Comemora-se hoje o Domingo de Páscoa, uma das grandes festas da Cristandade e da cultura ocidental. Religiosos ou não, milhões de seres humanos, em Portugal e no mundo, estão a reunir-se em família à volta dos mais diversos petiscos e iguarias, comungando e celebrando a alegria e o prazer de estarem juntos na maravilhosa aventura da vida.
É humano. Mas será também humano não terem consciência ou procurarem esquecer que, ao fazê-lo, estão na imensa maioria dos casos a usufruir de uma alegria e de um prazer obtidos à custa do sacrifício involuntário, forçado, violento e doloroso de muitos milhões de vidas de animais, indivíduos conscientes e sencientes que, tal como nós, têm um interesse fundamental em estar vivos, com liberdade e bem-estar?
Páscoa, do hebreu Pésah, deriva provavelmente do verbo pasah, “saltar por cima” e assumiu o sentido de passagem, correspondendo nos nossos calendários a um tempo de regeneração. O filósofo judeu Fílon de Alexandria, contemporâneo de Cristo, viu a Páscoa como a libertação do espírito do domínio das paixões obscuras. E Cristo foi assumido pelos cristãos como aquele que dá a vida e o sangue pelos outros, pondo fim a todo o sacrifício sangrento do outro, humano ou animal. É nessa mutação ética e espiritual que consiste a verdadeira Ressurreição, que nos evangelhos gnósticos, como o de Filipe, é algo a viver desde já, em vida, e não após a morte. Algo a viver a cada instante e não só num Domingo por ano.
Parece evidente não ser esse o exemplo que seguimos, quando nos banqueteamos com a carne dos animais (terrestres ou aquáticos). Parece evidente que na Páscoa que inconscientemente celebramos nada há de “saltar por cima”, de transcender, de ir além dos nossos apetites mais irracionais e dos nossos hábitos familiares e sociais mais enraizados. Parece evidente que nesta Páscoa nada há de pascal, como no Natal nada há de natalício, sempre que um homem novo não nasça no presépio da alma.
Mas se é humano ter hábitos, mais humano ainda é reflectir sobre eles e questioná-los. Apelo por isso a que hoje, quando nos debruçarmos sobre as mesas familiares adornadas e repletas dos mais apetecíveis manjares, sejamos capazes de contemplar nem que seja um minuto a crua realidade de estarem cheias dos corpos dilacerados de seres antes vivos como nós, a maioria deles criados em condições de holocausto e abatidos para nos proporcionarem uns brevíssimos minutos de prazer sensorial e fútil, que logo se desvanece para nos deixar com a mesma insatisfação de sempre. E então, se não somos ainda capazes de renunciar a esse alimento, levemo-lo à boca, mastiguemo-lo e engulamo-lo. Mas com um mínimo de consciência e compaixão pelo companheiro de existência a quem fazemos passar pelo que mais tememos e menos desejamos: a morte violenta, sem que a nossa vida disso dependa.
Será incómodo, decerto, mas valerá a pena. Tornará a nossa Páscoa menos cega e mais pascal, mais propícia a uma transformação da consciência, a uma passagem, a um ir para além da nossa ignorância e insensibilidade. Será um daqueles incómodos que nos tornam seres humanos melhores. Sobretudo se, na nossa tomada de consciência do sofrimento dos animais, não esquecermos o dos homens, o de todos os seres, abrindo o coração à infinita compaixão pela dor do mundo. É isso que nos pode abrir o caminho da grande e verdadeira Alegria, a de ver que é possível acabar com o sofrimento, começando por aquele de que somos directamente responsáveis.
24.04.2011 - Domingo de Páscoa
Eu tenho um enorme apreço pelo reino vegetal. Sinto vida nas árvores, nas flores e nas plantas e sei que há algumas, se não todas, que sentem a nossa presença, os nossos actos, talvez até, os nossos estados de espírito.
ResponderEliminarPartindo do princípio que nós, humanos, precisamos de nos alimentar - o que pode até nem ser verdade mas tratando-se de uma mentira é daquelas de que dificilmente nos libertaremos, não vislumbro outra forma que não aquela de sacrificar outros seres vivos, quer sejam animais ou vegetais. Assim, resta-nos, tal como diz no seu texto, agradecer-lhes o sacrifício.
Bem haja
de acordo com Antígona
ResponderEliminarMais - pode até servir de reflexão para Paulo Borges
:
a maioria das espécies animais em risco nem são presas - de que nos alimentamos - pelo contrário, são quase todos predadores. Não o coelho e a lebre mas o Lince; não a Zebra, a gazela, o gnou mas o leopardo e a chita; não o pacífico e bucólico antílope mas o feroz tigre da Índia ou da Malásia.
os próprios Baleia e Tubarão carecem mais de proteção do que as suas/nossas presas sardinha e carapau.
Olha, não sei - uma Boa Páscoa aos dois e um fraterno abraço pelo dia de amanhã.
que apesar de tudo não desequilibrou assim tanto o binómio
presa-predador
Creio que não se pode comparar a senciência animal e a vegetal. E creio também que somos responsáveis por termos um corpo que necessita de se alimentar de modo grosseiro. Quanto ao que diz Platero, se as espécies de que nos alimentamos não estão em risco é porque as criamos artificialmente para o nosso consumo egoísta...
ResponderEliminara quase todas as grandes festividades estão associados animais/mártir
ResponderEliminar:
no NATAL o PERÚ
na PÁSCOA o BORREGO
mas antes do borrego, na Quaresma,
o BACALHAU e o POLVO.
não sou a favor nem contra - mas é uma realidade cultural dfícil de abalar.
abraço
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarPerdoe-me a insistência, mas porque diz que não se pode comparar a senciência animal com a vegetal? Não tratamos, também aqui, de seres vivos? Que sabemos nós?! Como diz, e muito bem, um texto postado há algum tempo neste blogue, não há tanto tempo assim o Homem acreditava que só o homem branco tinha alma...
ResponderEliminarEu já estive perto de plantas que sentem medo e se recolhem ao toque, e creio que aquilo que conheço é uma nanoparte do universo :)
Abraço
A cada um, ao mais íntimo da consciência de cada um de nós cabe reflectir sobre a questão que aqui nos é proposta pelo Paulo. Cabe, finalmente, a cada um, avaliar qual, na verdade, a voz que fala mais alto, se a dos hábitos e das tradições enraizadas na cultura de cada povo, se a voz que a consciência nos diz como a mais certa, a melhor e a mais justa para todos. Tudo depende, por certo, da consciência e da estima, face aos seres que são mais vulneráveis e dependentes dessa nossa escolha.
ResponderEliminarConheço muitas pessoas que comem habitualmente carne, mas são incapazes de comer ou matar aquele animal a que se afeiçoaram, a quem dedicaram o seu especial cuidado e atenção. Mesmo entre os povos que têm enraizada uma cultura que não coloca esta reflexão como paradigma questionável.
Creio que a modificação dos hábitos alimentares está a fazer o seu próprio caminho, à medida que se toma consciência da importância da vida de todos os seres e da responsabilidade pela vida no e do planeta em que queremos viver.
Estas questões parecerão, daqui a alguns anos, talvez absurdas e os nossos hábitos actuais considerados primitivos e cruéis.
Confesso que, de quando em quando, ainda ingiro carne na alimentação. Faço-o cada vez com maior resistência, tanto maior quanto o alargamento da minha consciência, respeito e amor por todos os seres viventes. Por isso mesmo, considero estas reflexões de toda a pertinência e congratulo-me por poder assistir e participar em mais esta mudança na consciência humana.
Grata. Abraço.