Quem liberta aquele Cristo desta terrífica visão da vida? Um Cristo pregado numa cruz impotente perante as súplicas das almas do purgatório… Que Viagra o pode resgatar? Faz lembrar aquele rei do Principezinho que, solitário num planeta minúsculo, achava que tinha uma soberania ilimitada sobre todo o Universo. Isto porque tinha o bom senso de ordenar aos seres que fizessem aquilo que lhes desse na real gana, ou que obedecessem à causalidade natural, caso não tivessem um modo de ser caprichoso. Em vez de dizer: «Levanta-te!», ordenava: «Levanta-te, ou fica sentado exactamente como estás agora!». Era impossível desobedecer-lhe.
Mas este soberano absoluto não tem o poder de responder a uma prece, ou não se coloca nessa posição, porque aí teria que pôr a sua soberania verdadeiramente à prova. Mas o Cristo pregado numa cruz num painel de azulejos da praia de S. Julião, virado para um mar alteroso e para uma paisagem sublime (as almas estão dentro do painel, o mar está cá de fora, sem qualquer jugo, insubmisso e pleno), o Cristo está numa situação paradoxal. A sua situação de supliciado para resgatar os pecados do mundo, é posta em causa pelas almas que, apesar do supremo sacrifício do Redentor, sucumbiram ao pecado. Esse pecado mantém Cristo preso na cruz. Mas, em contrapartida, a crucificação mantém os pecadores presos ao seu pecado e é a condição obstaculizadora do seu resgate.
Ora, o que é que impede este Cristo de responder à prece das almas em atroz sofrimento? Acho que é precisamente o facto de haver prece. O facto de ser precisa a prece, de ser necessitada, de nascer do desespero. Mas um olhar mais atento leva-nos a concluir que outras personagens são convocadas para aquela situação: os espectadores, convocados à oração ao Pai Nosso e a Maria, as outras personagens do drama, mas que o transcendem. E surge aqui um outro nível referencial: Cristo e as almas do purgatório estão impossibilitados de se libertarem. A libertação poderá vir do carcereiro-mor, o próprio Divino Soberano. Maria será uma intercessora. O que significa que o caldo está entornado, a violência conjugal já chegou ao Empíreo: «Tende paciência que hoje à hora de jantar falo com Ele, a ver se Ele chega de maré, se não vem já com um copito a mais. Ele tem dias em que não se lhE pode dizer nada… Uma Esposa celeste tem que ser obediente. Coitadito do meu filhinho, aguenta um pouco mais, sim? E vocês, rezem mais um pouco, pode ser que Ele os oiça, Ele ouve sempre as pessoas de fora, cá em casa é que é um mafarrico…».
O infantilismo religioso é uma das atitudes mais difíceis de mudar. Bate certo com a leviandade com que se leva a vida, sem drama, como condição que se suporta, não como abundância de que se usufrui. Uma abundância que se espraia sem limites, mas que nos escapa porque não vemos o que não nos afecta. Só prestamos atenção aos ruídos, ao que é desarmonioso e estridente. Não ligamos à refeição que nos sacia num dia ‘normal’, mas não esquecemos o banquete que nos deixou uma semana a ver navios. É natural.
E há mais uma coisa a notar no painel de azulejos: a impossibilidade da dissidência. E se Cristo tivesse sido um filho rebelde? Se, em vez do «Pai, afasta de mim este cálice», tivéssemos uma reclamação do tipo: «Só isto?! Nem dá para um cálice de Licor Beirão com pizangambon!». E as almas estão verdadeira e definitivamente convertidas. Não lhe passará alguma vez pela cabeça o divergirem da versão oficial da história. Estão condenadas ao conformismo. E não será isso a pior das condenações? Uma Coreia do Norte celestial, uma Cidade de Deus ao estilo de Pequim (com capitalismo selvagem e tudo)?
Até onde é que vai a nossa capacidade de saciedade? A resistência ao sofrimento é sempre menor do que a apetência pelo prazer. No Antigo Testamento há uma prece verdadeiramente interessante, nela alguém pede a Deus que lhe dê um tempo de vida que lhe permita ficar saciado com a vida. Talvez isso permita ao homem havido de prazer fazer as pazes com a ideia de que tem que morrer. Mas será possível uma vida prazenteira sem frustração? Talvez não. Será sempre um purgatório, um antegosto do Inferno e uma apetência lancinante pelo Céu.
«E o segredo é Amar!», diz-nos Sebastião da Gama; «Amar é fazermo-nos ao mar», assevera-nos Agostinho da Silva. A salvação é a Perdição. Sem-Terra e com a Esperança toda; Sem-Céu e sem nada para perder… Já sem nada para perder: o ‘Já’ é importante, assinala um reconhecimento, uma tomada de consciência. As almas do purgatório não estão perdidas. Oremos para que se percam.
Se for de biodecomposição,
ResponderEliminarsempre pode florescer um jardim.
:)
Saudaçoes fraternas JCN
Vens atrasado, pá! Já cá esteve... o Saramago. Para a próxima... vê se apanhas o TGV! JCN
ResponderEliminarMeu caro Mango: há muito que nos jardins deixou de se utilizar estrume! JCN
ResponderEliminarNão "neste" hehehe
ResponderEliminar;)
Abraço
O ser humano quer quase sempre mostrar-se inteligente.
ResponderEliminarBoa tentativa!
ResponderEliminarCaro Paulo Feitais,
ResponderEliminarJesus está fora da cruz há milhares de anos!
assim como um dos infortúnios da humanidade…
foi o de construir homens que se castram…
da sua própria humanidade!
homens que fogem ao seu próprio toque e ao dos outros.
Que não amam nem se deixam amar.
Ele sim, foi
um homem sem pejo,
que se deixou tocar nas suas próprias feridas,
após vencer a sua morte.
Quando sentires a suavidade e o perfume da terra fértil no lodo e no estrume, farás um jardim!
ResponderEliminarQue bonito.
ResponderEliminarÓ senhor Nuno, quando se refere ao "ser humano", refere-se a si próprio?!... JCN
ResponderEliminarÓ pá! também vais "apagar" este? JCN
ResponderEliminarQuem apaga comentários indignos sou eu e já pouco falta para que apague definitivamente quem não sabe estar aqui.
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