terça-feira, 28 de junho de 2011

o que escrevo é simples:
tem morte e vida no mesmo buraco do umbigo
tem desejos secretos de parir um boi
cabe em qualquer ferida
na língua sádica do coração
na demência precoce do trompetista
no mais pequeno cofre do amor

os meus versos são indecências acabadas de nascer
mas são da mesma forma que nasci
o que escrevo é o resultado da soma entre a fome e a sede
não preciso que venham matemáticos dizerem-me
que a morte é raiz quadrada de um escuro qualquer
ou de literatos dizerem-me que ódio leva assento no O
escrevo porque não me ensinaram nada sobre costura
escrevo para corrigir a minha vida
escrevo para conhecer o escuro por dentro
escrevo porque tenho dois ou três filhos
escrevo porque o taberneiro não aceita fiado
escrevo para aprender a bater asas

escrevo para fazer circular o ar
escrevo para aprender a álgebra do amor
escrevo porque a dor é um dom
escrevo porque só assim me confesso
escrevo porque não há carne no frigorífico

escrevo na medida do impossível
escrevo porque atrás de mim está outro mim
escrevo porque a psiquiatria fica dispendiosa
escrevo porque a esperança é uma espera
escrevo porque o trabalho cansa e a alma agradece

escrevo para me levantar do chão
escrevo porque não tive outra escolha
escrevo porque não sei fazer contas à vida
escrevo porque o vazio ocupa-me bem
escrevo para ter uma farsa verdadeira
escrevo por saber que o amanhã não existe
escrevo porque vivo morrendo
escrevo para boi dormir
escrevo para ter noticias de mim
escrevo porque a palavra é um rim
escrevo porque não tenho terra para lavrar
escrevo o sangue ainda existe
escrevo porque a lucidez é uma chatice

escrevo porque a consciência é a minha empresa
escrevo porque fui picado por um insecto
escrevo para aqueles surdos que ouvem dizer
escrevo porque o fogo abre-me o apetite
escrevo porque entendo que não entendo
escrevo para ter olhos nos olhos
escrevo porque o absinto não faz melhor
escrevo porque não sei morrer de outra maneira
escrevo porque estar sozinho é uma merda!

escrevo para não estar calado
escrevo para viajar sem ter de ir
escrevo mas depois não leio
porque a minha escrita dói!

enfim, o que escrevo é simples.
excepto quando as memórias vêm com tinta fresca!

6 comentários:

  1. Escreves porque te leio
    Em turco adivinho o espanto
    Fosse assim o silencio

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  2. Diz-se por aqui:
    "O que escrevo é simples".
    E foram precisos 54 versos, ou lá os que foi, para dizer isso? Ups!

    Diz-se acoli:
    Escrevo "porque a minha escrita dói!"
    Porque é que se escreve, se dói?
    Porque é que dói, ao escrever?

    Mistério de uma ladaínha!
    "Para não estar calado", mais valia não escrever!


    (Just kidding!)

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  3. A escrita é maiêutica e qualquer parto implica uma dor física, mas uma Felicidade Suprema Espiritual- então vamos deixar de dar à luz porque dói? Ah, está bem, há, de facto, quem marque cesarianas à la carte...Eu fiz uma, mas Foi Deus e o cirurgião que assim o decidiram pois estava pronta para parir com todas as dores possíveis... que doa a escrita, que nos doa a vida, pois sem sadismos inclusos, ninguém evolui sem sofrimento e sem sabder reciclá-lo em Alegria e diminuição da crista do ego!

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  4. e contaste os versos, 54??
    isso sim, é muito difícil.
    olha se eu tinha pachorra para andar a contar versos.
    por favor! vai ver a novela que já está a dar

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  5. FLS,
    Quando não há pachorra para contar os versos dos outros, tem de ter-se pachorra para escrever 54 versos de escrita... chorrilhenta.
    Vai ao (quase)mesmo.

    Diferença: ao contar versos, pode-se lê-los também (foi o que fiz); ao não ter poder de encaixe, encaixa-se só o que se tem: 54 versos para continuar a ser, no mínimo, o... melhor da sua rua!

    Escrever poesia é um pouquinho mais do que pôr uploads aleatórios para o mp4.
    E um pouco menos do que descer aos infernos com as mãos cosidas à boca.

    P.S.
    Poeta, perdão, escritor de poemas, que se dá ao luxo, e ao (quase) descrédito, de ripostar graçolas em causa própria, parece-me um pouco como um mártir que contratasse o pior advogado para, precisamente, ter a certeza de ser condenado aos leões.

    *
    A quem interesse:
    As novelas não me vêem a cor dos olhos.
    Nem as da tv - para depois ter de carpir mortes estúpidas de estrelas de papel; nem as de cordel - para querer ganhar premiozinhos dados por amiguismos e lobbies da praça.

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