas gramaticais pode também descortinar outra face pela leitura: o encanto lírico. No poema “GArçA” (2012, p.77), por exemplo, não somente o destaque gráfico do signo como também o discurso sobre a ave acabam por revelar a outra dimensão da linguagem e da própria ave. É que o mirar-se na água-linguagem, em que despontam qualificações – branca, leve, imponderável, esguia – permite que o reflexo da imagem da ave faça transparecer outro sentido para a garça – a graça. Beleza, recorte singular e poético da ave, num simples anagrama e sugerido pelos breves versos. O “inegável erro / de ortografia” é o que nos permite ler e ver o seu outro lado, o reflexo invertido das letras em que surge, aí sim, a graça no duplo sentido (encanto e humor).
Ao tomar como tema no poema “Bucólico” (2012, p.31) o canto do grilo (outro motivo que nos remete a Alexandre O’Neill), António Saias explora as potencialidades da rima, provocando curiosos efeitos semânticos. Opondo-se à usual sensação de incômodo que advém do canto do grilo, a visão do poeta constroi sensações prazerosas na sua relação com o inseto, pois o encanto e a pulsação vital materializam-se nos encontros sonoros e nas repetições: o que mais me encanta / quando o grilo canta / é saber que é pelas asas / que ele canta / -não pela garganta // ainda mais me encanta / no cantar do grilo / é eu sentir-me vivo//. O encadeamento dos sons guturais e as nasais /anta/ fazem com que o canto vá tomando conta do espaço poético, enlaçado ao eu que o incorpora. Num segundo momento do poema, o canto do grilo permanece, porém, agora, associado ao tempo, como se cantar tivesse o poder de amenizar a passagem do tempo e os contratempos da vida; as rimas e recorrências fônicas dão corpo a essa sensação: atento / contra o vento / ouvi-lo / grilo / canta / contra o tempo.
Entretanto, o bucolismo se reveste de outra dimensão, na medida em que o poeta apresenta-o sob um viés crítico, atendendo a uma vertente mais satírica, como no poema “Manhã Agrícola” (2012, p.28). Em matéria de ecologia, diz o poeta, não servem cantigas enganadoras, pois a realidade concreta e terrena exige outros cuidados. Formigas e toupeiras podem alimentar as fábulas clássicas ou inspirar Cesário Verde em seus poemas, mas na prática agrícola são daninhas, o que revela o lado bem humorado do poeta para quem é preciso entender a diferença entre as esferas literária e a práxis, até para se respeitar a natureza específica de cada uma. Na poesia, espaço em que o trabalho consciente com a linguagem faz coexistirem as duas realidades, tudo é possível porque o senso crítico está lá para denunciar as diferenças: “se precisar de bucolismo no trabalho / arranjo um pintassilgo / ou um canário”, conclui o poeta.
A consciência aguda de Saias não se conforma à imobilidade e passividade, preferindo o caminho da inquietação necessária à derrocada dos valores estabelecidos. É preciso construir outro mundo por meio de um lirismo inconformado, porém, insistente em seu poder de renovação – é o que nos propõe o poema “É Preciso”:
é preciso arrombar uma porta
é preciso inventar um caminho
é preciso uma leira cavada na horta
é preciso uma acha de fogo azinho

é preciso um canhão de certeza de tudo
é preciso uma seara de raiva nos dedos
é preciso outro mundo outro mundo outro mundo
sem brechas nem bruxas nem monstros nem medos (2012, p.12)

Autodeterminada (alimentada pelo anafórico “é preciso”), essa poesia reafirma seu papel junto à realidade histórica, acreditando nas possibilidades de transformação materializadas na linguagem. Transformação legítima porque preparada e armada no seio mesmo da escrita, espaço livre, aberto à emancipação do sujeito criador. A fome, a exploração, as diferenças sociais, as falsidades, a opressão e outros temas são revirados pela pena da escrita: “Fome não apaga / este pão trigueiro // sou ladrão de palavras” (2012, p.63). É graças ao investimento nas potencialidades do signo poético que a realidade se ilumina, fazendo do trabalho árduo com a palavra um análogo do trabalho braçal do homem ligado à terra.


COM ISTO ME DESPEÇO da SERPENTE
para mim de boa memória

abraço a todos

domingo, 28 de abril de 2013


ESCALADA


começou por deixar
de fumar

por aconselhamento médico
pôs de parte
as bebidas alcoólicas

quando deu por isso
tinha perdido o hábito
salutar

de
respirar

tinha
expirado

quinta-feira, 25 de abril de 2013


O(H)VIBEJA

aí estão as cabras
com os seus brincos
pendurados das orelhas

as vacas e os porcos
com seus piercings
no focinho e nas narinas

os burros
com a sua calma legendária
suas orelhas de abano
de grandes mais eficientes do que auscultadores

os cavalos lazões
castanhos izabela
prontos a serem montados
por meninos e meninas

aí estão os vendedores
de algodão-em-rama e de amendoins
e os cães domésticos
puxando os donos pelas trelas

aí estão as aves exóticas
os papagaios araras
e os garnizés
e os pombos gordos
que nem perus pelo Natal
e os camponeses velhos reformados
a não perderem nada
pelos pavilhões arrastando os pés

aí estão as avós
puxadas pelos netos
atrás dos fumos doces
dos churros das farturas
e os agricultores
perdidos em projetos
que rentabilizem
a ingrata agricultura

a água do Alqueiva
os olivais a rega
sem a qual a planta não tem seiva
o vendedor de máquinas
prometendo a entrega
do tractor New Holland
para virar a leiva

a gente do governo
pródiga em promessas
:
baixa de impostos subsídios sonhos

os putos marginais
virando a Feira das avessas
limpando ao braço
transpirações e ranhos

aí estão os balões
as espadas Excalibur
os pavilhões
de produtos regionais
:
os méis os queijos os enchidos maduros
os cheiros assimilados
a humores corporais

entanto o Sol falece
prós lados de Lisboa
são horas de apanhar o autocarro
- há quem vá de vagar há quem se apresse
há os eternos retardatários
distribuindo ainda
o tinto que há num jarro

até pró ano - a Feira estava boa
podia estar melhor diz a mulher cansada
perde a gente o tempo
por aqui à toa
com o raio da crise
não dá pra comprar nada

NUMA PRAÇA CHEIA DE GENTE


eu só fui ver

eu só queria ver

eu só queria ver-te

eu só queria observar-te

eu só queria sorver-te

perdoa-me Maria

- o que eu queria mesmo
era
um sor-ve-te

sexta-feira, 19 de abril de 2013

 rebanho é uma frase
de ovelhas

parte de um poema
- um verso

por bons ou maus caminhos
quem conduz o rebanho

para todo o lado

é a palavra-
-mestra

P´RA  PULAR  MATINAL


VAI CONTENTANDO A MANADA
COM FALINHAS DE VELUDO
- UMA MÃO CHEIA DE NADA
OUTRA VAZIA DE TUDO

domingo, 14 de abril de 2013


CREPÚSCULO

como as aves
põem ovos

quando se esconde
o SOL
é para pôr

todas as noites
dias novos

CREPÚSCULO


como as aves
põem ovos

quando de esconde
o SOL
é para pôr

diariamente
dias novos

sábado, 13 de abril de 2013


EXPLICAÇÃO DO POEMA

meus poemas são a minha
marcação
de território
na vida eterna

como cão
de qualquer esquina de taberna
faço
mictório

cheiro primeiro
dou meia volta

depois
levanto a perna

quinta-feira, 11 de abril de 2013


(I)MUNDO


escandaloso é o desequilíbrio entre

os "SEM-ABRIGO"

e os "CEM-ABRIGOS"

terça-feira, 9 de abril de 2013


GAIVOTAS

soltas
ao vento
como velas velozes

gritos graves

gaivotas são asas
com aves

segunda-feira, 8 de abril de 2013


JOGO


cuidado
quando lançares o dado
- ele pode
estar viciado

já não te lembras
que foste
tu próprio a viciá-lo?

domingo, 7 de abril de 2013


NOME & PRONOME


uma coisa é ser JOSÉ DE MASCARENHAS

outra bem diferente é ser

o JOSÉ do MASCARENHAS

sexta-feira, 5 de abril de 2013

MINISTRO  MISSIONÁRIO


de missão em missão

até à DEMISSÃO
final

DESPERTAR DE FAUNO


não é mau de todo
ter o sol a me lavar a cara

e ouvir lá fora
a seiva das roseiras
amadurecendo as rosas

ao som distinto
claro

de um apaixonado
rouxinol

quinta-feira, 4 de abril de 2013

NÃO FOI AO TEPÊTE
- foi à RELVA


no meio de tantas
trocas e baldrocas

talvez o ministro
vá ganhar a vida
a vender
PIPOCAS

terça-feira, 2 de abril de 2013

escaravelho verde-ouro
da HORTELÃ

- umas horas de SOL
aí está de novo

segunda-feira, 1 de abril de 2013

COGITO ERGO SUM

penso
suspenso

como aranha que teça
teia
tensa

para caçar
ideias

em vez
de
alimento

Um abraço, apenas um abraço

 A minha nova crónica no Boas Notícias:
«Ela pediu-me um lenço. Estava sentada no banco de um jardim, perto de um canteiro de rosas a florirem na Primavera de há um ano atrás. Procurei, mas não tinha. Andava a passear o Timóteo, pouco mais levava do que a trela e os inevitáveis saquinhos de plástico, mas houve qualquer coisa na voz dela que me fez parar para acrescentar que no quiosque, ali a dois passos, lhe dariam um guardanapo. Então, percebi que tinha os olhos cheios de lágrimas. Era tão nova. Quinze, dezasseis anos? E estava desesperada. [...]»

Para ler o resto:
 Boas Notícias - O Tempo dos Milagres: Um abraço, apenas um abraço

CONTRADIÇÃO FATAL DO CAPITALISMO


a ECONOMIA prospera quando consumimos
as FINANÇAS apelam a que economizemos

como sair daqui?