segunda-feira, 31 de maio de 2010

Já me cansa o mar,
sempre aquele mesmo vai e vem das ondas,
a paisagem fixa do poente quase a desmaiar,
o pontinho negro lá ao fundo de uma embarcação
a confundir-nos com um pássaro que regressa,
o vendedor de gelados a puxar pelas veias do pescoço para gritar,
a bandeira verde,
amarela e vermelha, sem gente para tomar conta,
porque ser e nada é a mesma cousa
os godos qua atiramos à agua e voltam,
a areia fina e molhada que escreve os nomes,
a areia grossa que não deixa escrever os nomes,
os amantes nas dunas em espectáculos ao ar livre,
os homens de camisa aos quadrados à pescador
mas que não são pescadores,
a espuma do mar que nunca chega a dizer para que serve.

Também me cansa a terra,
os automóveis alterados, já sem cor primária,
as ruas largas onde cabem cinquenta mil pessoas sem
nenhum grau de parentesco entre nenhuma delas, as lojas
com manequins modernamente equipados a fazer
de chamariz, as fontes ali esquecidas, substituídas
pelas águas em garrafas de plástico, os semáforos
intermitentes a esquecer memórias, os sinais de proibição a decidir
para que lado tenho de ir, os cães à espera de um dono, os chulos
a falar de literatura, as casas valentemente arquitectadas a
esganarem-se umas às outras,
os jardins onde os homens libertam cheiros dos sovacos.

Também me cansa o ar,
o sol a mostrar quem manda, as estrelas de aluminio,
o azul que cá para mim nem sabe ser claro nem escuro,
as nuvens carregadas de revolta e há quem diga que é de chuva,
o deus lá mais em cima, muito lá em cima,
a imprimir livros de banda desenhada, a festejar os seus milhões de anos,
os anjos mudos, o vento mortinho por se revelar, os relâmpagos a fazer dos homens tão pequeninos.

Cansa tudo isto, sempre esta dor revestida de veludo,
as manhãs,
as tardes e as noites a disputarem o dia, os relógios de pulso
a quererem ser donos do tempo, a dona Maria à janela
a perguntar se esta semana escrevi para o jornal,
e sobre quê,
as crianças que chutam a bola sem direcção, as árvores tristes
por não conseguirem vergar a espinha,
os gatos de língua presa no novelo, as mãos sem pulso
o senhor Dantas a dizer que se não fosse o destino
daria um bom guarda-redes, o cardeal que quando se lembra
põe-se a cantar à varanda. O amor escondido no colo de um filho da mãe.

Cansa-me perguntar onde dormem os pássaros,
elaborar sonetos para atingir o amor, acender um cigarro já aceso,
lembrar a vida, esquecer a morte,
lembrar a morte, esquecer a vida, passar a ferro os poemas amarrotados,
enlouquecer por uma ninharia, cansa dizer caramba,
mais aquela dor exótica do romancista, meditar sobre a palavra palavra,
perdoar a masculinidade da solidão, entrar em guerra para sair em paz.

Cansa-me pensar que amanhã voltarei a pensar em tudo isto,
no mar,
na terra,
no céu da minha boca, na minha idade à beira rio,
no sol que me aleijou, na carga que tive de deitar borda fora do silêncio.

Por bem existe um poema de tempo interminável,
versos de muletas à espera de ficarem curados,
sonhos na manga que um deus não soube bem costurar,
pedaços de nada e fartura, rimas por rimar, a loucura sem tratante,
cores,
música,
vinhas simbólicas que o poeta transformará em pétalas,
água, mistério, ruínas,
comboios por cima das cabeças,
ilusões retalhadas a canivete,
lume, pedra,
sombra na sombra,
flor, grito, coração recheado com baunilha,
gaveta, e tudo o que a verdade mentir,
tudo isto é preciso para a vida inteira,
para a morte incompleta,
a saber que o Ser é muitas coisas,
tantas outras que até o gato comeu, já que, depois da festa,
só a poesia salva!

2 comentários: