Agostinho considera que todo o teatro grego, tragédia e comédia, provém da consciência deste conflito entre a natureza não-dual do homem e a sua orientação histórica, que marca as possibilidades e direcções opostas que coexistem no íntimo da espécie e de cada indivíduo: por um lado, o crescente desenvolvimento de uma civilização tecnocrática que dessacraliza o mundo, que o considera e aos seres vivos sua propriedade - para "usar, gozar e abusar" -, que instrumentaliza a vida para o único fim do sustento material e, privada do sentido do infinito e da totalidade, da contemplação e da adoração, da comunhão e da gratuidade, se encerra no círculo fechado do produzir para consumir e consumir para produzir; por outro lado, o impulso religioso para regressar à original inocência paradisíaca, ao sentimento da sacralidade do todo e à paz da indistinção entre "eu" e "outro", sujeito e objecto, o que Agostinho considera possível por um aprofundamento da experiência imanente do divino, culminando nessa "experiência mística" que, universal e trans-religiosamente, considera mostrar "que o auge do sentimento religioso consiste numa fusão entre objecto do culto e sujeito do culto, num transformar-se o amador na coisa amada, num aparecimento da unidade perfeita onde a dualidade existia".
- Paulo Borges, in Uma Visão Armilar do Mundo
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